Transformando a solidão numa obra de arte

Sobre Bowie não é uma biografia e não é exactamente um ensaio. É uma carta de amor em que Rob Sheffield, crítico da Rolling Stone, explica como Bowie ofereceu um lugar no mundo a toda a multidão de solitários que o ouviam.

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Jorgen Angel/Redferns

Não é uma biografia, apesar de toda a carreira ser nele abordada em ordem cronológica, e não é exactamente um ensaio, apesar de toda a reflexão sobre o que foi e o que significou David Bowie durante a sua passagem pelo planeta. Foi escrito em dois meses, na ressaca da morte chegada a 10 de Janeiro, dois dias depois da edição do seu álbum de despedida, Black Star. Não é, portanto, um aturado trabalho de investigação, apesar de nos contar pormenores certamente pouco explorados, como o facto de o autor de Ziggy Stardust ter feito a primeira tatuagem homem já muito feito, homenageando o seu amor pela mulher, Iman, com um golfinho na barriga da perna. Sobre Bowie é uma mistura de tudo isso, sendo, essencialmente, uma carta de amor de um fã que passa dias a ouvir velhas colectâneas de Bowie em cassete, que corre para ver bandas tributo em bares e que lhe canta os êxitos e os lados B em noites de karaoke.

O centro do livro, obra de Rob Sheffield, crítico e editor da Rolling Stone, agora editada em Portugal pela Vogais, chancela da 20/20 Editora, está numa citação que encontramos quando a viagem vai ainda a início, proferido pelo Bowie glam que transformou o cenário musical, e para além dele, primeiro em Inglaterra, com estrondo, depois no resto da Europa, por fim, nos Estados Unidos e no resto do mundo. Bowie falava sobre os seus jovens fãs, a “única verdadeira ligação humana que tinha”, como dito por Sheffield em entrevista ao site Pitchfork. “Estão a descobrir coisas que talvez nada tenham a ver comigo, mas com a ideia de encontrarem outra personagem dentro de si mesmos”, lemos em Sobre Bowie. “Isto é, se eu for o responsável por as pessoas terem encontrado mais personagens em si mesmas do que pensavam ter, então fico satisfeito, porque é algo que me diz muito. Que uma pessoa não é apenas aquilo que foi condicionada a pensar que é. Há muitas facetas da nossa personalidade que temos dificuldade em encontrar”.

Sobre Bowie, então. O livro de um americano, juventude vivida nos anos 1980, que viu o cantor nascido em Londres transformar-lhe a vida ao mostrar-lhe como encontrar o seu lugar no mundo e perante os outros que o habitam. O que sobressai na escrita de Rob Sheffield é, precisamente, a forma como David Bowie, aquele que transformou "a solidão numa obra de arte”, passou uma carreira a tentar aproximar todas essas multidões de solitários a que também ele pertencia. Sheffield demonstra-o esmiuçando as letras e as entrevistas, a pose em palco e o impacto que, ao longo do tempo, testemunhou nele mesmo e nos que o rodeavam à medida que David Bowie se transformava de “primeira estrela do rock dos anos 1970 – aquele que mandou parar a festa dos anos 1960 e declarou que a década tinha acabado”, em amante ardente da América e da soul, em cocaínado dado à polémica, em explorador intimista, em estrela pop da era da MTV, em clássico irrequieto, em recluso com total domínio do seu legado.

Quando aborda O Homem que Caiu na Terra, o filme de Nicholas Roeg, Sheffield defende que Bowie não teve uma verdadeira carreira cinematográfica porque “as estrelas rock são mais cool do que os actores, e não o tipo de cool que Bowie conseguisse moderar ou desligar se quisesse”. Conclui: “E é por isso que ninguém conseguiu fazer um filme sobre Bowie, porque nenhum actor pôde contê-lo – nem mesmo Bowie, o actor”. 

Certo dia no início de 2004, uma amiga de Rob Sheffield, vê-se por acaso a partilhar um táxi em Nova Iorque com David Bowie. Ela não o quer chatear com perguntas de fã e, portanto, passa o tempo da viagem a falar da sua própria vida. David Bowie ouve-a e dá-lhe alguns conselhos. Despedem-se. As últimas palavras são de Bowie. “Agora, quando fores contar isto aos teus amigos não te esqueças de lhes dizer que eu tinha uns sapatos fabulosos”.

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