O esquecimento como arma política

Há um contínuo entre a política e os media dominado por um “jornalismo” sem edição, nem mediação.

O esquecimento é uma poderosa arma política que compõe a panóplia de mecanismos orwellianos que são uma parte importante da acção político-mediática dos nossos dias. O esquecimento é muito importante exactamente porque faz parte de um contínuo entre a política e os media dominado por um “jornalismo” sem edição nem mediação centrado no imediato e no entretenimento, com memória abaixo de passarinho. Ele vive hoje dos rumores interpares nas redes sociais, de consultas rudimentares no Google e não se dá ao trabalho sequer de ir ler ou ver como se passaram os eventos sobre os quais escreve e fala, há um ou dois anos. O tempo mediático é cada vez mais curto e isso é uma enorme oportunidade para uma geração de políticos assessorados por “especialistas em comunicação”, agências de manipulação e uma rede de influências no próprio círculo jornalístico, em que cada vez mais existe uma endogamia de formações, de habilidades e ignorância, de meios e métodos, e de confinamento social e cultural.

Esta osmose entre políticos e jornalistas faz com que os mecanismos orwellianos de esquecimento se tornem a norma entre personagens que vivem no presente, entre o Facebook e o Twitter, alimentando aquilo a que chamo “as polémicas do esquecimento”, polémicas que só existem porque ninguém se lembra de como era antes. É só como é hoje, e isso resulta num enorme empobrecimento do debate público.

Os debates sobre o Orçamento são disso um excelente exemplo, permitindo um festival de hipocrisia em que todos se envolvem numa dança à volta da fogueira da memória.

Usando a pobre classificação de esquerda-direita, de que nunca gostei mas que acabo por utilizar cada vez mais para simplificar, há uma interessante inversão de papéis. A direita é hoje uma entusiasta do investimento público, do fim da austeridade, de uma baixa generalizada de impostos, em particular para os mais ricos, do acelerar de “reversões” de medidas que ela própria tomou como sendo temporárias no IRS e — espante-se! — pouco entusiasta do controlo do défice e da execução orçamental, coisas “menores” que são obsessão deste Governo.

Comecemos por aquilo a que podemos chamar “polémicas do esquecimento”, polémicas que só existem porque não nos lembramos do passado. Elas são apresentadas como novidades e por isso têm valor mediático, embora só o esquecimento o permita. Duas dessas polémicas são reveladoras: uma, a de que o Orçamento “foi feito na praça pública”; e outra, a de que o Governo provoca com as suas medidas uma “instabilidade fiscal” sem precedentes, seguida da ideia mais perigosa, e mais errada, de que há “reversões” em medidas estruturais do Governo anterior.

O Orçamento  “foi feito na praça pública”? Sim, é verdade, e isso é mau. Só que não é novo. A tentação dos governos de usarem as “fugas” para a comunicação social para testarem medidas ou recuarem benevolamente em propostas mais duras é péssimo. Falta apenas dizer com clareza que o mesmo aconteceu nos governos anteriores, com o do PSD-CDS, em que também se usou a expressão “praça pública”.

Depois há a questão da “estabilidade fiscal”  e dos seus efeitos no investimento na previsibilidade do Estado. Há “instabilidade fiscal”? Sim, é verdade, e isso é mau em muitos aspectos, noutros não. O recorde da “instabilidade fiscal” foi batido pelo governo PSD-CDS, cujas medidas no plano fiscal foram dramáticas, como no caso do aumento “brutal” de impostos, mas também nas contínuas mexidas no IRS e no IMI, que faziam os responsáveis pela fiscalidade das empresas queixarem-se com fúria do que se passava.

Esqueceram-se? Esqueceram-se convenientemente. Esta instabilidade fiscal foi acompanhada de uma perda, igualmente “brutal” dos direitos dos contribuintes que já se iniciou no Governo Sócrates e conheceu um agravamento muitas vezes ilegal e inconstitucional no Governo PSD-CDS.

E o esquecimento atinge também vários tipos de “instabilidade fiscal”, como o aumento da TSU, ou a proposta de Passos Coelho de um imposto sobre a riqueza, eventualmente igual àquele que é hoje designado por “imposto Mortágua”.
E porque não dizer que Mariana Mortágua queria aplicar o “imposto Passos Coelho”’? O exemplo mais comum de “instabilidade fiscal” é o do rompimento do acordo PS-PSD-CDS sobre o IRC. De novo esqueceu-se que o acordo já estava rompido desde o início, porque ele compreendia não só o IRC como também o IRS. O Governo PSD-CDS apressou-se a aplicar a parte do IRC, mas nunca aplicou a parte do IRS. Mas uma vez esquecemo-nos convenientemente.

(continua)

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