Quando um espectáculo é ainda uma criação
A Viagem de Inverno de Schubert terá sido o “espectáculo do ano” da Casa da Música.
Esta “interpretação composta”, como o alemão Hans Zender (n. 1936) indica no subtítulo da sua A Viagem de Inverno de Schubert (1993), é muito mais do que um notável trabalho de orquestração: uma incursão pelo original que, respeitando o trabalho de Schubert (reconhecível do início ao fim), emprega com genialidade um maior número de recursos na ilustração do texto.
A feliz realização a que assistimos esta terça-feira na Casa da Música contou com o tenor que já em Janeiro de 2010 havia trabalhado com o Remix Ensemble na interpretação deste fabuloso ciclo, a que agora se somou um distinto trabalho de encenação de Nuno Carinhas, apoiado pelo fino desenho de luz de Nuno Meira, sempre contribuindo para uma melhor compreensão do texto.
A equipa formada por Peter Rundel e Nuno Carinhas soube jogar com todas as “extravagâncias” da partitura, criando um deslumbrante trabalho que, muito provavelmente, terá sido o “espectáculo do ano” da Casa da Música e pena é que não esteja neste momento a circular em diferentes cidades portuguesas e estrangeiras.
Em palco, um cenário escuro com compridas hastes que se erguem do chão (as árvores, os postes...); ao fundo, à direita, um “tronco” de madeira em que “o viajante” repousa. Do outro extremo da sala chegam instrumentos, também eles viajantes, que circularão até ao “fosso” localizado à frente do palco.
Críticos há que desvalorizam o trabalho de Zender, acusando-o de acentuar o óbvio onde Schubert impressiona com subtil insinuação. Pondo de parte falsos purismos, o que Zender faz é uma nova obra em que a tradição lhe serve de inspiração para inventar novos planos tímbricos, mais próprios do nosso tempo, favorecendo sempre uma leitura mais clara do texto de Müller- democrática e acessível, se quisermos, mas a que não escapam infinitos detalhes que convidam a múltiplas escutas.
Também a encenação e desenho de luz acrescentaram, nesta produção, delicados pormenores que concorreram para a “amplificação” do texto. Fogos fátuos numa luz que “ondula” nas hastes em palco, instrumentos elevados ilustrando montanha e penhasco, ou galos e corvos, uma lindíssima tempestade de sombras, o correio representado pela “corneta” segurada por um figurante ao fundo do palco: aspectos que, relatados, soam triviais mas que, no seu conjunto, asseguraram uma produção única e digna de reposição e de registo audio-visual.
Se alguns “desacertos” na afinação terão parecido um exagero face ao que a partitura exige, convém recordar a dificuldade da obra, sobretudo ao nível da junção, com uma série de apontamentos tímbricos de exigente precisão, não esquecendo a justaposição de quadros de carácter muito distinto que exigem dos músicos grande presença e versatilidade. Muito ligeiras assincronias (como entre cantor e orquestra, em Torpor) apenas conferiram maior realidade a este espectáculo de sonho, em que o Remix Ensemble fez justiça aos diversos mundos que a obra encerra.
Nota de excelência para Prégardien, humilde veículo para a concretização da vontade do compositor, actor que se entregou de corpo inteiro, e de forma muito convincente, à representação do viajante, com a sua natural voz absoluta.