Aos leitores do PÚBLICO — e a todos os outros
Acredito com firmeza que o PÚBLICO vai viver por muitos e bons anos.
Lembro-me muitas vezes da frase que a Cristina Ferreira, minha colega no PÚBLICO há 27 anos, diz quando tem um artigo pronto a publicar. “Foi o melhor que consegui. Tem de certeza erros… mas ainda não os encontrei.”
Sempre gostei desta definição de jornalismo. O que fazemos é tornado público apesar de tudo. E dentro das circunstâncias. Sempre imperfeito, partilhamos o nosso trabalho com os leitores todos os dias, a todas as horas.
Hoje é o meu último dia como directora do PÚBLICO. Calcei estes sapatos transitórios durante sete anos. Secretamente, nunca quis que fossem tantos. Como nas Nações Unidas, nas empresas ou nas câmaras municipais, é fundamental renovar as chefias e encontrar, na frescura de um novo olhar, formas diferentes e melhores de fazer as coisas. Idealmente, com mandatos pré-definidos e conhecidos por todos.
No Verão de 2009 dei um salto da cadeira — literalmente — quando a Cláudia Azevedo me disse de rompante, sem introdução nem aquecimento, que queria que eu sucedesse ao José Manuel Fernandes. Pensei num pára-quedas, mas esse é um objecto que os escritórios da Sonaecom não costumam ter à mão. A alternativa foi começar a fazer coisas. Nos últimos anos, muitas coisas mudaram no jornalismo. Outras estão inalteradas desde o século V a.C., quando Heródoto foi viajar pelo mundo à procura de respostas para a pergunta “Quem é que começou a guerra?”.
Nestes sete anos, fizemos 2500 edições em papel, ao mesmo tempo que crescemos como marca digital; criámos o fundo “Público Mais” com o apoio de empresas com perfil filantrópico; aumentámos de 16 mil seguidores no Facebook para um milhão; expandimos para o Brasil, onde temos 1,5 milhões de leitores; ganhámos seis prémios Gazeta em seis anos seguidos, numa linha contínua que não acontecia desde a fundação do jornal: a Sofia Lorena, com a série de reportagens no Iraque, em 2010; o Paulo Moura, com a cobertura da Primavera Árabe, em 2011; o José António Cerejo, com a investigação sobre a Tecnoforma, em 2012; a equipa liderada pela Catarina Gomes, com o projecto “Filhos do Vento”, que incluiu o Ricardo Rezende, o Manuel Roberto, o Dinis Correia e a Andreia Espadinha, em 2013; o Manuel Carvalho e, de novo, o Manuel Roberto, com o trabalho sobre os 100 anos da I Guerra Mundial, em 2014, e este ano a Sibila Lind — a jornalista mais nova do jornal — com o vídeo Anatomia de uma ópera. Destes seis Gazeta, quatro foram financiados pelo fundo do “Público Mais”. Todos envolveram equipas multidisciplinares e muita investigação. Talento e tempo. E por isso é imperioso dizer duas palavras aos mecenas deste fundo inovador: muito obrigada. E acrescentar isto: continuem a acreditar e a apoiar o “Público Mais” de forma desinteressada. Neste tempo de corrida de cavalos, é fundamental lutar pela profundidade e pela investigação no jornalismo.
Pelo caminho, iniciámos a prática das Provas dos Factos e vamos a caminho das 100; deixámos de ser um jornal que “faz textos, fotografias e desenhos” e passámos a fazer reportagens multimédia tão acutilantes que as televisões as incluem nos seus noticiários em prime-time. Ganhámos dezenas de prémios de grafismo, webdesign e infografia. Fomos o jornal mais bem desenhado da Europa. Criámos um sistema de paywall nas plataformas digitais, um passo que, se empurrou alguns leitores para os sites “sem muro”, contribuiu para aumentar as receitas e fidelizar leitores digitais dentro e fora de Portugal. Num gesto inexorável que o mercado acabará por acompanhar, fomos pioneiros e temos hoje uma base de assinantes digitais que, embora não garanta a necessária solidez financeira, é uma peça importante no complexo puzzle da sustentabilidade de um jornal que não cede ao populismo nem à tentação do clique fácil.
E, last but not least, acabámos de ganhar um financiamento de meio milhão de euros do Fundo de Inovação da Google com uma ideia do João Pedro Pereira, o mais geek de todos nós: dar ao leitor um pacote de informação personalizada, seleccionada com base no tempo que o leitor esteve sem consultar o PÚBLICO online, na hora a que regressa, nos seus interesses e hábitos de leitura, se usa um telemóvel, um tablet ou um desktop.
Saio orgulhosa do que fizemos, mas descontente com o jornal que damos aos leitores. Queremos sempre mais e melhor. Este é o problema. O nosso excel das frustrações é longo. A gestão do pipeline dos projectos digitais — o facto de hoje usarmos a palavra pipeline diz bem sobre o muito que mudou nas redacções — exige contemplar os meios (escassos), as ambições (grandes) e a pressão da actualidade e da concorrência (imparáveis). Há projectos há meses no pipeline. Fazemos sempre menos do que queremos — em todas as frentes. Pusemos “o Sequeira no lugar certo”, mas todos os dias vamos para casa insatisfeitos.
Os jornais são feitos por muitas pessoas. Aqui, somos quase 200. Já estou a ouvir a Teresa de Sousa dizer em voz alta no meio da redacção: “Lá estão vocês com a mania de que somos todos iguais!”. Não somos. O nosso querido Miguel Gaspar, de quem sentimos tanta falta, era seguramente diferente. À redacção, quero agradecer o esforço, o brio, a inteligência, a cultura e a imaginação. Aos directores-adjuntos agradeço tudo isso e mais uma coisa: a resiliência.
Vencerá o jornalismo que for relevante, incómodo, ético e independente — já agora, o único pelo qual vale a pena perder o sono. Sobreviverá quem conseguir manter isso e ao mesmo tempo chegar aos leitores, conquistar assinantes e publicidade.
Essa é a pergunta “um milhão de dólares”. Dizer que os jornais estão numa complexa encruzilhada é um cliché gasto, sobretudo desde que começaram a fechar jornais nos Estados Unidos e as previsões apontavam para mortes em cadeia. A cascata negra não se confirmou. Mas depois de os gurus terem dito tudo e o seu contrário sobre como vai ser “o futuro”, estamos na mesma quanto ao essencial: só os doidos têm certezas sobre como vamos estar daqui a dez anos.
Há uns dias, um desses gurus internacionais disse-me que “o futuro” depende de uma única mudança: os jornalistas perderem o pudor e assumirem de que lado estão. “Se querem ter audiência, os jornalistas têm de dizer aos leitores o que pensam, têm de dar a sua opinião em tudo o que escrevem! Se querem o engagement dos leitores, têm eles mesmos de se engajar. Esta é a tendência mundial, não podemos fugir dela!”
Não concordo.
No dia em que cruzarmos essa linha e deixarmos de identificar o que é opinião damos cabo do jornalismo. Mesmo que, na nossa imperfeição diária e perpétua, pisemos o risco muitas vezes.
Todos sabemos que os gurus que há uns anos defendiam que “o futuro” era o “jornalista-mochila” (mais multidisciplinar e versátil) defendem agora que “o futuro” é fazer “pouco mas bom”. No PÚBLICO, gostamos de mochilas cheias de máquinas, mas sempre acreditámos na profundidade — em texto ou em imagem, parada ou em movimento. A forma e o meio são importantes, mas primeiro é preciso boas ideias. É isso que os leitores querem. Não se trata de um feeling. Os números demonstram-no. Muitas vezes, os trabalhos mais longos, que exigem mais trabalho e investigação, são os mais lidos, os mais comentados, os mais partilhados. São os que ficam. E com a ajuda do digital, têm hoje uma vida mais longa. O digital obrigou-nos a ser mais exigentes; deu-nos ferramentas que aproximam os leitores de assuntos relevantes e tornam mais atraentes temas pesados e complexos; fez chegar o jornalismo a muito mais pessoas (o PÚBLICO tem hoje mais leitores do que alguma vez teve na sua história); ajudou a passar fronteiras (temos leitores nos quatro cantos do mundo); aproximou jornalistas e leitores; fez aumentar a transparência.
Mesmo assim, há sempre alguém que pergunta: “Como vai ser o PÚBLICO no futuro?”. Ninguém tem a resposta e essa é uma incerteza própria desta década. Eu acredito com firmeza que o PÚBLICO vai viver por muitos e bons anos. Não é por ser optimista. É porque o PÚBLICO tem a sorte de ter um accionista, uma nova direcção e uma redacção que querem que isso aconteça.
E os melhores — e mais exigentes — leitores.