A Embarcação do Inferno regressa para decidir entre o batel divinal e a infernal comarca
Co-produção de companhias de Évora e Coimbra marca os cinco séculos da primeira encenação da obra de Gil Vicente.
No ano em que se assinalam os 500 desde a primeira apresentação do Auto da Barca do Inferno, o Cendrev, de Évora, e a Escola da Noite, de Coimbra, juntam-se para levar, mais uma vez, o clássico de Gil Vicente ao palco.
A Embarcação do Inferno, com estreia marcada para esta quinta-feira, no teatro Garcia Resende, em Évora, parte de versões mais antigas dos textos de Gil Vicente para apresentar no século XXI o célebre capítulo da dramaturgia portuguesa, que utiliza a viagem das almas para retratar os vícios e males terrenos.
Em conversa com o PÚBLICO, António Augusto Barros, da Escola da Noite, e José Russo, do Cendrev – encenadores da Embarcação do Inferno e directores artísticos das duas companhias – falam sobre o equilíbrio entre o peso dos clássicos e a relação desses textos com o público.
Um clássico é-o “porque nos vai dizendo coisas até hoje”, e este “exprime toda a força do texto vicentino”, define Augusto Barros. O encenador parte deste entendimento para se posicionar contra uma abordagem aligeirada dos clássicos, contra a “aproximação aos nossos tempos”. “Há que dar-lhe o peso que tem e a distância ajuda-nos. Este tipo de teatro exige um espectador atento”, avalia.
O recurso a formas mais arcaicas da língua não se constitui como uma barreira. “É como Molière ou Shakespeare”, exemplifica José Russo: mesmo numa plateia com menos erudição “a mensagem continua a passar”. É a dimensão popular destes textos, que contêm “a capacidade de comunicar e estabelecer relação com o público”. A forma como o texto é trabalhado tem a “preocupação de deixar as pistas” para várias leituras, entende o encenador.
Para montar o espectáculo, o ponto de partida é o trabalho de Paulo Quintela, que nos anos 40 se debruçou essencialmente sobre a versão do texto de 1562 (uma colectânea já editada pelos filhos do dramaturgo, mas que se acredita ter sido trabalhada pelo próprio antes de morrer), juntamente com um folheto de 1518, encontrado em Madrid nessa década. A pesquisa conta com a consultoria científica de José Augusto Cardoso Bernardes, estudioso dos textos vicentinos e actual director da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra.
À versão de Paulo Quintela, os encenadores adicionaram algumas expressões do folheto de 1518. “Leixar” em vez de “deixar”, “ua” no lugar de “uma”, por exemplo, para ajudar a contar a história de quem entra no batel divinal e de quem é merecedor da infernal comarca. Termos “mais saborosos”, de forma a conservar a linguagem vicentina e a não perturbar o verso nem a “preciosidade poética”, explica Barros.
A intenção dos encenadores foi conservar a viagem das palavras pelos séculos. Umas que ficaram parecidas com o étimo, outras cujo sentido se alterou. É também nesses detalhes que os actores trabalham: esclarecer com “acções e movimentos” um texto arcaico, acrescenta o encenador de Coimbra.
Juntando-se aos actores em palco, os bonecos de Santo Aleixo – marionetas tradicionais do Alto Alentejo – constituem uma das liberdades a que os encenadores se deram, tornando-se num “ponto de partida estético” na peça, explica António Augusto Barros, de forma a “convocar essa tradição”.
Em exibição em Évora até 30 de Outubro, a Embarcação do Inferno sobe depois para Coimbra, onde ficará entre 10 e 4 de Dezembro. Para o primeiro trimestre de 2017 está programada uma digressão nacional, estando já confirmada a passagem por Aveiro, Bragança e Viana do Castelo, em Janeiro.