A social-democracia está esgotada?

A revolução tecnológica que nasceu e continuamente se desenvolve no Ocidente não parece compensar a deslocação da criação de riqueza para as longínquas paragens onde se situam os novos formigueiros produtivos do mundo.

Tenho lido e ouvido que a social-democracia não apenas está esgotada, como – de acordo com a apreciação da esquerda radical – constituiria um regime político-social  essencialmente fracassado, cujas risíveis realizações ficariam para a História  sob a forma de anedota numa nota de pé de página. Ao passo que, implicitamente, o “trots-bloquismo” e o “pêcêismo” terão direito a gloriosos volumes com capítulos encimados por iluminuras celestiais, ilustrativas da virtuosa criatividade revolucionária com que se propõem brindar Portugal, para já, e depois o Mundo, pelo menos.

Ora a social-democracia – o Estado Social – em meio século transformou para melhor a vida de centenas de milhões de pessoas; coisa pouca. O marco inicial mais referido é 1936, quando o socialista Léon Blum introduziu em França as férias pagas, limitou o tempo de trabalho diário e instituiu os primeiros contractos colectivos. Não estranhamente, ninguém refere a grande obra social-democrata do democrata-cristão italiano Alcide de Gasperi, primeiro ministro de Itália de 1945 a 1953, que estabeleceu as bases essenciais dos futuros SNS’s, criou os subsídios de maternidade e  de funeral,   lançou logo em 1949 um programa de habitação social a realizar em sete anos e ainda criou um Fundo de Solidariedade Social destinado a indexar à inflação as pensões e outros subsídios estatais.

  Desde o final da II Grande Guerra até hoje, o crescimento do Estado Social, ou seja, a expansão  da Social-Democracia, tem sido o que todos sabemos. Temos  um sem-número de direitos onerosos suportados pelo Estado, da Saúde à Educação e à Segurança Social. Hoje em dia, é verdade, a Social-Democracia está esgotada – pelo singelo motivo de que já venceu: o núcleo do seu programa está cumprido, converteu-se em aquisição civilizacional, como acontece nos países economicamente mais robustos, ou figura na agenda prioritária  dos menos desenvolvidos  como conjunto de objectivos  irresignáveis. Objectivos de valor universalmente reconhecido.

Porém,  desses objectivos não consta o socialismo  e menos ainda o comunismo: o programa social-democrata não prevê, nunca previu a colectivização dos meios de produção, nem  a abolição do mercado como principal meio de regulação da economia, nem a restrição ou a eliminação da propriedade privada, nem a estatização da sociedade, nem uma sociedade subordinada ao Estado, com a vida financiada pelo Estado e deste integralmente dependente.

Quando nos dias de hoje se clama por “mais social-democracia”, esta exigência é entendida pelas populações, simplesmente, como o direito a ter mais dinheiro nos bolsos. Ouvem-se reivindicações que subentendem uma sociedade integralmente sustentada pelo Estado, sem a mais preliminar ou grosseira indicação sobre a origem, sobre a fonte desse sonhado maná estatal.  (A dra. Mortágua tem uma ideia: “perder a vergonha” e ir directamente aos bolsos de quem “acumula dinheiro”, como ela chama às poupanças de cada um.)  Acontece que o consumismo, e já não o clássico ideário social-democrata, é actualmente a única e mais vibrante paixão universal. A satisfação desta paixão exige continuamente mais e mais dinheiro numa Europa economicamente esgotada (à excepção da Inglaterra que, por ora, cresce 3,5% ao ano). Logo por azar, as paixões impossíveis são as mais ardentes…

O mundo soviético não ruiu porque os peitos russos palpitassem de amor pela liberdade e a democracia, mas sim, muito elementarmente, porque o socialismo real, o soviético, fracassou abjectamente no plano económico. Nos socialismos reais que sobejam (Cuba, Coreia do Norte, Laos, Vietname), a pobreza e a mediocridade generalizadas são a regra. (A China é um caso aparte.)

Acontece que a estagnação económica da Europa (com um crescimento de não mais de 1% nos últimos anos) é principalmente uma consequência da desindustrialização europeia e ocidental. Uma grande, senão a maior parte das nossas actividades industriais migrou para paragens asiáticas ou terceiro-mundistas. A revolução tecnológica que nasceu e continuamente se desenvolve no Ocidente não parece compensar a deslocação da criação de riqueza para as longínquas paragens onde se situam os novos formigueiros produtivos do mundo.

Creio que estamos precisamente a assistir a uma gigantesca redistribuição mundial da riqueza e deslocação/transformação das forças produtivas e das relações sociais. Nós criamos, inventamos – “eles” fabricam.  Esta redistribuição tem proporcionado a retirada de centenas de milhões de seres humanos da mais negra e desumana miséria. A massa trabalhadora do Ocidente, e sobretudo da Europa, ressente-se desta viragem histórica mundial, conforme atestam as estatísticas do desemprego e do crescimento económico: mas será justo que a maior parte do mundo padeça de carências económicas essenciais para que nós, europeus, continuemos a gozar dos luxos comparativos a que nos habituámos ?

Esquerda e direita têm que repensar a forma como equacionam o problema da pobreza no mundo, e têm que repensar ainda mais a forma como equacionam o nosso conforto de ocidentais no contexto da relativa (e cada vez mais ameaçada) prosperidade de que ainda gozamos. A globalização veio para ficar. Se a social-democracia, em vez de se abrir à liberalização, tentar enveredar pelo proteccionismo e pelo “soberanismo” – um mero eufemismo envergonhado para designar o nacionalismo puro e duro – não só revelará desprezo pela sorte das centenas de milhões de seres humanos que beneficiam da globalização, como fomentará a irracionalidade económica e induzirá infalivelmente  uma degradação do nível de vida que já atingimos. Ambas as coisas – irracionalidade e degradação – só serão digeríveis à custa de ditaduras, que não cumprem o “Social” e suprimem a “Democracia”. 

Historiadora

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