Guterres pelo olhar de quem trabalha com refugiados
Na quinta-feira, a Assembleia Geral vota para confirmar a nomeação de Guterres, que entra em funções a 1 de Janeiro. Como é que a escolha de um ex-responsável pelo ACNUR para secretário-geral da ONU é vista por quem esteve ou está no terreno?
Ao longo dos dez anos como Alto Comissário das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), António Guterres teve que gerir as respostas internacionais, nomeadamente europeias, aos pedidos de asilo de milhões de sírios, afegãos, iraquianos que fugiam da guerra nos seus países. E teve ainda que lidar com as reacções ao medo dos refugiados que construíram muros difíceis de pular.
A isso soma-se a imagem nem sempre positiva da ONU na gestão de conflitos. A guerra na Síria, e os seus efeitos, é dos dossiers mais quentes que terá entre mãos. Como é que a nomeação de um ex-Alto Comissário para os Refugiados para secretário-geral da ONU é vista por quem esteve ou está no terreno? A sua experiência na gestão da chamada “crise” de refugiados irá trazer mais-valia ao cargo - e esperança para quem trabalha diariamente na área?
Ouvimos três mulheres com experiências e opiniões diferentes sobre o papel do ACNUR e da ONU e as expectativas sobre o novo secretário-geral. A russa Sophia Glazunova, que trabalha com o ACNUR desde 2005, a síria Diala Brisly, que fugiu da guerra e tem feito voluntariado no Líbano, e a portuguesa Ana Cancela, presidente da associação Solidariedade Não Conhece Fronteiras, que esteve como voluntária em Vinojug, Gevgelija, fronteira da Macedónia e Grécia, em Outubro de 2015.
"Memória impressionante"
Lembra-se bem de Guterres, e lembra-se bem do facto de ele se ter lembrado dela da segunda vez que se cruzaram. E isso, neste cargo, não é um pormenor - significa que alguém trata as pessoas da equipa como “seres humanos”, e não está apenas a fazer política no escritório, diz por telefone a russa Sophia Glazunova. Ela trabalha no departamento de registro do ACNUR na Grécia (juntou-se ao ACNUR como consultora externa em 2005, esteve na Síria, Iraque, Sudão, entretanto faz parte do staff).
“Foi a melhor decisão que o comité tomou nestes sei lá quantos anos”, diz a partir de Atenas, Sophia Glazunova, de 40 anos.
No ACNUR, entre os colegas em outros pontos do mundo, a notícia foi recebida com imenso entusiasmo, conta. O feed do seu Facebook encheu-se de palavras de entusiasmo a dizer “venceu quem o merecia”. “A forma como as coisas mudaram durante o seu mandato foram muito positivas. Ele é um bom diplomata mas também um grande humanista, além de ser muito inteligente. Tem uma memória impressionante.”
Para ela uma das coisas que mudaram foram os projectos de apoio aos governos e a forma como os encorajaram a desenvolver os seus próprios programas. “Ele conhece os problemas por experiência própria; foi aos principais campos de refugiados, falou com as pessoas, sabe dos problemas através dos olhos dos refugiados, da equipa do ACNUR, dos governos. Percebe o nível de influência da crise dos refugiados no mundo, como afecta a vida em geral, a situação política, tudo - e por dentro. Isto cria um outro foco nos problemas e traz novas soluções: é isto que ele pode trazer de diferente.”
"É preciso conhecer a vida dos refugiados"
O papel da ONU nem sempre é visto com bons olhos, e Sophia sabe que, estando envolvida no cenário mundial, e dependente das relações internacionais, a organização pode não ser vista como neutral. É esta falta de neutralidade que a artista síria Diala Brisly, 36 anos, aponta. Ao telefone de Beirute, no Líbano, para onde foi fazer voluntariado com crianças (workshops de arte), trabalhando com várias organizações não-governamentais, ela tem um olhar crítico.
Fugiu da guerra mas nunca se registou como refugiada porque acha que o ACNUR não serve propriamente para protecção; funciona mais para quem não tem dinheiro - e ela não quis tirar o lugar a quem realmente precisa. Vive no Líbano há dois anos, depois de ter estado na Turquia.
Tem experiência breve de trabalho com o ACNUR mas chama a atenção.“Há pessoas que não querem recorrer à ONU por terem medo de ficar em perigo”, denuncia, lembrando o caso de um amigo que foi ameaçado pelo Hezbollah depois de uma entrevista no ACNUR. “As pessoas vão ter com o ACNUR para se sentirem seguras, não para serem ameaçadas”.
Não conhece Guterres, mas como alguém que trabalha com refugiados desde 2012 Diala Brisly acha que o facto de vir do ACNUR e de ter experiência no terreno é “obviamente muito importante”. “Por exemplo, há muitas organizações não-governamentais que chegam com os seus programas e acham que os podem aplicar em todo o lado. E não. Essas pessoas têm que sair dos seus escritórios. Os campos de refugiados são como um planeta diferente. Há pessoas que olham para eles sem se lembrarem que tiveram uma vida anterior a serem refugiados. É preciso conhecer muitas das suas vidas para perceber como é ser um refugiado”, conclui.
O que é óbvio para ela é que o ACNUR poderia fazer muito mais e sobretudo com os fundos que recebe. O que diria a Guterres? “Que a ONU fosse mesmo honesta e neutra. É preciso criar na ONU esta mentalidade: que parte do seu trabalho é ser neutral e não tomar partido”.
Acelerar pedidos de asilo
Ana Cancela, presidente da associação A Solidariedade Não Conhece Fronteiras, juntou dois camiões e um contentor com roupa quente e foi entregá-lo à Macedónia no ano passado - um incidente diplomático deixou o camião retido entre a Sérvia e a Macedónia, e o ACNUR ajudou a desbloquear a situação, daí que a sua opinião sobre António Guterres seja positiva.
Nessa altura, Ana Cancela ficou uma semana no campo de Vinojug, Gevgelijae, e desde que voltou tem continuado o trabalho, por exemplo, com recolha de donativos monetários. Os voluntários vãos aos campos e aplicam esse dinheiro no local.
O contacto com o ACNUR é consultivo, sobretudo quando a associação trabalha nos campos. Sobre António Guterres diz que “sempre foi uma voz activa, clara e fundamental do diálogo entre os países”. E espera “que continue a dar voz a esta crise humanitária no cargo que vai desempenhar”.
Lembra-se de ouvir Guterres no Porto, numa conferência em Serralves, dizer que “quem compra as armas e quem parte para o conflito são membros que têm assento nas Nações Unidas”. Ou seja, “espero que além de políticas de acolhimento mantenha a sua posição e faça pressão para que o cessar-fogo seja imediato e não apenas fogo de vista”.
Uma das coisas que a ONU poderia fazer melhor era a transferência dos refugiados que estão à espera na Grécia, por exemplo, para os países que os vão acolher: “Isto está a acontecer de forma lenta, desesperante”, lamenta. “O pedido de asilo é um processo extremamente moroso, absolutamente desesperante. A ONU poderia intervir no acolhimento mais rápido e na ajuda dos tratados entre países para o optimizar. As pessoas estão a desesperar, em campos de refugiados, presos, onde a comida é pouca - famílias inteiras, milhares, confinadas ao mesmo espaço! A ONU tem um papel fundamental de diplomacia e deveria intervir: não só estando no campo, mas dissuadindo os estados desta morosidade.”
Se há quem saiba desta situação é António Guterres, observa. Se terá capacidade para a inverter, o tempo o dirá.