Eu, quando era catraio e frequentava a preparatória, era na “aldeia dos macacos”, espaço de recreio recheado a pinheiros, caruma, areia e baloiços, que encontrava toda a brincadeira, todas as aventuras no topo das árvores, os joelhos esfolados na areia mais as calças rasgadas de todos os dias, sem que por isso viessem aí as nossas mães de mãos ao ar e credo na boca porque no dito recreio não morava uma caixa de primeiros socorros, um adulto sempre de plantão que nos dissesse o que era permitido, ou não, fazer, e como, um seguro contra todos e uma resma de papel em folha de 25 linhas com todas as medidas a tomar em caso de acidente.
E, se calhar, por não termos a tal resma é que o Francisco partiu a cabeça no 6.º ano quando o Tó lhe mandou uma pedrada à pinha. O Francisco não morreu nem contraiu uma septicemia, foi para os bombeiros e levou três pontos a sangue frio com uma dessas agulhas da caixa de costura, no regresso ainda deu umas lambadas ao Tó e hoje são grandes amigos.
Hoje, a “aldeia dos macacos” foi substituída por um pavimento infantil com placas de borracha, já não há areia nem árvores “derivado ao perigo para as crianças“, ou assim nos disse o presidente da junta, as áreas de recreio foram delineadas a régua e esquadro e no lugar dos baloiços de madeira, cujas farpas insistiam em cravar-se nas mãos e nas pernas, para gáudio do sistema imunitário, temos agora escorregas esterilizados no fim dos quais não há quaisquer hipóteses de nos matarmos e/ou partirmos os dentes, nem que nos atiremos de cabeça, assim logrando todas e quaisquer hipóteses de impressionar as ”garinas“ lá da escola.
Isto, se deixarem as crianças sair à rua. Hoje, as crianças já não podem sair à rua e estão entre as mais sedentárias da Europa. Porquê? Porque é perigoso, porque em cada adulto, um pedófilo, e hoje já não se pode confiar em ninguém, nem nos amigos, nem nos vizinhos, e noutro dia o Paulo teve de dar explicações à polícia por andar de mão dada com o filho num parque.
Não, hoje em dia temos telemóveis com ”touche“, ”tablets“, ecrãs led com ligação à net e computadores, todos ligados ao mesmo tempo para que os catraios não nos chateiem quando chegamos a casa cansados do trabalho, ou da falta dele. Para que, passiva e "ruminantemente", cresçam e engordem, felizes para todo o sempre. Pelo menos até chegarem à escola onde não existem nem audiovisuais nem quadros interactivos e onde os professores ainda pagam os paus de giz do próprio bolso à senhora contínua, sempre muito incomodada quando a interrompem a meio da leitura da ”Maria“.
E porque hoje as crianças já não podem sair à rua temos ginásios, onde as crianças que ontem corriam na ”aldeia dos macacos“ podem agora aprender a brincar com toda a segurança e conforto. Porque os Bernados deste mundo ainda só têm oito anos mas já são hipertensos e 40 quilos de peso falam sempre mais alto. Mas não só, pois ir ao ginásio também é fino e fica sempre bem dizê-lo em conversa com os amigos ou através daquela ”selfie no “Facebook”. Quando aprendi a andar de bicicleta malhei não sei quantas vezes a saltar por cima das tampas de esgoto. O Miguel, a pedalar freneticamente logo atrás de mim para dar um salto anda maior, ficou com os dentes da frente perdidos entre as gengivas e o volante da “bêémexis”.
De caminho, não deixámos de percorrer em duas rodas todas estas estradas que ainda nos correm no sangue. O teu sobrinho, no entanto, nunca vai poder andar de bicicleta. Da última vez que fomos a casa deixámos-lhe uma bicicleta novinha em folha encostada a um canto para pasto da ferrugem. Entretanto, já ficámos a saber que lá no ginásio tem uma bicicleta de ginástica só para ele. Só nos resta saber quem vai pagar a conta, se tu, se a tua mãe, e eu nunca me lembro de ter pago o que quer que seja para correr na “aldeia dos macacos” ou em cima da bicicleta.