O charme discreto do hotel de Devendra Banhart
No novo álbum Devendra Banhart imaginou uma música desnudada e sedutora para um hotel decadente do Japão, mas foi num requintado hotel em Lisboa que o fomos encontrar.
Quando surgiu na alvorada dos anos 2000 tornou-se rapidamente numa das figuras nucleares de uma nova geração de trovadores que absorveram a folk e o psicadelismo. Desde então lançou nove álbuns, cada um deles contribuindo para ampliar as grelhas de leitura da sua actividade, com alguns deles a fugirem ao enquadramento inicial do cantautor que sonhava ser Bob Dylan.
Não espanta que ao longo dos anos a sua obra ecléctica, onde por vezes cada canção parece render homenagem a uma época, país, espaço ou cultura diferente, foi sendo recebida de forma diferenciada. Muitos dos admiradores da primeira hora já não estão com ele. Mas outros mais aderiram à sua música e atitude charmosa. Como já acontecia no seu anterior álbum, Mala de 2013, no novo Ape In Pink Marble volta a apresentar-se melancólico, inspirado pela economia de gestos oriental, com o rendilhado hipnótico da voz e guitarra a predominar, apesar de haver abordagens não tão desnudadas.
Nasceu no Texas há 35 anos, cresceu na Venezuela, e reside actualmente em Los Angeles, tendo encetado nos últimos tempos inúmeras colaborações, nunca perdendo de vista amigos de longa data, como Antony ou Rodrigo Amarante, dedicando-se em paralelo à pintura e desenho e compondo a banda-sonora do filme Joshy de Jeff Baena. Agora aí está o novo álbum, uma viagem de delicadeza agridoce, protagonizada por personagens que se movem entre o mundo real e o imaginado, por exemplo, a partir de um hotel.
Foi aí, no Pestana Palace, em Lisboa, que o fomos encontrar, matinal, de fato, gravata e sandálias, afinando a sua guitarra e perguntando se poderia tocar apenas um pouco antes de começarmos a entrevista. Ora essa.
É o tipo de indivíduo que possui uma relação fetichista com algum tipo de objectos como a guitarra ou é imune a esse tipo de comportamento?
Sou desprendido. Enfim, não sei bem. Toco com qualquer uma desde que seja eu a escolhê-la. Esta é minha. É antiga, de 1967. Mas já foi de outras pessoas e haverá de ser de outras ainda. Sou pela recriação e partilha. Falamos desta guitarra, mas poderia ser das minhas calças, da camisa ou do hotel. Um dia destes serão de outras pessoas. Espero sinceramente que esta camisa seja remisturada e transformada nuns calções ou num chapéu…[risos].
O que faz com a sua música é isso, recriar qualquer coisa com uma estrutura reconhecível, tentando transformá-la a partir dessa base?
Não sei. Nunca pensei nela dessa forma. Quando era novo sentia que tinha de provar que sabia a história de uma série de géneros musicais e misturava-os de uma forma precisa. Era como se quisesse demonstrar a toda a gente, e a mim próprio, que sabia a história de todos aqueles géneros e como interpretá-los. Agora limito-me a imaginar o que pode funcionar melhor para as letras que tenho. É tão simples como isso. Não tenho um género definido com o qual me identifico mais. Vou tentando aclarar para mim próprio o tipo de linguagem que quero desenvolver e depois as pessoas dizem o que lhes dá na gana. A maior parte das vezes dizem que o que faço é alternativo. Ok.
Como sabe essa classificação depende de quem a faz. Quando começou, na alvorada dos anos 2000, simbolizava para muita gente um certo espírito independente, mas hoje integra uma grande editora e estamos aqui neste luxuoso hotel. Por norma, quando isso acontece, e durante esse percurso, perdem-se e ganham-se novos entusiastas.
Sem dúvida. Em minha defesa só posso argumentar que ao longo dos anos fui tentando ser o mais honesto possível comigo próprio e com os outros e que sempre tentei rodear-me e trabalhar com pessoas que respeitavam a minha forma de estar. E devo dizer que, num balanço genérico de todos estes anos, não me posso queixar. Agora nunca se pode controlar tudo. Compreendo que para muitas pessoas estar neste hotel possa ser uma aspiração, mas não tem que ser o meu caso. Depende de muitas coisas.
Curiosamente, numa entrevista recente, dizia que havia imaginado um hotel como cenário para o seu novo trabalho. Quando parte para a feitura de um álbum começa por pensar um determinado ambiente estético?
É verdade, mas era um hotel muito diferente deste, pelo menos era mais decadente... [risos] Mas atenção: não quis fazer um disco com música para se ouvir em hotéis. Apenas imaginei uma certa estética, situando-a no Oriente misterioso. Adoro o Japão, a poesia, a música, a comida e o cinema. E começamos a pensar como seria fazer música assim, algo desnudada, minimal e charmosa, o que nos deu uma boa direcção do caminho a seguir, a partir dessa evocação inicial. Aprendi até a tocar koto, que é um instrumento clássico japonês. Mas nem sempre começo por aí. Depende. No caso deste último disco aconteceu isso: imaginar um lugar específico, um hotel antiquado no Japão, de onde esta música brotaria. O que não faz deste álbum qualquer coisa de conceitual. Isso é outra coisa. Por norma tendo a achar que os álbuns com um conceito preciso são difíceis de comunicar mas existem excepções como os últimos discos de Bat For Lashes ou Anohni, que perseguem uma linha clara do ponto de vista artístico, explorando do início ao fim arquétipos muito precisos. O álbum de Anohni, então, é muito poderoso.
O álbum de Anohni é o exemplo de um disco que tenta interrogar a realidade do mundo actualmente do ponto de vista sociopolítico. O seu álbum pelo contrário possuiu um olhar mais interior. Em algumas canções, como na inicial, Middle names, parece mesmo ser um disco sobre a perda.
Sim, é verdade que não é álbum politizado como o de Anohni mas acabo por pegar em alguns tópicos que podem remeter para aí, como em Good time Charlie, onde o subtexto pode ser a violência policial nos Estados Unidos, mas transformada por mim numa patetice qualquer relacional. Não sou muito bom a escrever esse tipo de canções. É verdade. E quando tento, por norma, arrependo-me…[risos]. Talvez por isso este álbum adopte um ponto de vista mais estético. E sim é também um disco sobre várias perdas. Não faço música no sentido catártico, mas é verdade que nos últimos tempos vi partir algumas pessoas e esse tipo de emoções acabam por estar em algumas canções.
Situa o álbum, em termos de imaginário, no Japão e isso sente-se em sonoridades e ambientes. Mas também se sente a sua costela sul-americana ou uma certa melancolia californiana. Faz sentido isto?
Totalmente. Embora possa dizer que é também uma coisa japonesa, essa da recriação, como falávamos inicialmente. Eles são obcecados pela reciclagem. Algumas das melhores bandas de salsa são japonesas, por exemplo. Adoro isso, a capacidade de pegar em alguma coisa, refinando-a ou aperfeiçoando-a e muitas vezes tornando-a em algo mais interessante. Claro que nesse movimento de apropriação perde-se sempre algo. Sei isso quando começo a tocar bossa nova ou samba, que não são géneros que me sejam inatos [nisto volta a pegar na guitarra e toca um pouco de bossa nova].
Rodrigo Amarante não lhe ensinou a tocar bossa convenientemente?
Pelo contrário, ele está sempre a dizer-me para desistir… [risos]. Por vezes mostra-me como se faz, mas há sempre um momento em que me diz que não estou a compreender porque não sou brasileiro. A versão da bossa nova pelo Rodrigo é luminosa, como se fosse filmada pelo Terrence Malick. A minha corresponde mais ao restaurante brasileiro para turistas na Cidade do Cabo. Enfim, estou a exagerar. Os sons sul-americanos sempre me interessam. Não estou a explorar qualquer coisa que seja totalmente exótica para mim. O Oriente, sim, intriga-me. Embora esse mistério seja uma construção Ocidental. Da mesma forma que Hollywood vende uma versão de si própria ao mundo.
Sim, vive numa das cidades que mais tem feito por comunicar imaginários ao mundo, através de Hollywood. Como é viver em L.A.?
É estranho! É uma cidade que não foi concebida para seres humanos. Não se pode andar a pé em quase nenhum lado. É humilhante. É por isso que passo a maior parte do tempo em casa. Estou muito agradecido por haver inúmeras aplicações que me permitem encomendar comida para casa. Estou a exagerar, porque escolhi um bairro onde se pode andar a pé um pouco. É um bairro latino, predominantemente mexicano, o que é óptimo, porque posso falar com os meus vizinhos em espanhol o que os surpreende. Posso ir ao café ou ao supermercado a pé o que é um luxo, mas na maior parte do tempo estou em casa. Tenho as minhas rotinas. Encontrei um espaço de liberdade na minha vida enquadrando-me em certos rituais, o que pode parecer paradoxal. Mas é nessa disciplina que encontro a minha liberdade.
Mas que tipo de disciplina, ou de rituais, são esses de que fala?
Coisas simples. Depois de acordar, gosto de ficar comigo próprio, mais tarde ando um pouco a pé, vou ao café, leio as noticiais, vejo alguns emails. Tento fazer tudo de uma forma lenta e tranquila. Até a lavar os dentes o faço em câmara-lenta... [risos] E faz-me sentido porque o resto do meu ano é feito a correr, voos, ensaios de som, hotéis, entrevistas. Daí que necessite de um contraponto a essa excitação. Não me queixo. Acho que é um luxo estar aqui a falar consigo e mais tarde poder conhecer melhor esta cidade. Às vezes, as digressões são cansativas, mas também posso dormir numa ilha, sem carros, apenas o vento entre as dunas, como aconteceu na Holanda. Se não fosse a digressão nunca iria conhecer aquele sítio e só posso estar agradecido por ter conhecido partes do mundo que de outra forma nunca conheceria.
Já falou do ambiente que tentou transportar para o disco e qual é a ligação entre as letras e a composição dessa mesma atmosfera?
A minha arte visual é totalmente separada daquilo que escrevo. O cenário das canções não tem que ter uma ligação com aquilo que canto. É como se criasse uma plataforma para as palavras. Escrevo todos os dias, mas gosto de um tipo de escrita onde com poucas palavras se diga muito. Mas escrever é uma prática. Faz parte do meu dia-a-dia. Não é um impulso que nasce de algo imperativo que desejo expressar de forma catártica. O que não significa que não seja excitante, que não me venha de dentro, ou que não possa ser revelador. Há sempre qualquer coisa de autobiográfico nestas coisas.
Nunca se censurou a si próprio, no sentido de pensar que determinada coisa que escreveu ia longe de mais, era demasiado reveladora acerca de si próprio ou poderia colocar em causa terceiros?
Já me aconteceu. Uma vez escrevi uma canção íntima que falava de uma situação específica, de uma certa pessoa, de um certo acontecimento, e achei que seria embaraçoso e demasiado vulnerável expô-la. No entanto estava muito excitado com aquela canção, não a queria perder e decidi então que poderia dar-lhe a volta encontrando outro enquadramento. Mas não consegui, o que foi frustrante porque às vezes as canções funcionam como mensagens que se enviam ao mundo – é como atirar uma garrafa ao mar com um envelope lá dentro na esperança de que alguém a apanhe. É como se na nossa fantasia o mundo pudesse ver, através daquela canção, quem verdadeiramente somos, para lá de todos os equívocos.
Depois de ter criado um imaginário orientalizado para o disco, é de esperar que iremos ver em palco qualquer coisa de semelhante?
Não creio. Às vezes vou ver concertos com projecções, imagens, vídeos ou teatro e fico a achar que tudo aquilo é o máximo. E muitas vezes é mesmo verdade. Mas quando começo a pensar em fazer algo de semelhante desisto logo. Não é para mim. Funciono apenas com a minha energia. O meu foco é esse. Se dessa forma conseguir transportar as pessoas para um lugar tranquilo e introspectivo, que pode ser o tal hotel oriental, ficarei satisfeito.