Maria Sharapova e a “dopagem intencional”

A sanção de 15 meses de suspensão é excessiva porque se tratou de uma circunstância excepcional que merece, igualmente, um tratamento diferenciado.

1. A dopagem dos atletas russos nos Jogos Olímpicos teve uma exposição mediática abrangente, mas existem outros casos relativos a dopagem de desportistas russos que merecem, igualmente, uma atenção devida. No passado dia 4 de Outubro, tornou-se pública a sentença arbitral que resolveu um conflito desportivo entre a tenista Maria Sharapova e a Federação Internacional de Ténis (ITF).

Por detrás desta litigiosidade encontra-se, sumariamente, o seguinte contexto: (i) durante vários anos a atleta tomou reiteradamente um medicamento (Mildronate) que continha Meldonium, passando esta substância a figurar a partir de 2016 na lista de substâncias proibidas (e, portanto, dopantes) da Agência Mundial de Antidopagem (AMA); (ii) num dos testes de dopagem, Sharapova acusou a substância em causa; (iii) a desportista admitiu que violou as regras de antidopagem, não tendo negado a utilização da substância, mas declarou que se tratou de uma forma de prevenção da sua situação clínica e de uma utilização “não intencional”, e uma vez que desconhecia que o medicamento designado como Mildronate conteria a substância proibida, pediu que a suspensão preventiva de que fora alvo não redundasse numa sanção de dois anos; (iv) na sequência de um processo disciplinar, a atleta foi sancionada com uma punição de dois anos de ineligibilidade, tendo como fundamento a certeza da existência de um acto não intencional, mas que, ainda assim, aquela deveria ter evitado o resultado com o especial dever de cuidado que lhe assistia.

2. Neste conflito desportivo discutiu-se essencialmente se seria possível reduzir a sanção disciplinar da atleta com base no estabelecido no artigo 10.5.2 dos regulamentos de antidopagem da ITF, o qual exigia duas condições para que assim sucedesse: (i) que tivesse sido explicada a entrada da substância no organismo da atleta; (ii) que não se verificasse a “culpa ou negligência significante”. Neste contexto é importante reter também que a atleta demonstrou que havia “delegado” a tarefa do controlo do cumprimento das regras de antidopagem ao longo dos anos, em primeiro lugar, ao médico russo que recomendou a utilização da substância e, em segundo lugar e a partir de 2013, ao seu empresário.

3. O Tribunal Arbitral du Sport (TAS) entendeu que nem se deveria discutir se estava preenchido o primeiro critério, desde logo, porque as partes não disputaram o facto de a substância proibida ter sido ingerida pela atleta.

No fundo, a questão que se colocou perante o TAS foi precisamente se Maria Sharapova teve (ou não) um comportamento pouco condizente com uma obrigação regulamentar de fazer tudo o que estava ao seu alcance para evitar a violação de uma regra de antidopagem, de tal modo que se permitisse considerar que não existia um grau de culpa relevante na sua conduta.

Neste sentido, o TAS reconheceu que a escolha do empresário e a respectiva “delegação” do controlo do cumprimento das regras de antidopagem, além de coerente e normal no que toca a um atleta de alta competição, não se revelou como problemática até suceder o respectivo controlo de antidopagem positivo (o empresário cumpriu regularmente com as obrigações da atleta).

Deste modo importava saber se a atleta podia ser culpabilizada, de um modo relevante para os regulamentos, pela falta de supervisão da actuação do empresário no cuidado de verificar se o medicamento em questão continha uma substância proibida.

4. De um modo favorável à conduta de Sharapova, o TAS entendeu que a culpa desta não era significativa, segundo o disposto nas regras disciplinares, uma vez que a escolha e a “delegação” da competência no seu empresário foi uma opção razoável. Por outro lado, dado que este cumpria, desde 2013, regularmente as suas obrigações com diligência, verificava-se um reduzido risco no sentido de a atleta acreditar que iria violar regras de antidopagem se utilizasse aquele medicamento, na medida em que, por um lado, nunca tinha obtido um controlo de antidopagem positivo e, por outro lado, também não foi avisada especificamente pela ITF ou por outras entidades competentes que existiam novas substâncias proibidas.

Com efeito, o TAS afirma peremptoriamente – de acordo com as provas e o entendimento das partes – que não se trata aqui de uma atleta “batoteira” e, inclusivamente, que “em nenhuma circunstância se pode, deste modo, considerar que a atleta se dopou intencionalmente [que é uma “intentional doper”]”.

5. Esta circunstância coloca-nos algumas reservas, na exacta medida em que houve um consenso generalizado das partes e do TAS no sentido de a atleta não ser uma atleta dopada, mas surpreende-nos a decisão quando, ao constatar este facto, mantém uma punição substancial [15 meses]. É que, e ao contrário do que seria de esperar, admitiu que embora não havendo culpa significativa, o certo é que ainda assim existe alguma culpa, nomeadamente, por não ter tomado medidas adequadas para evitar a violação das normas de antidopagem (por exemplo, a supervisão da actividade do empresário a este respeito) ou por nunca ter admitido nos controlos de antidopagem que ingeria o medicamento Mildronate. Com efeito, o TAS aplicou com este fundamento uma sanção total de 15 meses (uma parte já cumprida pela atleta).

Neste contexto, é indispensável discutir, efectivamente, se a sanção de 15 meses aplicada uma atleta – que não teve reconhecidamente uma evidente intenção de se dopar – não é desproporcional, em particular, porque esta tem 29 anos e uma punição do género pode gerar danos incalculáveis na carreira desportiva de um praticante de alta competição. A nosso ver, a sanção do TAS é excessiva porque se tratou de uma circunstância excepcional que merece, igualmente, um tratamento diferenciado. Uma sanção de duração manifestamente inferior seria mais do que adequada a punir o incumprimento do dever de cuidado de supervisão do seu empresário desportivo.

Jurista, co-autor da monografia o Regime Jurídico do Tribunal Arbitral do Desporto

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