A salvação enquanto caminho de morte

Han Kang surpreendeu ao vencer o Man Booker International Prize com um livro sobre uma mulher que renuncia à carne e quer tornar-se planta. A Vegetariana está a criar um culto mundial.

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A Vegetariana: uma história em três actos, que surpreendentemente lhe valeu o Man Booker International Prize deste ano, onde competia com Orhan Pamuk, Elena Ferrante ou José Eduardo Agualusa

Em 1997, Han Kang escreveu a história de uma mulher que se transformou numa planta. O marido colocou-a então num vaso e passou a regá-la, a cuidar dela. Contudo ela murchava e ia definhando à medida que o Outono se aproximava do fim. Reclinado-se diariamente no parapeito da janela, o marido procurava indícios, será que ela voltaria a florir na Primavera seguinte? A história chamava-se The Fruit Of My Woman e foi só um começo. “Depois de escrever esta história tive o sentimento inexplicável de que ela não estava terminada. Quis retomar e refazer esse imaginário em que uma mulher se transforma numa planta e alguns anos depois escrevi este tríptico, A Vegetariana”, conta Han Kang ao Ípsilon sobre o livro, uma história em três actos, que algo surpreendentemente lhe valeu o Man Booker International Prize deste ano, onde competia com Orhan Pamuk, Elena Ferrante ou José Eduardo Agualusa. A Vegetariana era o romance de estreia de uma autora desconhecida no Ocidente, um livro original de 2007 publicado no Reino Unido em 2015 que o júri do Booker classificou como “conciso, requintado e perturbante”, para justificar a sua decisão. É esse livro que chega a Portugal numa edição da Dom Quixote.

Quatro meses depois de vencer o Man Booker International Prize, Han Kang já não é um nome desconhecido e o livro que a tirou do anonimato fora do seu país está a criar um culto. Narrado a três vozes, cada uma dando uma perspectiva diferente no que é uma tentativa da autora de perseguir a compreensão, centra-se numa mulher de classe média de Seul, sem qualquer ambição ou atributo especiais que não a sua dedicação à casa e ao marido, e que desafia as convenções, familiares e sociais, quando decide deixar de comer carne. “Antes de a minha mulher se ter tornado vegetariana, sempre pensei nela como alguém que não tinha rigorosamente nada de especial”, ouve-se dizer Mr. Cheong, marido de Yeong-hye, no meio da sua mediania existencial. Ora, são as implicações dessa decisão no meio que envolve a protagonista e no próprio corpo e na mente o foco da escrita de Han Kang, que o júri do Booker considerou configurar um estilo ao mesmo tempo “lírico e dilacerante”.

A Vegetariana quer, no entanto, ser mais do que a história de um acto de rebelião de uma mulher ao decidir deixar de comer carne. É um grito contra qualquer tipo de domínio no que esse exercício — de dominação — tem de violência. Sensual, provocador, inquietante, grotesco e poético, tem sido descrito como romance feminista. “Este livro tem algumas camadas. Questiona a violência humana e a (im) possibilidade da inocência; tenta definir sanidade e loucura; é também sobre a (im)possibilidade de entender os outros, e é sobre o corpo como último refúgio ou a última determinação”, refere Han Kang, que assume a sua vontade de dar protagonismo à voz feminina, “à das mulheres, gritando silenciosamente”, salientando, no entanto, que o romance “não é uma denúncia ao sistema patriarcal coreano em particular”. Diz Han Kang: “Eu quis lidar com velhas questões minhas, de possibilidade/impossibilidade de inocência neste mundo, que é uma amálgama de violência e de beleza.”

Mutismo

Nas menos de 200 páginas de A Vegetariana o leitor está em permanente confronto com essas ambiguidades e torna-se refém da teia narrativa construída pela escritora, hábil na manipulação de sentimentos ou na forma como gere tensões, alicerçando tudo em três pilares: a relação entre Yeong-hye e o marido, baseada em pouco afecto e aceitação de obrigações-funções; a dinâmica criativa e sexual entre Yeong-hye e o cunhado, artista meio frustrado e o segundo narrador depois de Mr. Chang; a determinação da terceira narradora, In-hye, em proteger e salvar a irmã. A não ser a espaços, numa espécie de sonhos ou missivas dirigidas a si mesma, a voz e a intenção de Yeong-hye permanecem um mistério. As pistas que vão sendo dadas sugerem um episódio de violência, onde a figura paternal, autoritária, pouco habituada a ser desafiada, desempenharia um papel fulcral. Mas isso apenas se pressente. “Desde o início que quis que o centro deste livro ficasse em branco. Todos os olhares e as vozes dos narradores são diferentes ao ponto de o leitor ter de actuar juntando os fragmentos para tentar construir a verdade de Yeong-hie. Achei que era este o único modo de representar esta personagem tão estranhamente determinada”, justifica Han Kang sobre o modo como atraiu o leitor para um livro que se lê numa espécie de vertigem, um torpor tão difícil de definir quanto as motivações da protagonista, parecendo tudo fazer parte do mesmo jogo onde o não-dito e o silêncio ressoam preponderantes.

Sim, este é também um romance de silêncios e Yeong-hie é exímia nessa espécie de mutismo que atravessa todo o livro. Esse é um dos seus méritos e o mais causador de inquietação. Se se procura um motivo para perceber o fascínio de A Vegetariana talvez ele esteja aí, no modo como tensão e silêncio se conjugam. “Sim, o silêncio é crucial”, admite Han Kang, acrescentando: “Por vezes sinto que a minha escrita tece silêncios nas frases. De facto escrevi um romance sobre o silêncio, sobre uma mulher que deixou simplesmente de falar. Chama-se Ancient Greek Lessons”, conta, e poderia ser também esse o mote de A Vegetariana: uma mulher não deixou apenas de comer carne, mas de falar ou de ser percebida no pouco que vai dizendo, como se deixasse de ser um corpo e com isso renunciasse a qualquer funcionalidade física. Lê-se: “… não era ao desejo carnal que ela renunciara; pelo contrário, aquilo a que renunciara era à própria vida que o corpo representava.”

E é também sobre sexualidade, o sexo enquanto escolha ou obrigação, alguma coisa que se espera que aconteça de determinada forma, convencional. Enquanto modo de libertação também. É aí que a classificação feminista assenta? “Esse aspecto [a sexualidade] não entrou aqui intencionalmente. Não acho que este livro seja sobre a sexualidade em si mesma. Na segunda parte, o narrador está a fracassar na tentativa de alcançar a verdadeira face de Yeong-hye, como os outros narradores do livro. Yeong-hye foge de todas as tentativas dos narradores que a rodeiam, o que a torna em simultâneo objecto de ódio, desejo, equívocos, compaixão ou pena. Ela está tão determinada que não se importa com a vida ou a morte. Está a fazer o seu melhor para se salvar da violência omnipresente e não pertencer mais à raça humana. Ironicamente, com isso vai-se aproximando da sua morte. Acho que este é o cerne da sua agonia e também deste livro.”

A recusa da violência

Natural de Gwangju, Sudoeste da Coreia do Sul, onde nasceu em 1970 filha do escritor Han Seung-won, Han Kang é poeta, dramaturga e romancista. A Vegetariana foi o seu terceiro romance, mas o primeiro a ser conhecido fora do seu país. Todo o percurso do livro foi atípico. Foi traduzido para japonês, chinês, vietnamita, espanhol, polaco e francês até ser publicado no Reino Unido. Depois da tradução inglesa, seguiram-se a alemã, a holandesa, a italiana, a portuguesa… “O livro foi originalmente publicado há nove anos tudo levou muito tempo e não sei bem explicar porquê. Foi como foi”, refere a escritora, que actualmente vive em Seul, muito longe da América do Sul onde parece ter ido buscar inspiração para A Vegetariana. O ambiente é muitas vezes próximo do realismo mágico. Veja-se o fascínio do cunhado por um detalhe físico de Yeong-hie, uma mancha mongólica, que para ele passou a ser a “imagem de uma flor azul nas nádegas de uma mulher”, coisa que passaria a comandar todos os seus impulsos artísticos e sexuais. “Muitas vezes sinto que o meu trabalho procura esse caminho. Como haver alguém destinado a ser uma planta, ou p narrador ser um menino morto que é capaz de ver o seu próprio corpo [no último romance]. Muitas vezes sinto que o acto de escrever é a minha derradeira procura do próprio trabalho. Gosto de escritores latinos. Quando tinha 20 anos adorava Borges, Paz, Neruda… E sinto-me próxima deles”, admite. Refere no entanto que a sua grande dívida literária é para com os escritores sul-coreanos. “Cresci a lê-los, além disso o meu pai também é escritor, de modo que tive o privilégio de viver rodeada de livros." Depois, como referências, há ainda os russos, sobretudo Dostoiévski, mas não gosta de nomear. “É preciso é ir lendo. Há tantos…”.

A entrevista acontece depois de Han Kang regressar de Berlim, onde esteve a promover Human Acts, o seu sexto romance. Nesse livro, o ponto de partida é o massacre após os protestos estudantis de 1980 na cidade natal de Han Kang. É um livro onde aprofunda a violência e a provocação ganha novo tom. Quando se diz contaminada pelo realismo mágico, significa que, tal como a maioria dos latino-americanos que o praticaram — no caso deles para combater as ditaduras —, também Han Kang vê a sua literatura como um acto político? “Quando publiquei Human Acts na Coreia, as pessoas ficaram surpreendidas porque nos meus trabalhos anteriores eu nunca lidara com questões históricas ou sociais. Contundo, o pessoal e o político não são separáveis. Eu tenho esta permanente questão com a dignidade humana e com a violência humana. Em Human Acts quis escavar fundo nisto e finalmente reencontrar-me com esta memória do massacre, mesmo que não seja uma memória directa. Gwangju é a minha cidade natal, mas a minha família foi embora quando eu tinha apenas quatro meses. E A Vegetariana é também sobre a partilha desta questão do que é ser humano. Recusar a violência humana e procurar desesperadamente uma certa dignidade.”

O que se segue? As primeira críticas a Human Acts apontam para o tal aprofundar da violência na tentativa de a entender e a tal (im)possibilidade de que também aqui fala Han Kang. Ela quer voltar à escrita depois de um Verão atípico. “Já passou algum tempo desde o anúncio do prémio. Estou a tentar por tudo regressar à minha secretária o mais rapidamente que conseguir. Eu vivia uma vida privada e o mais confortável para mim é que seja o mais calma possível. Desde a viagem à Alemanha na passada semana, estou novamente a escrever”, refere. É um regresso também às rotinas de Seul. “Caminhar, escrever, tomar chá pela manhã. De preferência todos os dias.”

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