Folio, um festival literário que faz viciados

Andar pelo festival de Óbidos pode tornar qualquer um dependente de festas que metem livros e escritores. Entre eles pode estar aquele que diz que Pessoa vem do espaço e que os islandeses inventaram os elfos para sobreviver a seis meses de Inverno sem sol, quando não havia ainda electricidade.

Na vila história, os livros invadem ruas, igrejas, mercearias
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Na vila história, os livros invadem ruas, igrejas, mercearias Miguel Manso
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O escritor islandês Jón Kalman Stefánsson Miguel Manso
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Óbidos e literatura é uma mistura que pode criar habituação. Aviso: um viciado no Folio pode ficar agarrado para toda a vida.

“Realismo mágico? Está em todo o lado”, disse o islandês Jón Kalman Stefánsson. “Desde logo na Bíblia. Cristo a subir ao céu, como um foguetão, que é isso senão realismo mágico?” Sábado, nove da noite, Tenda dos Autores. José Riço Direitinho conversa com Stefánsson sobre o fascínio da nova literatura nórdica. Pergunta-lhe pela influência de Halldór Laxness, o Nobel islandês que, segundo os próprios autores sul-americanos, é o verdadeiro pai do realismo mágico, a corrente literária que geralmente conotamos com Gabriel García Márquez ou Julio Cortázar.

Stefánsson, louro, blaser preto e camisola às riscas, vai discorrendo em inglês, num tom que primeiro nos parece agressivo, depois faz rir. Esforça-se por demonstrar que não há nada de específico na literatura nórdica. Direitinho tenta falar do frio, da tristeza provocada pelo clima, mas ele responde que, quando está frio, se veste um casaco; e que, em Portugal, não foi por estar calor que se deixou de inventar o fado. “Eu, se tivesse de viver com 40 graus, optava pelo suicídio.”

No entanto, na forma como disse tudo isto, lá estava o seu estilo: nórdico. A Islândia vive metade do ano na escuridão, contou. E isto era literal até se ter inventado a electricidade. Agora, está sempre iluminada. “Acho que tomámos demasiado à letra a frase de Deus ‘Faça-se a luz!’ Acenderam luzes por todo o lado. Quando levei o meu filho ao campo, ele viu a escuridão pela primeira vez na sua vida. Começou a chorar.”

Mas quando não havia electricidade, foi preciso inventar qualquer coisa para tornar suportáveis os seis meses de Inverno sem sol, explicou o escritor. “Surgiram os elfos e outros seres fantásticos. Temos poucos habitantes. No século XVIII, quase nos extinguimos. Nós contámos essas histórias para sobreviver. Agora chamam a isso realismo mágico…”

Numa banca à entrada da tenda, onde decorrem os principais encontros com escritores, está à venda Paraíso e Inferno e outras obras de Stefánsson, editadas pela Cavalo de Ferro. Os exemplares disponíveis esgotaram.

O viciado no Folio levanta-se, no fim da sessão, e pensa: se o humor deste homem alimentar a narrativa dos seus livros, valerá a pena lê-los.

Em todas as suas intervenções, não citou nenhum autor. Só falou de Pessoa quando lhe perguntaram pelos escritores portugueses que conhecia, e foi para dizer que ele não era português, vinha do espaço. E falou de Portugal para demonstrar que, se sendo um país tão pequeno conseguiu ser campeão europeu, então no futebol e na literatura tudo é possível.

Uma conversa destas não é literatura, mas revela o estilo do autor. Se nos agrada, é provável que os seus livros nos agradem ainda mais. Alguma coisa terá de nos orientar nas escolhas literárias.

O mandarim e o robô

Neste mesmo lugar, na mesa das três da tarde, o crítico literário brasileiro Miguel Sanches Neto queixou-se do colapso da crítica literária e do jornalismo cultural, factos que constituíam aliás o tema da sessão. Desapareceu a figura do “mandarim literário”, como lhe chamou, na mesma mesa, Pedro Mexia, e ficámos sem quem nos guiasse, nos dissesse o que devemos e não devemos ler, entre as dezenas de milhares de livros publicados cada ano.

Mas temos agora uma espécie de “guia robótico”, em forma de aviso na base das páginas literárias online, que diz: “quem comprou este livro também comprou este e este…” O viciado no Folio tem de concordar com Miguel Sanches Neto quando ele diz: “Alguém tem de nos apontar caminhos. Nem que seja um robô.” Porque “os textos que surgem nos jornais, sobre os livros, são cada vez mais parecidos com os das badanas e contracapas dos livros”, disse o crítico João Pedro George, no mesmo debate.

O colapso não é portanto da crítica, mas da crítica nos jornais, e dos próprios jornais, explicou ele . “Os vínculos da indústria cultural com os jornais e revistas são uma realidade.” Não obstante, “a crítica está mais viva do que nunca”, mas noutros suportes, que incluem blogues, sites temáticos, redes sociais. O anúncio da sua implosão insere-se no discurso catastrofista que se compraz voluptuosamente no desastre, como em Crash, de J.G Ballard. “A crítica tem uma tendência para a eutanásia”, disse George. E, referindo Fredric Jameson, resumiu o que lhe parece ser um tique contemporâneo muito pouco inocente: “É mais fácil imaginar o fim da Humanidade do que imaginar o fim do capitalismo.”

O viciado no Folio terá de vir munido de alguma disponibilidade mental e distensão, para assistir a conferências, debates e aulas sobre temas tão variados como “Matemática e literatura no Renascimento”, “Como se constrói um romance histórico”,  “Novos rumos para as literaturas sul-americanas”, “O lugar do fantástico na literatura lusófona actual e a criação de universos imaginários”, “Consciência e utopia nas literaturas africanas de expressão portuguesa”, ouvir recitar poetas, uns consagrados, outros amadores, assistir a concertos, ver exposições. Caminhar pela rua Direita, desde a entrada da muralha, até à igreja transformada em livraria, entrar no mercado de produtos biológicos expostos nas estantes juntamente com livros, sentar-se nas esplanadas ao lado de José Gil, Sérgio Godinho, José Eduardo Agualusa, Luiz Ruffato ou Breyten Breytenbach, tudo isto é o Folio e a experiência festiva que ele deseja proporcionar.

Mas o viciado no Folio veio cá também com um objectivo mais pragmático: isto tem de se lhe ser útil. “Já conheci, pelo menos, três autores de que nunca tinha ouvido falar, e de que passarei a ser, acho eu, leitora fiel”, diz Deolinda Soares, 53 anos, funcionária pública nas Caldas da Rainha. “Estou aqui principalmente para conhecer autores brasileiros, porque me interessa essa literatura”, diz Carlos Pereira, 34 anos, professor de Lisboa. “Vender garrafas de vinho numa igreja, nunca tinha visto nada assim. Os livros, acho bem, mas o álcool? Inadmissível”, diz uma mulher na casa dos 60 e sotaque madeirense.

O viciado no Folio quer perceber o que leva os escritores a escrever. Ouve Rui Cardoso Martins explicar como, na construção de uma personagem de Deixem Passar o Homem Invisível, teve de estudar a forma de orientação dos cegos. E recebeu, de um cego, o maior elogio da sua vida literária: “O Senhor Rui, desculpe, mas o senhor até parece ceguinho.”

Ou Stefánsson explicar como tem a Islândia, país pequeno onde não acontece nada, tantos escritores de policiais: “Somos tão poucos, que não podemos matar tanta gente como vocês podem. Porque poderíamos desaparecer. Mas somos humanos, precisamos de matar. Então matamos pessoas nos livros, tal como vocês as matam nas ruas.”

O viciado no Folio pensa que é uma explicação plausível. Mais do que esta, que o autor tentou antes: “Como temos agora milhões de turistas no país, escrevemos aquelas histórias terríveis para os assustar e convencê-los a irem embora.”

O jornalista está em Óbidos a convite do Folio

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