Dudamel e a Orquestra Simón Bolívar a caminho da maturidade
A Residência El Sistema na Fundação Calouste Gulbenkian terminou em apoteose.
Foi com uma empolgante interpretação da Sinfonia Turangalîla, de Olivier Messiaen (1908-1992), que a Orquestra Sinfónica Simón Bolívar da Venezuela, dirigida por Gustavo Dudamel, encerrou na quinta-feira a Residência El Sistema na Fundação Gulbenkian. Um programa dedicado à música de câmara de Ginastera, Chostakovich e Brahms pelo Quarteto Simón Bolívar (formado por instrumentistas de enorme destreza técnica e detentores de grande plasticidade sonora) e um outro concerto da orquestra em colaboração com o Coro Gulbenkian dedicado à música de Paul Desenne, Villa-Lobos e Ravel precederam esta apoteose final em torno da monumental partitura de Messiaen.
Símbolo máximo de El Sistema, projecto criado na Venezuela pelo maestro José António Abreu com o objectivo de reabilitar através da música jovens de meios sociais desfavorecidos e posteriormente inspirador de uma vasta rede de orquestras infantis e juvenis em vários pontos do mundo, a Orquestra Sinfónica Simón Bolívar deixou recentemente de chamar-se Orquestra Juvenil para se converter simplesmente em Orquestra Sinfónica. Passado o espanto e o furor mediático inicial, frequentemente associado a uma imagem histriónica do maestro e dos seus jovens instrumentistas, e abandonada a dimensão propagandistica patente no ritual final dos concertos em que eram atirados para o público blusões e bonés com a bandeira venezuelana, o agrupamento é hoje mais uma orquestra sinfónica de alto nível no competitivo circuito internacional. Tanto o carismático Dudamel como os membros da orquestra mostram agora uma atitude em palco muito mais sóbria e contida, sem deixarem por isso de transmitir uma forte carga emocional ao ouvinte.
Todavia, ao lado de peças exuberantes de grande efeito, emblemáticas dos ritmos e da cultura da América Latina que emergiam de boa parte das suas primeiras exibições, a Orquestra Simón Bolívar cultivou sempre o repertório sinfónico canónico, arriscando desde cedo a interpretação de partituras tão exigentes como por exemplo A Sagração da Primavera, de Stravinsky. Esse caminho tem sido prosseguido com crescente consistência, a par da fulgurante carreira do próprio Dudamel à frente das mais prestigiadas orquestras mundiais. A interpretação da Turangalîla de Messiaen foi um testemunho notável desse caminho em direcção à maturidade.
Obra de enorme extensão e complexidade estrutural, a Sinfonia Turangalîla engloba a assimilação de técnicas e estéticas não ocidentais, e requer uma orquestra de dimensões colossais, com uma secção de percussão muito ampliada, um piano solista com intervenções de grande virtuosismo (superadas com brio e desenvoltura por Jean-Yves Thibaudet) e um importante papel do Ondas Martenot, um dos primeiros instrumentos electrónicos da história, tocado por Cynthia Millar, uma das suas mais reconhecidas especialistas. Inventado em 1928 por Maurice Martenot, oferece múltiplas possibilidades de ataques, timbres, cambiantes, vibratos, ecos, glissandos ou dinâmicas, conferindo uma dimensão humana à execução, que contrasta com o distanciamento mais abstracto inerente aos desenvolvimentos tecnológicos posteriores e que apenas a electrónica ao vivo viria mais tarde a recuperar. Os seus característicos sons etéreos são uma marca bem definida do fascinante mundo sonoro da Turangalîla, designação que resulta da justaposição de duas palavras do sânscrito: turanga, que significa movimento e ritmo, e lîla, que remete para o jogo divino da criação, o jogo da vida e da morte e também do amor.
O universo de imaginativas sonoridades e acentuados contrastes em todos os parâmetros musicais, sempre em constante mutação e reelaboração dos temas cíclicos que percorrem os dez andamento da obra, foi transmitido por Dudamel e pelos seus músicos com acuidade técnica e equilibrada gestão das dinâmicas e das intrincadas texturas sonoras: da dimensão etérea do sexto andamento (Jardin du Sommeil d’Amour), em que as cordas e o Ondas de Martenot servem de pano de fundo aos delicados cantos de pássaros do piano, ao impetuoso Développement de l’Amour, passando pela fortíssima propulsão rítmica da dança africana de Joie du Sang des Étoiles, a qual constituiu um clímax avassaldor de forte poder emocional. A longuíssima e entusiática ovação do público no final fez regressar o maestro e os solistas várias vezes ao palco.