David Bowie: O fantasma que não pára de nos assombrar

Um documentário, um livro, uma caixa de discos, as três últimas canções gravadas, uma exposição ou um leilão. David Jones morreu em Janeiro deste ano, mas David Bowie continua a assombrar-nos, omnipresente.

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Gijsbert Hanekroot/Redferns

Um fantasma. Simultaneamente o mais omnipresente e invisível. É assim que David Bowie é descrito nas sequências iniciais de Bowie, Man With a Hundred Faces or The Phantom of Hérouville (2015), o documentário do realizador francês Gaëtan Chataigner e do jornalista Christophe Conte, que é exibido este sábado (São Jorge, Sala 3, 14h00) e a 30 de Outubro (Culturgest, Grande Auditório, 16h15), no âmbito do festival DocLisboa.  

O documentário foi filmado antes da sua morte, a 11 de Janeiro, aos 69 anos, mas esse dado em nada altera a visão sobre o mesmo. Meses depois o mistério – com sugestões de que a sua morte terá sido como a vida, ou seja, cuidadosamente administrada – e a sua presença só se intensificaram, com as mais diversas iniciativas editoriais a sucederem-se.

Esta sexta-feira, 21, é publicado Lazarus, com versões de temas dele interpretados pelo elenco e banda da produção original do espectáculo do mesmo nome, que estreou o ano passado em Nova Iorque, indo agora para Londres, onde iniciará uma temporada na próxima terça-feira. Mas o mais relevante é que o lançamento inclui as suas últimas três gravações de estúdio, registadas ao mesmo tempo que Blackstar (2016).

Há semanas foi lançado Who Can I Be Now? (1974-1976), caixa contendo doze CDs, com a particularidade de incluir o álbum inédito de 1974, The Gouster, agora editado pela primeira vez completo. Também agora é publicado em Portugal o livro Sobre Bowie de Rob Sheffield, ao mesmo tempo que a exposição David Bowie Is, produção do museu Victoria and Albert de Londres, continua o périplo mundial, encontrando-se em Bolonha antes de rumar a Tóquio e, na Primavera de 2017, Barcelona. Finalmente, a 10 e 11 de Novembro, cerca de 400 obras da colecção de arte de Bowie vão ser leiloadas pela Sotheby’s de Londres.

Bowie ubíquo? Sim. Em nenhum lado e em todo o lado, diz alguém às tantas em Bowie, Man With a Hundred Faces or The Phantom of Hérouville, na música, na arte, no design, na moda, no teatro, no cinema, na literatura, nos comportamentos, na nossa memória colectiva.

Coleccionador de ideias

As suas personagens não deixam de assombrar o trabalho de outros, fascinando gerações. E para seguir o rasto de um fantasma o melhor é começar por um lugar que ele assombrara: os míticos estúdios do Castelo de Hérouville, noroeste de Paris, onde também os Pink Floyd, Elton John, T. Rex, MC5, Grateful Dead ou Zeca Afonso – o álbum Cantigas do Maio de 1971 – gravaram. O desafio dos realizadores foi esse: tentar decifrar Bowie, explorando o mito e a sua influência transversal, a partir dos estúdios de Hérouville, um espaço extravagante mas secreto, rico em histórias estranhas mas acolhedor, o ideal para ali Bowie ter permanecido em duas alturas diferentes – em 1973 aquando das gravações do álbum Pin Ups e em 1976 quando produziu The Idiot de Iggy Pop e preparou Low, aquele que viria a ser o primeiro disco da chamada trilogia de Berlim.

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CA/Redferns

Há imagens de arquivos, excertos de actuações ao vivo, reconstituições e vários testemunhos de colaboradores (como os engenheiros de som Laurent Thibault e Dominique Blanc-Francart), de cantores (Gonzales ou Lou Doillon), de criadores de moda e de conceitos como Jean-Charles de Castelbajac ou do encenador e realizador Renaud Cojo. “Tinha um olhar bizarro, marciano, como se não fosse humano”, diz o engenheiro de som Dominique Blanc-Francart, antes do documentário voltar ao início do seu percurso para nos mostrar aquilo que hoje parece evidente: em todos os momentos Bowie foi personagem. É ele próprio que o diz no filme.

Dir-se-ia ter encenado de forma magistral, através da obra, a sua vida e morte. Curiosamente, quando foi assumidamente actor, no teatro e no cinema, não pareceu recolher tanto consenso, em filmes como Absolutamente Principiantes, Fome de Viver, Feliz Natal Mr. Lawrence ou Basquiat. Talvez porque se posicionasse melhor entre paradoxos. Quando cresceu para o rock este regia-se pelas regras da autenticidade, mas ele resolveu enveredar desde a segunda metade dos anos 1960 pela teatralização, pelas máscaras, pela composição, criando personagens como Major Tom, Ziggy Stardust, Alladin Sane, Halloween Jack ou Thin White Duke. Essa aparente contradição foi, afinal, a forma que encontrou para não se esconder, revelando-se complexo e total.

Lazarus
Young Americans

Desde muito cedo que percebeu que o rock do futuro seria uma combinação de princípios teatrais, visuais, musicais e de comunicação, dirá Jean-Charles de Castelbajac, que o compara a Leonardo Da Vinci, pelo talento multifacetado. O próprio Bowie dirá que é um coleccionador de ideias e de personalidades. Alguém que se apropria de forma sofisticada e crítica de concepções, no sentido de lhes acrescentar camadas, como sugere o músico e cantor Gonzales que, numa das sequências mais eloquentes do documentário, compara ao piano My way de Sinatra com Life on Mars de Bowie, como se a segunda fosse a versão revigorante da primeira. Essa ligação entre as canções foi assumida pelo próprio Bowie – recorde-se que Sinatra, em 1968, pediu a vários compositores, entre eles Bowie, que adaptassem a letra da canção francesa Comme d’habitude para inglês, acabando por escolher a adaptação assinada por Paul Anka.

Não é fácil dizer categoricamente se era ele que se adaptava aos acontecimentos culturais mais efervescentes, ou se contribuía de forma determinante para a sua emergência. Provavelmente ambas. Uma coisa é certa: não deixava nada ao acaso. A cada novo disco mudava, absorvendo ou impulsionando tendências. Gostava de compreender a realidade à volta, sendo capaz de desenvolver qualquer coisa de novo a partir do caos de referências, fossem elas provenientes da arte, dos livros, da filosofia, dos filmes, do teatro, da moda ou de simples conversas. Era um artista total, alguém que foi capaz de compreender que o rock não era apenas a possibilidade de afirmar novas formas de operar, mas também de ser e existir.

Talvez por isso não tenha tido um relacionamento fácil com quem actuava de forma algo semelhante como Andy Warhol. Respeitavam-se (Bowie chegou a fazer de Warhol em Basquiat) mas não morriam de amores, apesar de partilharem o mesmo fascínio pelo conceito de celebridade, como algumas canções (Starman, Star, Stars are out tonight) ou as palavras de Heroes (“We can be heroes / Just for one day”) manifestaram.  

O documentário foca essencialmente os anos 1970, talvez os mais efervescentes, lançando álbuns, personagens e conceitos, ao mesmo tempo que também produzia (Lou Reed, Stooges, Iggy Pop), num vórtice existencial onde a singularidade e a provocação, andavam sempre a par. É dessa década The Gouster, gravado em Filadélfia em finais de 1974, integrando a caixa antológica que se reporta à sua fase americana, quando ali compôs canções impregnadas de soul e funk. É uma espécie de pré-Young Americans (1975), com algumas das canções compostas para esse disco sonhado a serem integradas nesse e em álbuns posteriores.  

A sua segunda passagem pelo Castelo de Hérouville, em 1976, foi mais pesada, numa atmosfera marcada pelas drogas, paranóia e a procura de novas linguagens artísticas, ao lado de Brian Eno, Tony Visconti e Iggy Pop. A Alemanha das vanguardas, o sentido de experimentação, a tecnologia e a música dos Kraftwerk ou dos Can já eram as obsessões que iriam inspirar Low (1977), Heroes (1977) e Lodger (1979).

Os anos 1980, em plena era MTV, foram de sucesso comercial. Os anos 1990 de alguma instabilidade criativa. Os anos 2000 foram de reconquista e de início da prolongada paragem de 10 anos, interrompida em 2103 com o surpreendente The Next Day, a que se seguiria o magnífico Blackstar, editado dias antes da sua morte. Talvez tenha sido esse a última personagem: David Bowie, o mestre absoluto da comunicação.

Depois de décadas de sobreexposição, uma das celebridades mais fotografadas e comentadas das últimas décadas, escolheu retirar-se, lançando dois álbuns sem aparecer em público para a promoção. O homem dos mil rostos resolveu ausentar-se, mas nunca pareceu estar tão presente, de tal forma é impossível pensar o nosso tempo sem ele. A sua obra é como se fosse um fenómeno social total onde todos se podem reconhecer pelo menos um pouco. O facto de ter alcançado a fama e de se ter tornado ícone em vida, explicam a sensação de que o conhecemos na totalidade, mas mantém-se um enigma em muitos domínios, tal a abundância de conexões culturais da sua vida e obra.

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Como nos dizia o seu biógrafo, o jornalista inglês Paul Trynka, em 2013:“é uma celebridade atípica, alguém ambíguo que se expôs muito, mas que manteve uma certa distância, um mistério, uma mística, que leva as pessoas a desejarem querer saber mais, ouvir mais, estar mais próximas.”

E agora aí está Lazarus, que inclui versões dos temas de Bowie, recriados pelo elenco do musical, mas a curiosidade reside na inclusão das três últimas gravações de estúdio. Foram registadas ao mesmo tempo que Blackstar e isso vislumbra-se na sonoridade ousada, na mantra pesarosa e hipnótica que cobre No plan, na obsessão fusionista de rock e jazz de Killing a little time, enquanto When i met you adopta um registo mais lúdico e próximo das convenções pop, mas sem que por alguma vez a voz de Bowie perca o charme da eternidade. Afinal, ao longo dos anos David Jones foi matando todas as personagens. Em Janeiro morreu David Jones, mas Bowie, a síntese total de todas essas personagens, continua mais presente do que nunca.

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