Museus Nacionais e autonomia: a dura realidade

Atento o universo da DGPC, salta à vista que só os monumentos mais emblemáticos conseguem ser superavitários – e até altamente rentáveis.

Encontra-se no horizonte a saída do Museu Nacional da Arte Antiga (MNAA) da estrutura da DGPC – ou um estatuto especial dentro da mesma. Substantivamente, não existem razões que justifiquem tamanha singularidade, posto que nada faz do MNAA “o mais nacional” dos museus nacionais, sendo ocioso discutir se deles é “o primeiro”. Mas será que possui uma estrutura de custos e receitas que realmente o distingam? Os dados objectivos dizem rotundamente que não e abrem janelas em direcções de reflexão muito mais interessantes. Vejamo-las, a partir de dois indicadores fundamentais, a saber: a percentagem de cobertura dos proveitos correntes sobre os custos operacionais e os custos e proveitos unitários por visitante.

Atento o universo da DGPC, salta à vista que só os monumentos mais emblemáticos conseguem ser superavitários – e até altamente rentáveis no caso dos Jerónimos e Torre de Belém, com sete vezes mais proveitos do que custos e dando origem a cerca de metade das receitas globais obtidas em todo o País. Nada que espante. É assim em todo o Mundo: só os monumentos icónicos, maxime os monumentos do património mundial, conseguem ser verdadeiras “máquinas de fazer dinheiro”. Neles, não existem grandes equipas ou programação significativa e podem ser geridos com suporte proporcionado maioritariamente a distância. Constituem, pois e principalmente, peças equilibradoras do sistema, permitindo a redistribuição das receitas por outros equipamentos inexoravelmente deficitários, em nome de políticas nacionais, e servem ainda para alimentar as funções técnicas e de regulação dos organismos de tutela, aquilo que frequentemente e com alguma razão quando sobredimensionadas (como é o caso na actual DGPC), se chama de “burocracias centrais”.

Existem países em que certos museus nacionais constituem verdadeiros “marcos de civilização”, podendo obter rendimentos e funcionar em regimes financeiros próximos dos monumentos mais visitados, quer dizer produzindo receitas que cobrem em grande percentagem as despesas correntes. O Museu do Prado, por exemplo, gera mais de 70% dos custos operacionais. Já o Museu do Louvre, com os seus mais de 10 milhões de visitantes por ano, não consegue criar receita para mais do que cerca de metade dos custos. Mas se tivermos em conta toda a actividade comercial associada à marca Louvre, os proveitos quase cobrem os custos. E se considerarmos as receitas indirectas, designadamente as que decorrem do turismo, então, os proveitos obtidos mais do que duplicam os custos, fazendo do Museu do Louvre não apenas um símbolo identitário, como um bom negócio.

Em Portugal, é manifesto que não existe nenhum museu em condições de poder sequer aproximar-se dos grandes (e ainda assim deficitários, como se disse) museus europeus no que respeita a estruturas de custos. A começar pelo MNAA, é claro, que apresenta indicadores desapontadoramente medianos, ou até medíocres, como seja o de em 2015 somente ter gerado proveitos no valor de 15% dos custos operacionais. Entre os museus nacionais, o que mais se acercaria do ideal europeu seria o do Azulejo, com 65% de cobertura dos custos por proveitos. Ou ainda o de Arqueologia, se tivéssemos em conta a receita efectivamente obtida em caixa, a qual cobre totalmente os custos, devido a uma atitude muito pró-activa de venda no respectivo balcão de bilhetes de conjunto para todo o complexo monumental dos Jerónimos. No extremo oposto situam-se museus que não chegam a gerar sequer 10% dos custos que têm. Tal deve-se a múltiplos factores, uns inelutáveis (localização geográfica desfavorável ou natureza das colecções, por exemplo), outros porventura corrigíveis (museografia, actividades, gestão, etc.). A mesma observação seria confirmada, e acentuada, através dos indicadores do custo ou proveito por visitante. Existem museus em que cada visitante chega a custar mais de 20 euros! Noutros esse valor desce para muito menos de 10 euros. E quanto a proveitos, eles medem-se apenas em cêntimos por visitante nas situações piores, podendo atingir noutras vários euros, mas sempre valores baixos, que dão conta do imenso que ainda há a fazer em lojas e merchandising.

Todos estes dados deveriam ser submetidos a análise mais fina, porque existem circunstâncias muito específicas em cada caso. Mas eles permitem concluir que não existem quaisquer razões financeiras objectivas para tratar singularmente um dos museus em detrimento de outros. E mais ainda: permitem também perceber como a maior autonomia reclamada (e muito bem) por alguns deles deverá acima de tudo ser entendida no quadro de uma organização administrativa unitária – mas não a actual DGPC, que constitui, em substância, organismo sobredimensionado, muito centralizado e hierarquizado. Ora, admitindo que a entrega já consumada a entidades terceiras de alguns “equilibrados do sistema”, como era o caso do Palácio da Vila em Sintra (com proveitos líquidos de cerca de 1 milhão de euros anuais, à data da desafectação), pode ter diminuído as condições para reintroduzir as tradicionais divisões disciplinares nesta área, talvez seja chegado o momento de ensaiar nova modalidade administrativa, qual seja a de manter as funções centrais de regulação em organismo do tipo direcção-geral, financiado principalmente pelo orçamento do Estado, e atribuir a tutela directa de monumentos, palácios e museus nacionais a entidade administrativamente autónoma, ligeira (bastaria um quase secretariado central, com funções também na dinamização da Rede Portuguesa de Museus), financiada em maior percentagem por receitas próprias e com efectiva capacidade de descentralização e delegação de competências nas direcções desses “equipamentos-bandeira”, às quais deveriam ser entregues cartas de missão responsabilizantes.

Ou seja, existem realmente políticas alternativas e o actual governo, ao nível do seu programa, até parecia disposto a percorrê-las. Mas depois de cumpridos os mesmos rituais de sempre em matéria de rotação de cadeiras dentro dos limites de bom comportamento e solícita disponibilidade que os aparelhos partidários e as redes de amiguismo permitem, corre-se visivelmente o risco de ter já consumido tudo em foguetes - e bem sabemos como estes podem queimar. Ora, a dura realidade e o tempo, cruel e irrecusável como sempre, encarregar-se-ão de fazer a prova dos factos, mostrando que o MNAA, em nova fatiota levianamente feita à medida, continuará a queixar-se de falta de autonomia real. E os restantes palácios e museus da DGPC continuarão a queixar-se da sua penúria e dependência, acrescentando agora a revolta surda de verem ser retirada do bolo comum que principalmente os monumentos, e complementarmente o orçamento do Estado, garantem, mais uma fatia, provavelmente superior, destinada a alimentar quem agora deles se quis apartar. A diferença é que quem sai continuará a celebrar e protestar na praça pública; e os que ficam permanecerão mudos, quedos, temerosos e cada vez mais tristes. Confesso que me divido na compreensão que ambos me merecem. Ou como diria o outro, entre les deux mon coeur balance.

Arqueólogo, Presidente do ICOM Europa

Sugerir correcção
Comentar