Filipinas: “Choque e pavor”

No Ocidente, Duterte é uma figura grotesca. Não será o que pensam os asiáticos.

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Visto do Ocidente, Rodrigo Duterte, 71 anos, Presidente das Filipinas, é uma figura grotesca saída de um arcaico ou exótico universo e com as “mãos manchadas de sangue”. Impõe-se a interrogação: e se, para lá do grotesco, for mais um arauto de um inquietante mundo novo? Para os filipinos, é um líder credível. Cem dias após a tomada de posse, está nos píncaros da popularidade. Segundo a última sondagem, 76% dos inquiridos declaram-se “satisfeitos” com o seu desempenho. Lembre-se que foi eleito, em Maio, com 38% dos votos. Duplicou a popularidade.

Duterte (na foto) faz tremer Washington. Ontem, Manila suspendeu as patrulhas marítimas conjuntas com os americanos no mar do Sul da China. Quer aproximar-se de Pequim e libertar-se da “dependência dos Estados Unidos”. Sonha com investimentos chineses e propõe-se comprar armas a Pequim e Moscovo. Os americanos temem um desaire geopolítico. Os seus diplomatas e militares não se riem. “Com a Administração Obama a reorganizar os seus interesses na Ásia para servir de contrapeso à China, a relação com as Filipinas é mais importante do que nunca”, escreve em editorial o Washington Post. É o “pivot to Asia” que está em causa.

Duterte assume a responsabilidade pelos “esquadrões da morte” que assassinam e torturam toxicodependentes e dealers. Fê-lo nos 20 anos em que governou a cidade de Davao e fá-lo desde que é Presidente: 3300 execuções extrajudiciais, segundo a ONU e várias ONG. Identifica-se como “ditador, mas um ditador de sucesso”. Antes de eleito, avisou o Parlamento de que o dissolveria, se tentasse bloquear as suas iniciativas, passando a governar com a polícia e o exército.

“Filhos da puta”

Em resposta às críticas americanas por violação dos direitos humanos, tratou Obama de “filho da puta”, como antes fizera aos bispos católicos e ao Papa Francisco, em 2015, durante a sua visita ao país, onde rezou missa em Manila perante seis ou oito milhões de pessoas.

Há poucos dias evocou Hitler: “Massacrou três milhões de judeus. Nós temos três milhões de drogados e eu ficaria feliz em poder massacrá-los. Os alemães tiveram o Hitler e as Filipinas ter-me-iam a mim.” A seguir pediu desculpa aos judeus, dizendo não queria negar o Holocausto, mas não desmentiu a inspiração em Hitler. Pediu desculpa ao Papa e a Obama, dizendo que não quis ofender as suas mães, mas mantendo o insulto. Ele fala para os filipinos, não para o exterior. Note-se que figura de Hitler foi popular entre muitos nacionalistas asiáticos que o viam como um nacionalista antibritânico.

Duterte não deve ser tomado como mero provocador. Dizem os analistas que está a montar as peças de um regime autoritário, com uma estratégia nacionalista e populista. Quando insulta o Papa e Obama, está a lançar uma mensagem subliminar: atacar a Igreja é lembrar os 350 anos da colonização espanhola. Insultar Obama é denunciar a colonização americana (1898-1946). Por outro lado, mostra aos filipinos que têm um presidente que não teme dizer o que pensa — a sua imagem de marca.

As Filipinas são o mais pró-americano dos países asiáticos, com fundas ligações políticas e culturais com os EUA, que forma as suas elites — e os seus militares. As Filipinas são o país mais católico da Ásia: oficialmente, 90% de cristãos e 80% de católicos. Duterte propõe-se mudar o rosto e a mente dos filipinos. Não é regresso ao passado, ele quer desenhar o futuro: este projecto poderá ser também o seu calcanhar de Aquiles. Não nos antecipemos.

À conquista do poder

Duterte venceu as eleições contra os candidatos do establishment, com muito melhores máquinas políticas, relações familiares e dinheiro. Mobilizou aliados e designou inimigos. Era um político conhecido pela sua brutal eficiência. Transformou Davao de muito perigosa em muito segura. Repetiu a sua retórica contra o crime, as drogas, as máfias, a corrupção — apelou a “uma política moral”. Denunciou os adversários como “marionetas da oligarquia”. Venceu graças ao voto dos jovens, “aos seus ressentimentos acumulados e a um cansaço democrático”, resume um analista. Foram seduzidos pela sua “figura carismática”.

Defendeu temas de esquerda, com a eterna e frustrada reforma agrária ou a luta contra a pobreza e a desigualdade. Piscou o olho ao líder do Partido Comunista, exilado na Holanda. Atacou frontalmente a Igreja Católica, que se opõe a um programa maciço de contracepção. E prometeu a legalização do casamento gay.

Ao contrário do que muitos pensarão, anota o analista Richard Javad Heydarian, as Filipinas acabam de conhecer, sob a anterior presidência de Benigno Aquino III, um período de grande expansão económica que fez passar o país “de homem doente da Ásia” a “tigre ascendente da Ásia”. Mas a pobreza e a desigualdade persistiram e a frustração social aumenta com a visibilidade do crescimento económico. Tal como a corrupção cresceu, apesar de casos exemplares: muitos políticos e polícias foram julgados e a antiga Presidente Gloria Macapagal Arroyo acaba de sair da cadeia.

Resistências

Na política externa, Duterte tem um argumento forte: a China é um vizinho poderoso e em ascensão com o qual importa ter boas relações. Isto não implica uma política antiamericana, mas pode levar à recusa de fazer parte de um sistema de contenção da China. Ao contrário do que se poderia supor, na reunião da ASEAN no Laos (e depois de ter insultado Obama), Duterte foi muito saudado por alguns líderes asiáticos, a começar por Shinzo Abe, que o convidou a visitar o Japão, onde — disse — ele é “muito admirado”. Os americanos esperam que as posições de Duterte sejam sobretudo uma forma de pressão sobre Washington, para equilibrar as relações entre os dois países. É cedo para o saber.

Duterte vai encontrar oposições muito fortes. Muito depende da frustração das expectativas que criou. Os partidos da “elite”, de momento à defesa, têm uma grande capacidade de resistência e mobilização. A Igreja Católica é uma fortaleza, disposta a um compromisso, se o Presidente se moderar. Duterte está a fazer a corte aos militares. Mas os especialistas chamam a atenção para a importância dos seus laços americanos. Não estarão mentalizados para uma viragem de alianças. As guerrilhas islamistas e a ameaça latente do Estado Islâmico serão motivos de justificação da presença militar americana.

Duterte inspira-se na doutrina militar do “choque e pavor” (Shock and awe), baseada no uso de uma força esmagadora e espectacular para destruir no inimigo a vontade de combater. Assim fez em Davao, assim promete fazer no país para edificar um regime autoritário e nacionalista, armado com “esquadrões da morte”.

É mais um sinal dos tempos.

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