Quem passa junto ao jardim de São Lázaro, mais precisamente pela esquina da Avenida Rodrigues de Freitas com a Rua D. João IV, junto à Biblioteca Municipal do Porto, não sabe que ali, naquele quiosque amarelo decorado de cima a baixo com cartazes e recortes de jornais, está o “metro quadrado mais optimista” do Porto. Garantem-no os responsáveis pela The Worst Tours, os “passeios do piorio” que desde 2012 mostram um outro lado da cidade — aquele que não vem nos típicos mapas turísticos (mas já lá vamos).
Desde Julho que a “pior agência de passeios do mundo” se instalou no quiosque, construído na década de 60 e onde há menos de dez anos ainda se vendiam jornais e revistas, que agora foi cedido pela Câmara Municipal do Porto ao projecto. Abrem todas as tardes e distribuem mapas Use-IT, dão informações sobre a cidade, apresentam as suas "tours" — só falta mesmo a electricidade, pedido a que a EDP ainda não respondeu. Os papéis que decoram as paredes chegaram de todo o lado, e mais virão: “cola e deixa colar” é o mote, que pode ser aplicado por quem quiser.
É o resultado de um mês de obras DIY ("Do It Yourself") a seis mãos: as de Margarida Castro Felga, mais conhecida por Gui, Pedro Figueiredo e Isabel Pimenta. Em finais de 2012, num país abalado pela austeridade, os três arquitectos desempregados, recusando-se a emigrar, decidiram fundar a The Worst Tours. Uma resposta à falta de trabalho, mas também à “turistificação” do Porto. Entretanto, os anos passaram, o projecto ganhou fama mundial, fazendo títulos no "Guardian", na BBC, no Huffington Post e no guia "Lonely Planet", e assumiu-se como associação sem fins lucrativos, a Simplesmente Notável. É hoje o trabalho de Gui, 33 anos, e Pedro, 41 (Isabel tem um outro emprego a tempo inteiro), que não têm ideia de quantas pessoas já puseram a calcorrear as ruas da cidade; certo é que este Verão houve passeios todos os dias.
Com o aumento do turismo, principalmente no Porto e em Lisboa, multiplicaram-se as "tours" em que locais feitos guias apresentam a sua cidade aos visitantes, que, no fim, pagam o que quiserem. Há passeios para quase todos os gostos — mais turísticos, algo alternativos, até gastronómicos — mas provavelmente nenhum com o formato de, diz Pedro, “debate ambulante”. Aqui, os guias tanto apontam para um edifício abandonado para discutir o conceito de propriedade em Portugal (e pelo meio ainda lançam a ideia de implementar cooperativas de trabalho que poderiam ocupar os espaços desocupados e estancar a emigração), como explicam a história das “ilhas” e questionam se aquelas que sofreram melhorias, por exemplo a nível de saneamento e instalações sanitárias, não estarão agora a “agir contra” a gentrificação do centro. Com eles, os visitantes, a maioria estrangeiros mas também portugueses, reflectem sobre a crise e as suas consequências, aprendem o que foi o SAAL, o programa político e arquitectónico de habitação social do pós-25 de Abril, falam sobre o destino dos fundos comunitários. No final, o donativo só é aceite depois de preenchido um recibo. “Temos tudo legal, pagamos impostos”, evidencia Gui.
Os "zines", "pins" e postais que estão à venda na montra do quiosque, desenhados pela assumidíssima “artivista” Gui, espelham todas estas preocupações. Há um crachá sobre a “geração desenrasca”, um livrinho que apresenta a típica casa burguesa do Porto do século XIX, e um outro, em português e inglês, que explica como é que nas suas traseiras começaram a surgir as “ilhas”. Ao lado, uma antiga cabina telefónica, deixada ao abandono sem telefone, foi transformada num “teletransporte” para um “futuro” que não chega (“Já estamos no futuro há tanto tempo e estamos sempre em atraso”). “É mais uma brincadeira”, diz Gui, para quem “a arte só funciona quando brinca um bocado com o mundo”. Um metro quadrado não é muito, mas ainda há espaço para preencher por qualquer criativo que ali queira mostrar o seu trabalho. “Tem é de ser, de alguma forma, crítico”, avisa Gui. “Politizado”, completa Pedro. “Com alguma preocupação social”, acrescenta ainda a primeira. Mas então porquê? Por que é que um projecto que se dedica a mostrar a cidade, piscando olho a turistas e não só, tem essa intenção? “Porque isto não é um projecto artístico, é político”, responde prontamente a arquitecta.
Turismo como crítica política
Nos últimos anos, o Porto, bem como Lisboa, tem registado um boom turístico inegável — e basta andar pelas cidades para o perceber. Os números comprovam-no. Em Julho, de acordo com dados preliminares do Instituto Nacional de Estatística, os estabelecimentos hoteleiros do país receberam 2,1 milhões de hóspedes, sendo que quase 385 mil ficaram no Norte (a terceira região mais procurada depois da Área Metropolitana de Lisboa e Algarve). Em relação ao mesmo período do ano anterior, a região apresentou o maior aumento de dormidas do país (13,6%), registando-se um “acréscimo expressivo” dos mercados externos (20,5%).
Muitos turistas, conta Gui, chegam até eles depois de “três dias às voltas na Baixa, em que só vêem outros turistas”. E perguntam-se: “Não pode ser, onde está a cidade?” Damien, francês de 36 anos, foi um deles. Na véspera da tour, andou com a namorada Ariane pela cidade inteira. Viram muita coisa — o Teleférico de Gaia, o Palácio de Cristal, a Sé — mas outras escaparam. “Se fizéssemos uma visita normal turística, íamos perder todo o espírito”, comenta a parisiense ao P3, no final do passeio que marcaram através do site. Ficaram “impressionados” com o que está por trás das portas — sejam as “ilhas” ou o Centro Comercial Stop, que hoje é uma gigantesca sala de ensaios para as bandas da cidade. “Isto é política, activismo. (...) Fez-me pensar muitas coisas sobre o meu país também”, conclui Damien, antes de confessar que ainda vão tentar repetir a experiência, se o percurso for outro. Tudo depende. No início de cada "tour", na Praça do Marquês, a pergunta é sempre a mesma: “Onde é que já andaram?” E segue-se para o lado oposto.
No fundo, não sendo “antiturísticas”, mas censurando a “monocultura” (“Há mais sectores económicos”), as Worst Tours acabam por “usar o turismo como uma forma de crítica política”, explica o arquitecto. Os ideais são de esquerda e estão lá — Gui e Pedro são bloquistas, o segundo é membro da assembleia da Junta de Freguesia de Paranhos pelo Bloco de Esquerda. O quiosque, no fim de contas, encaixa nesta filosofia de “reabilitação crítica”. “Este sítio estava a pedi-las”, afiança Pedro. No mapa oficial do Turismo do Porto, na ampliação do centro, esta esquina não aparece — também os passeios acontecem geralmente fora desse "zoom". “É”, começa Pedro, como “uma charneira em plena turistificação crescente”. Para, quem sabe, começar a “mudar o mundo e depois Portugal”. “Bairristas internacionalistas”, assim se assumem, afirma Gui, enquanto entrega um "pin" com essa mesma inscrição. E conclui, olhando para o quiosque: “É ver uma joiazinha, um edifício, na cidade, ter pena que ele esteja em tão mau estado, querer-lhe bem, fazer-lhe bem, reabilitá-lo, dar cabo de nós, mas pensar para a frente.”