“A circulação na linha já está normalizada”?

Queixas e mais queixas é o que se ouve quando se anda no metro de Lisboa. Falta de bilhetes, longas filas, circulação de comboios suprimida por horas. As informações ao cliente escasseiam e quem tem de usar este transporte começa a habituar-se aos transtornos. Tem mesmo de ser assim?

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O relógio marca 7h37 e na estação de metro do Campo Grande a fila de pessoas para comprar bilhete tem tempos de espera superiores a 15 minutos. A aguardar o início do dia estão estudantes universitários, trabalhadores e crianças com os pais, a caminho da escola. As máquinas de venda automática estão praticamente vazias. Na fila para o balcão de atendimento encontramos quem precisa de pedir passe ou comprar um novo cartão. Desde o início de Setembro que as máquinas de venda e carregamento de cartões não dispõem de novos bilhetes. O stock de cartões Viva Viagem esgotou-se devido a um problema com a empresa que os fornece e que se deverá manter até ao final do ano. Para contornar a situação, a Metro de Lisboa irá, em Novembro, disponibilizar tecnologia que permite ler outro tipo de cartões que não os que são usados agora pelos clientes. A diferença é que a empresa que os fornece (a Otlis) poderá produzi-los em fábricas diferentes, o que contornará as dificuldades de stock que causaram as perturbações.

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À falta de bilhetes nas máquinas de venda automáticas, os utentes têm de procurar balcões de venda - regra geral congestionados DR

Para já, quando alguém tenta comprar um novo cartão, a máquina limita-se a responder que a “venda de bilhetes não está disponível” e pede “desculpa” pelo inconveniente, sem adiantar qualquer outra informação.

Andar no metro de Lisboa já foi a alternativa mais rápida para fugir ao trânsito. Hoje, e apesar das obras nos vários pontos da cidade, não é certo que assim aconteça. Gracinda Barroso, de 63 anos, é uma das utentes que às 7h44 está à espera na fila. Vive nos arredores de Lisboa e quando chega à estação conta já cerca de uma hora de transportes públicos. É utente do metro há três anos e está cada vez mais insatisfeita. Como ela estão milhares de utentes. Só nos primeiros seis meses do ano, das mais de 4500 reclamações recebidas na Autoridade da Mobilidade e dos Transportes (AMT), metade foram justamente no sector rodoviário, com o transporte de passageiros a reunir grande parte das queixas.

Para além dos constantes problemas técnicos das infra-estruturas, nas escadas rolantes e elevadores (que constituem as principais queixas registadas na AMT), Gracinda reclama pelo congestionamento das carruagens. Conta que as queixas se repetem nas conversas que vai ouvindo no metro e lamenta nunca conseguir um lugar sentada. “Sinto-me uma sardinha em lata. Vou sempre de pé e bem apertadinha, para não ter frio”, ironiza.

Depois de meia dúzia de minutos de conversa, Gracinda não conseguiu dar mais do que dois curtos passos. “Não sei quanto tempo vou estar aqui, a fila não está a avançar nada”, admite. Vai encolhendo os ombros e espreita o único funcionário no balcão de atendimento. À sua frente estão mais de dez pessoas. O serviço “não tem condições”, lamenta. “À empresa interessa apenas o dinheiro dos passes”, acusa. Ainda assim, apesar do tamanho da fila, “já esteve pior”.

Mais 38 quilómetros de rede

De acordo com o Metropolitano de Lisboa, foi “alargada a rede de venda assistida (presencial) a todas as estações, dotando-as de postos dedicados à venda de cartões Viva Viagem e respectivos carregamentos”. No entanto, este alargamento não cobre todos os átrios e é preciso “acertar” no local onde o posto de venda está a funcionar. Na estação da Alameda, por exemplo, apenas a linha verde tem um balcão de vendas de títulos aberto ao público.

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No início das aulas, com a chegada dos novos alunos universitários cresce o número de pedidos de passe. As filas prolongam-se e os tempos de espera aumentam. Apenas duas das 56 estações que compõem toda a rede do metro cumprem este serviço. A estação do Campo Grande é uma delas, e é lá que Gracinda recorda “filas e filas enormes, que atravessavam todo o átrio principal, num ziguezague que não via fim”.

A explicação reside na falta de funcionários, uma vez que o número mantém-se praticamente o mesmo com mais 38 quilómetros de rede. Essa é também a justificação para o elevado número de estações de metro onde as saídas têm o acesso vedado e obrigam à entrada (ou saída) pelo lado oposto. Uma situação que se repete com frequência depois das 00h30, quando os seguranças começam a fechar as entradas e saídas do metro (que encerra à uma da manhã), obrigando os utentes que circulam nos últimos comboios a cumprir distâncias maiores.

Aos problemas financeiros do Metropolitano de Lisboa acresce-se ainda o pedido de indemnização do grupo mexicano ADO, que venceu a subconcessão do Metropolitano de Lisboa e da rodoviária Carris, anulada no início deste ano. Num comunicado tornado público a 21 de Setembro, a ADO exige ao actual Governo – que recuou na decisão de subconcessão do anterior executivo – uma indemnização no valor de 42 milhões de euros. Com a subconcessão aprovada a Fevereiro de 2015 o Estado previa poupar 215 milhões de euros durante um prazo de oito anos. 

Linha verde condicionada

O tempo vai passando e lentamente a fila vai avançando. Vinte minutos depois, Gracinda é (finalmente) atendida e consegue ir trabalhar. Em passo apressado, procura a linha verde que a levará até ao Areeiro. Nesta linha, que cumpre o percurso entre Telheiras e Cais do Sodré, os comboios circulam sempre com três carruagens por causa da estação de Arroios – mais pequena do que as restantes. As obras de ampliação estão prometidas para o próximo ano, mas até lá a linha verde continua a ser das mais condicionadas.

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São várias as pessoas que não conseguem entrar nas carruagens DR

Na mesma plataforma, mas do lado oposto, a linha amarela circula com seis carruagens. Um aperto ali, “com licença” acolá, mas ainda assim são dezenas as pessoas que ficam na plataforma por já não conseguirem entrar e são obrigadas a esperar cinco minutos pelo  metro seguinte. A maioria das pessoas já não estranha. “Esperamos pelo outro”, ouve-se comentar. Uns olhares para o relógio, uns suspiros para o ar e quando chega o próximo metro é altura de fazer mais esforços para entrar.

A um ritmo mais calmo, na linha vermelha, são 8h32 quando José Moreno entra no metro. Espera chegar em 30 minutos numa viagem que de carro (sem trânsito) lhe levaria dez. Ainda assim prefere, porque, “pior do que prever os atrasos no metro”, é lidar com o trânsito numa manhã de Lisboa. Mas qualquer dia “ainda compensa ir a pé”, graceja.

É uma terça-feira de aulas e, por isso, faz o caminho de todos os dias da Encarnação até à Cidade Universitária. Estudante do terceiro ano do curso de Direito e viajante frequente do metro de Lisboa, José é categórico: “Isto não é o desastre, mas eu nunca vi o metro assim.” Assim com atrasos diários, sem cartões disponíveis e falhas técnicas nas estações.

“Em hora de ponta, o intervalo entre os metros chega a ser de oito minutos, quando devia ser de quatro”, afirma José, preocupado, não com a espera de “mais quatro ou menos quatro minutos”, mas com a acumulação de pessoas no cais. Novamente, ao longo da viagem, há já quem fique na plataforma mesmo com o metro parado à sua frente: não há espaço.

A causa, aponta, é a “má gestão dos serviços” por parte da Transportes de Lisboa. José, de 20 anos, observa que um “purismo ideológico” impede a administração de pensar o metro fora da gestão pública. “Acho que mais vale um serviço privado que funcione do que um do Estado que não”, acredita e deixa a sugestão de criação de um modelo de concessão ao privado com um caderno de encargos obrigatório.

Um "inferno" de viagem

A expansão do metro deu-se numa altura em que o número de trabalhadores e o orçamento atribuído ao serviço foi reduzido. Desde 2011, saíram mais de mil pessoas das três empresas da Transportes de Lisboa – entre os quais trabalhadores do Metro, Carris e Transtejo –, mas o Ministério das Finanças já deu luz verde para a contratação de 30 agentes de tráfego para o Metro de Lisboa, como já tinha adiantado ao PÚBLICO Tiago Farias, gestor do grupo. A isso soma-se a diminuição do número de veículos em circulação. “O metro tem 111 composições, precisa de 90 para funcionar em pleno e tem 20 paradas”, referiu o gestor.

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 José teme que isso aconteça novamente: “Concordo que esta expansão do metro [para Santos e Estrela] seja necessária, mas, mais do que expandir, agora é preciso criar um metro que funcione melhor. Expandir pode ainda piorar as coisas.” A existência de duas novas estações e a afluência provável de mais utilizadores preocupa o estudante, que apresentou, no final do mês de Setembro, uma queixa junto da Deco e do Metro de Lisboa. Ainda à espera de resposta, José descreveu a situação como “vergonhosa”.

A maior parte do percurso faz-se pela linha vermelha que, a par da linha verde, “é uma das mais congestionadas do metro”. Nada o faz prever na Encarnação, onde o ambiente é calmo e familiar e o cais está longe de encher. Como previsto, à medida que se aproxima do centro, o espaço livre dentro da carruagem diminui. Ao parar na Alameda, os passageiros junto à porta são obrigados a sair para que os restantes possam fazer o mesmo. Depois voltam a entrar, para seguir viagem. Às 8h55 estamos no Saldanha, e o mesmo acontece.

Numa linha como esta, “a maioria das pessoas trabalha ou estuda, não é uma linha de turistas”, nota José. No entanto, não deixa de os afectar: “Os turistas assim pensam que estamos num país de terceiro mundo”, afirma. Uma expressão utilizada também por Paulo Afonso, brasileiro de 42 anos, que faz o percurso até à Alameda. Uma viagem que, nos meses de Verão, “era um inferno” por falta de ar condicionado, situação que o brasileiro a viver no Porto diz nunca ter visto noutra cidade.

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João Santos aponta as falhas técnicas dos serviços DR

Também João dos Santos pensa nisso cada vez que vê turistas, portugueses e estrangeiros, nas filas “bastante longas” das bilheteiras. Por falta de stock, só é possível comprar nas bilheteiras os cartões Viva Viagem, sem os quais não é possível viajar no metro. Isso sujeita os novos utilizadores aos horários das bilheteiras – nas estações que as têm.

Às 9h10, João, advogado estagiário de 27 anos, está a entrar na estação do Rato. À mesma hora, José chega à Cidade Universitária. Nas estações por onde os dois passaram esta manhã, nenhuma indicava o tempo de espera até ao comboio seguinte, algo que costuma constar no painel luminoso nos cais.

João veste um fato, “como manda o ofício”, e não vai carregado para o trabalho. Mas pensa em quem vai: “Nesta estação passam muitos turistas com mala, carrinhos de bebé, muita gente a ir ou a vir para o trabalho.” E pela frente, para quem sobe da estação do Rato para a rua, junto à Igreja da Nossa Senhora da Conceição, estão escadas rolantes com três lances paradas. “Estão assim há vários meses”, comenta. No aviso colocado pelo metro lêem-se reclamações escritas pelos utentes. “É uma vergonha, há quase um ano”, escreve um utente. “On vient de Paris rien pour l’escalator et encore en panne!”, queixa-se um turista, a 15 de Agosto.

Como José, João considera que a situação está longe de ser “dramática, mas tem havido uma quebra de qualidade, precisamente numa altura em que mais pessoas usam o metro”. Preocupa-o a falta de controlo e certezas quando ao serviço: “Eu sei que demoro 15 minutos a pé até à estação, mas não sei quanto demoro da estação ao trabalho”, uma incerteza que não era habitual no metro, afirma. “Mas é pior à tarde”, no regresso a casa.

De manhã, a viagem é curta: poucos minutos separam a estação do Rato da do Saldanha, onde João trabalha. A criação de uma estação em Santos bem que lhe poupava tempo na viagem que agora faz a pé, mas não apaga a lembrança das recentes obras no metro. “Falta resolver os problemas antes da ampliação e criar as condições para que as obras, em locais com estradas pequenas e eléctricos, como em Santos, não criem o caos”, considera João.

Durante a viagem costuma ouvir música ou ler o jornal, “porque a linha amarela o permite”, por ser mais silenciosa do que as restantes, diz João. Por seu lado, José Moreno admite que já desistiu de tentar conversar na viagem pela linha vermelha: o ruído das carruagens, que ambos acreditam ser “acima do normal”, deita por terra as tentativas de conversar, estudar ou ouvir música. “Teria de ter a música aos berros ou parar de conversar sempre que o metro está em andamento”, remata. O nível de ruído tem aumentado devido ao excessivo desgaste ondulatório dos carris por falta de manutenção. A redução da velocidade do metropolitano de 60 para 45 km/hora – estando a maioria da rede desenhada para velocidades de 70 km/hora – ajuda a diminuir o ruído, mas não apaga a insatisfação com a falta de manutenção e a qualidade do serviço.

"O metro não pára aqui!"

A manhã passa ao ritmo ora lento das carruagens, ora apressado dos utentes. Pelas 10h30, os vários turistas que chegam a Lisboa formam filas com mais de quatro dezenas de pessoas. Das seis máquinas de venda automática, duas estão fora de serviço. Os desafios à utilização do metro continuam quando, na estação da Alameda, mudam para a linha verde. De malas carregadas, são obrigados a subir pelas escadas, uma vez que o único elevador está fora de serviço. A sujidade acumulada denuncia que a situação não é pontual. O mesmo se repete nas escadas rolantes da estação do Marquês de Pombal, nas passadeiras rolantes de Entrecampos, nas intermináveis escadas rolantes da Baixa-Chiado e no Terreiro do Paço, estações assinaladas como preparadas para receber utentes com mobilidade reduzida.

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José já apresentou uma queixa, mas ainda não obteve resposta DR

Ainda na Alameda, a passagem da linha vermelha para a linha verde e a consequente redução de carruagens – apesar dos avisos nos painéis electrónicos do cais, em inglês e português – apanha várias pessoas desprevenidas. Do outro lado da plataforma, um homem gesticula enquanto avisa "o metro não pára aqui!", tentando convencer as pessoas a avançarem para a primeira metade da plataforma. Ninguém o compreende. Entre sorrisos e comentários, alguns vão tirando fotografias e fazendo vídeos, ignorando a “loucura” do  senhor bem-intencionado. A compreensão chega com o metro (curto) que obriga a corridas na plataforma.

A redução de carruagens encontra explicação não apenas no tamanho da estação de Arroios – até porque nela já circularam quatro carruagens. Os dados mais recentes recolhidos pelo PÚBLICO contam que neste momento existem pelo menos 11 comboios parados, alguns para fornecer peças a outras composições para que estas possam continuar a circular. Esta espécie de “canibalização” funciona como uma “solução” para contornar a impossibilidade de a empresa incorrer em novas despesas – uma imposição do Ministério das Finanças.

O horário de regresso a casa varia consoante as aulas ou o volume de trabalho. Às 18h27, o metro parte cheio da Cidade Universitária, “mas normal para a hora”, conclui José. O tempo do percurso ao final do dia “é uma questão de sorte”, avalia João, que como Gustavo Dias, de 24 anos, parte do Saldanha no seu regresso a casa. No caso de João, às 20h o tempo de viagem é curto e apenas adiado por cinco minutos de espera – em algumas linhas esse intervalo pode ultrapassar os 12 minutos. Tendo em conta que o metro teria capacidade para circular com três minutos de intervalo, “podia ser pior”, considera.

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Já Gustavo Dias ainda tem uma mudança de linha pela frente, na estação de São Sebastião, para a linha azul, em direcção à estação do Colégio Militar/Luz. Antes de entrar no metro tem de parar para recarregar o cartão. Está em Lisboa há quatro meses e utiliza o metro todos os dias há mais de um mês, mas ainda não conseguiu criar um passe mensal. “De manhã as filas de espera são sempre enormes e quando saio do trabalho os serviços já estão fechados”, explica. Enquanto não consegue fazer o passe mensal, perde tempo e dinheiro com o carregamento do Viva Viagem. E tempo é um factor importante. Para conseguir reduzir aquele que desperdiça entre o trabalho e casa para “mais ou menos 15 minutos, nos dias bons”, o passo é apressado entre as plataformas que tem de atravessar e as escadas que tem de descer. Quando tem de esperar, o tempo de regresso a casa pode duplicar.

Durante o último mês só apanhou duas interrupções na circulação. “Duas vezes em quatro semanas, não é assim tão mau”, desvaloriza. Ironicamente, é quando comenta que não costuma ter um regresso a casa muito congestionado que tem dificuldades em entrar em São Sebastião. “É uma sensação nova”, brinca, enquanto procura um apoio para a viagem. Duas estações depois, no Jardim Zoológico, a saída de várias pessoas para Sete Rios alivia o congestionamento. A viagem de Gustavo termina às 20h25 no Colégio Militar/Luz, mas a nossa continua, em sentido inverso, até ao Marquês de Pombal. A carruagem demora a arrancar.

Quando chegamos à linha azul, às 20h42, o tempo de espera para o metro seguinte é de 8 minutos e 40 segundos e na plataforma ouve-se a mensagem de que “a circulação já está normalizada”. Resta saber por quanto tempo.

Notícia actualizada: Acrescenta informação sobre nova tecnologia para leitura de bilhetes, que será introduzida no próximo mês para corrigir a falta de títulos de transporte.

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