Baha, um rapaz que matou e morreu (e a nova geração na Palestina)
Terrorista. Assassino. Mártir. Escuteiro. Leitor. Palhaço. Activista. Gandhi. Tudo isto foi dito de Baha Alyan, um jovem palestiniano admirado em vida por milhares, que a 13 de Outubro de 2015 matou e foi morto na sua cidade. Porquê? Uma pergunta que atravessa meio século de ocupação israelita e ressoa de muitas formas diferentes entre a nova geração de palestinianos.
Primeiro encontro
Quando neste Verão conheci Mohammed Alyan, no Monte das Oliveiras, em Jerusalém, ele esperava a todo o momento que o cadáver do filho, Baha, fosse descongelado para ser enfim entregue à família, dez meses após a morte. Era uma manhã sufocante de Agosto, encontrámo-nos numa cafetaria ao cimo do monte.
“A polícia israelita mantém os corpos entre duas camadas de gelo em Abu Kabir, o laboratório forense de Telavive, explica Mohammed, 61 anos, advogado de profissão. Junto ao seu filho Baha, estão mais 13 cadáveres de jovens palestinianos mortos pela polícia após cometerem ataques, ou serem suspeitos de tencionar cometê-los, na vaga que chegou a ser descrita como “Intifada das Facas”, em Outubro de 2015. Desde então, as petições para a devolução dos corpos chegaram ao Supremo Tribunal de Israel.
Mohammed faz a ponte entre os familiares e o advogado que os defende. Para além de dominar os meandros jurídicos, é um homem respeitado em Jerusalém Leste, saudado na rua, referido com apreço. Aos 18 anos, o seu filho Baha, escuteiro, palhaço, activista, divulgador de livros, já era um herói do bairro em que a família mora. Aos 21, tornou-se um herói da cidade quando juntou milhares numa maratona de leitura à volta das muralhas de Jerusalém. O que aconteceu para no ano seguinte decidir matar israelitas, sabendo que muito provavelmente seria morto, tornou-se a pergunta dominante na vida deste pai.
Três meses depois do ataque, a polícia israelita demoliu a casa dos Alyan, como costuma fazer, alegando prevenção de outros ataques. Ao fim de dez meses, não deu à família uma certidão de óbito. Por três vezes, propôs cemitérios e mudou de ideias. Não só Mohammed ainda não conseguiu enterrar o filho, como continua sem provas de que esteja morto. “É uma dor constante”, diz. Entre a angústia das negociações sobre os corpos e o peso do que não sabe, e portanto pode supor, quando o chamam para ir a escolas, pede aos alunos que estudem e se mantenham vivos. Está sempre a ser requisitado por algo, os dois telemóveis em cima da mesa vibram sem parar. Ainda assim, a voz não deixa de ser afável.
A cafetaria fica no pátio do hospital palestiniano Al Mukassed, onde Mohammed veio visitar uma conhecida. Quem traduz a conversa é o filho dela, Majd, 21 anos, que estuda Medicina na Alemanha, está cá de férias. A reclamação dos corpos gerou campanhas pela Cisjordânia e uma das activistas foi essa mulher, moradora de Ramallah, logo não autorizada a vir a Jerusalém, salvo em circunstâncias especiais, como hoje: está a ser operada à cervical. A família só conseguiu que Israel autorizasse a transferência ao fim de três meses. Isto, apesar de o Monte das Oliveiras ser em Jerusalém Leste, que pela lei internacional é território palestiniano, ocupado por Israel em 1967 (ao fim da Guerra dos Seis dias, tal como Cisjordânia e Gaza), depois ilegalmente anexado em 1980.
A anexação apagou a Linha Verde que separava a Jerusalém israelita da palestiniana. Israel encara a cidade como sua capital indivisível, e desde a Segunda Intifada isolou-a da Cisjordânia com um muro de betão. Assim, nada de físico divide as duas partes da cidade, enquanto tudo divide os palestinianos de Jerusalém dos da Cisjordânia e de Gaza. Os de Jerusalém têm uma identidade azul (Residência Permanente) e podem apanhar um avião em Telavive. Os da Cisjordânia têm uma identidade verde, só transitam em Jerusalém Leste nas tais circunstâncias especiais, estão separados uns dos outros por colonatos, e para voar precisam de ir à Jordânia. E os de Gaza não voam para lado algum. Quase 50 anos de ocupação geraram um arquipélago de mini-palestinas, com condições e urgências diferentes. Bom para a ocupação, mau para a resistência.
Dos corredores à cafetaria, este hospital está cheio de familiares e visitantes, porque na tradição palestiniana ninguém deve adoecer, muito menos morrer, sozinho. Mohammed pega num dos telefones, mostra-me a foto do seu mural no Facebook: uma multidão de milhares junto à Porta de Damasco, a principal entrada palestiniana da Cidade Velha de Jerusalém. “Baha juntou estas pessoas no dia 16 de Março de 2014”, diz. “Eram sete mil a ler. Cada uma trouxe um livro, no fim doou-o, e com todos os livros ele criou três bibliotecas.”
O outro telefone toca, ainda a saga dos corpos. Depois da intervenção do Supremo, a polícia concordou libertar os seis que eram de Jerusalém Leste. “A única coisa que têm em comum é terem sido abatidos sem julgamento”, resume Mohammed. Segundo o acordo, as famílias comprometem-se a enterrar os corpos à meia-noite, perante não mais de 30 pessoas, sem cobertura dos media, e Israel escolhe o cemitério. Deveriam ser entregues em 15 dias, mas o primeiro ainda não chegou, já passaram vários dias, cada um tem de ser retirado do frigorífico 48 horas antes, para evitar o que aconteceu no passado, famílias receberem corpos congelados. Mohammed teme que tudo se arraste sem fim. Antes foi a saga dos cemitérios. Já não sabe em que acreditar, está no limite do stress.
Então o telefone de Majd toca, a operação da mãe acabou, os dois homens levantam-se, a conversa terá de ser interrompida.
O ataque
Foi num autocarro verde n.º 78 igual a este em que agora entro, com assentos azuis, um harmónio ao meio, que aconteceu o ataque em que Baha Alyan matou e morreu. Está cheio de homens de kipá, judias ortodoxas de peruca e collants no calor de Agosto, crianças e bebés, idosos e mulheres com sacos de supermercado a falarem russo, vindas da ex-URSS. O 78 liga o centro a um dos primeiros colonatos, Armon Hanatziv (também conhecido como Talpiot Leste), construído em terras do bairro de Baha.
Segundo os relatos judiciais, a 12 de Outubro de 2015, Baha foi ter com o seu vizinho Bilal Abu Ghanem, 21 anos, membro do Hamas, disse que conseguira dinheiro para uma pistola, perguntou-lhe se queria alinhar, e nessa noite comprou a arma. Na manhã seguinte, 13, os dois entraram no autocarro vazio e esperaram por passageiros. Quando mais de dez já estavam a bordo, começaram a atacá-los, Bilal com a pistola, Baha com uma faca, até que Bilal ficou sem munições e a faca de Baha se partiu. O processo diz que ele terá ainda tentado estrangular um passageiro antes de ser morto. Três israelitas vieram a morrer, sete ficaram feridos.
Alvejado pela polícia, o cúmplice de Baha foi tratado, detido e, no começo deste Verão, condenado a três penas perpétuas por “triplo homicídio, sete tentativas de homicídio e colaboração com o inimigo em tempo de guerra”, no Tribunal Distrital de Jerusalém. Durante o julgamento, recusou levantar-se para ouvir as acusações e o juiz recusou ouvi-lo sentado. Sublinhou que os atacantes esperaram o autocarro encher “para iniciarem o seu plano de executar vítimas indefesas uma após a outra, alvejá-las à queima-roupa, esfaqueá-las, até estrangulá-las”. E que, ao “pretender causar tanta morte quanto possível, apenas porque os passageiros eram judeus”, o ataque “é um acto demoníaco, que remove os seus perpretadores da humanidade”.
Duas das vítimas morreram no próprio dia, Alon Govberg, de 51 anos, e Haim Haviv, de 78. Alon nascera no Azerbaijão, emigrara para Israel havia 20 anos, trabalhava como segurança, morava sozinho no colonato, não tinha família próxima em Israel. O ourives Haim (que veio do Iraque aos 11 anos) e a mulher, Shoshana, pais de cinco filhos, avós de 14 netos, tinham mudado há pouco para o colonato, estavam a voltar de uma consulta no médico, e ela também ficou ferida. Contactei um filho através de uma conhecida comum, a família preferiu não falar.
A terceira vítima, Richard Lakin, 76 anos, morreu no hospital, onde chegou a ser visitado por Ban Ki Moon, secretário-geral da ONU. Nascera nos EUA, era professor de liceu, marchara com Martin Luther King pelos direitos civis, e nos anos 1980 emigrou com mulher e dois filhos para Jerusalém, onde criou uma escola de inglês aberta a judeus, cristãos ou muçulmanos. No seu Facebook, tinha a foto de um judeu abraçado a um muçulmano, com a legenda “Coexistência”. Quando embarcou no 78, também vinha do médico e ia para casa, em Armon Hanatziv. Era já avô de oito netos. Telefonei, depois escrevi ao filho, Micah Avni, gestor em Telavive, que agendou uma conversa por telefone, mas ao fim de algumas perguntas não quis falar.
Através do colonato
O 78 vem do centro pela Estrada de Hebron, depois serpenteia entre as colinas áridas do Sudeste de Jerusalém. Por vezes a paisagem é de minaretes e casas palestinianas, por vezes de construções israelitas, mais altas, espaçosas e alinhadas. Antes da entrada em Jabal Mukaber, o bairro de Baha, o 78 curva e sobe entre os prédios do colonato, muitos com grades até ao quarto andar. Logo adiante destaca-se o Alejandro & Lilly Saltiel Community Center, construído em 1980 para apoiar “crianças em idade pré-escolar, jovens em risco, idosos e imigrantes”. O autocarro segue em sobe-e-desce até que o motorista anuncia o término. A partir daqui, vai levar os idosos ainda a bordo a um albergue. Armon Hanatziv tem uma população envelhecida. Salto e volto ao centro comunitário. Está encerrado para férias, um operário aponta-me a paragem do ataque, ao fundo da avenida. Entre os prédios do colonato, dá para ver os terrenos de Jabal Mukaber, mesmo por trás.
Em Jerusalém, os judeus, mesmo de esquerda, não chamam colonato a Armon Hanatzvi. Dizem bairro. A diferença entre os termos não é que “colonato” seja pró-palestiniano e “bairro” seja pró-israelita, mas sim que o segundo não é reconhecido internacionalmente. Ainda assim, não é raro, em notícias de agência resumidas nos jornais internacionais, que ataques em colonatos apareçam como ataques em Israel, provavelmente por esses resumos serem feitos por quem não conhece o tema. Mas para os jornais israelitas (mesmo de esquerda, como o Haaretz) é uma opção. Armon Hanatzvi aparece como “um bairro de Jerusalém”.
Sintoma das contradições de Israel, um país em que a esquerda contesta a construção de colonatos mas absorveu a linguagem oficial quanto a algumas conquistas antigas. Ou seja, mesmo os críticos internos já normalizaram parte da ocupação. E, como as notícias externas sobre a Palestina tratam sobretudo da Cisjordânia e de Gaza, cada vez menos gente, em geral, tem presente que Jerusalém Leste é território ocupado desde Junho de 1967, fará meio século no ano que vem.
Reencontro no escritório
Mohammed, pai de Baha, propõe retomarmos a conversa de manhã, no seu escritório de advogado, junto à Cidade Velha. É a parte mais movimentada de Jerusalém Leste, o eixo entre as ruas Salah Ah-Din e Zahra. Encontramo-nos na primeira e caminhamos até à segunda, entre bancas de fruta, de roupa e gente que pára a cumprimentá-lo. Amany, estudante sua amiga, vai traduzir. Mohammed entende inglês mas não se sente confortável para falar.
Continua à espera de notícias, no limite do stress. Escrever ajuda-o um pouco, conta que começou um livro sobre o filho, e que Baha herdou essa fé nos livros. De resto, o seu círculo parece bastante laico. Amany está de jeans justos, manga curta, cabelo curto. Mohammed foi militante de um grupo esquerdista (prefere não dizer qual) e pagou com uma década de prisão, dos 20 aos 30 anos, 1975-1985.
Ao ser preso, estava noivo, ela esperou mais de nove anos, cortou pouco antes da libertação. Mohammed escreveu um conto sobre isso, e o que sublinha, a sorrir, não é o abandono mas ela ter sido capaz de esperar tanto. Ele deixou a cadeia numa troca de prisioneiros, pouco depois conheceu uma amiga da ex-noiva, enfermeira. Casaram, é a mãe dos seus filhos, dois rapazes e uma rapariga, além de Baha.
“Mas acho que o meu activismo político não influenciou Baha”, diz. “O que o marcou foi eu ler.” Tanto nomeia Marx, Lenine, Trotski, Gorki como García Márquez, Guevara, e os palestinianos, árabes, turcos: Mahmoud Darwish, Samih Al-Qasim, Tawfiq Ziad, Nazim Hikmet, Emile Habibi. “Todos alimentaram o nosso desejo de liberdade e resistência, e foram sementes para eu escrever.”
Os pais de Mohammed já moravam em Jabal Mukabar. Ele era pré-adolescente na Guerra dos Seis Dias, quando Israel capturou o bairro. O colonato de Armon Hanatziv foi construído poucos anos depois. Isso contribuiu para se envolver na guerrilha? “Teve impacto no terreno, impedindo o bairro de se expandir, e qualquer acção israelita alimenta a resistência. Mas já havia um movimento bem maior. A OLP era poderosa, então.” Fundada em 1964, juntava a Fatah de Yasser Arafat aos esquerdistas da PFLP ou da DFLP, “muito fortes em Jabal, tal como o movimento estudantil”.
Pelo meio, os telemóveis tocam, e chamam-no na sala ao lado. Amany, a tradutora, é uma palestiniana da Galileia, faz parte dos 20% de população designada como árabe israelita. Nas últimas eleições em Israel, os partidos árabes aliaram-se, mas Amany não votou. “Não faz diferença, porque Israel não tem uma Constituição escrita, e toda a legislação tem servido o propósito colonizador.”
Mohammed volta. Não sabe quando poderemos continuar, está demasiado inquieto. Dá-me o contacto de um velho amigo em Jabal Mukaber que poderá falar sobre Baha.
A ideia
Palestiniana cristã, jeans e alças, 44 anos, Rania Elias, directora do Centro Cultural Yabous, recebe-me no seu gabinete, o mesmo onde certo dia entrou Baha Alyan, a algumas portas do escritório do pai. “Ele transbordava energia. Sabe quando podemos ver a energia numa pessoa? Tinha toda a paixão, e toda a vontade de trabalhar. Conheci-o nesse dia, quando ele preparava a leitura nas muralhas. Tivera a ideia, e começou a falar com todos os centros para que divulgássemos o convite, encorajando as pessoas a trazer um livro. Era bonito, muito alto, e tão apaixonado pelo projecto! ‘Vamos trazer autocarros! Vamos trazer milhares de pessoas!’”
Isto, um mês antes. E a memória que Rania tem da leitura é muito semelhante à de outros participantes nesse 16 de Março. “Baha a conduzir toda a gente com um altifalante, explicando a cada um para onde ir, tão feliz com a quantidade de gente. Ele era uma estrela, alguém que brilhava. Organizei tanta coisa, tantos festivais, sei quando alguém brilha.”
Por isso, e como tantos que o conheceram, não acreditou quando soube do ataque. “A minha reacção foi: ‘Baha?! Aquele Baha?!’ Não é fácil pensar que alguém com tanto carácter, tanta vida, está morto.” E que matou? A cara de Rania fecha-se. “Não sei se matou”, diz, sem expressão. “Vivendo aqui, não aceitamos as coisas como estão nos media israelitas, há muitas mentiras. Mohammed diz que não sabe porque não viu com os seus olhos.”
Rania dá exemplos de palestinianos mortos por nada, nos checkpoints, nos lugares mais tensos da Cisjordânia, como o centro histórico de Hebron, onde os colonos radicais são fonte constante de problemas. “Os israelitas levaram as nossas crianças a um ponto de frustração tal. Quando alguém como Baha está disposto a sacrificar a vida... Não creio que tenha nada que ver com religião. A ocupação não dá qualquer margem de esperança aos nossos filhos. O que sei é que as pessoas estão fartas da opressão, e vão rebentar. Gente que acredita em Deus, e que não acredita em Deus, pais de filhos ou solteiros. Preocupo-me todos os dias com as crianças, aqui.” Os filhos de Rania têm 11, 13, 15 anos. Alguns dos autores de ataques, ou suspeitos, andavam por essas idades. Baha foi dos mais velhos.
“Ele era tão carismático, tão activo nos escuteiros, na mesquita... Mohammed diz que só queria falar com ele um minuto para saber o que aconteceu. É um homem liberal, um intelectual, sempre a dar energia e esperança às pessoas. Não imagino o que seja não poder enterrar um filho por dez meses. E agora ele diz a crianças de 12 e 13 anos: não é o vosso papel morrer, a vossa resistência é pela educação, serem criativos. Disse isto numa conferência em Jerusalém depois do ataque. Não quer que nenhum pai passe pelo mesmo. Quer falar da cultura da vida. Os media estão cheios dessa ideia de que mandamos os filhos para a morte, quando queremos que eles tenham a melhor vida possível. O que ensinamos às crianças é a não aceitar a ocupação. Há muitas formas de resistir, a minha filha encontrou a sua na Orquestra Nacional Palestiniana, toca violoncelo, viaja. Se os israelitas pensam que vamos aceitar a ocupação, não vamos.”
Quando este centro foi fundado, os Acordos de Oslo de 1993 eram recentes, muita gente acreditou que seria possível uma paz com dois estados, Israel e Palestina (apesar de Oslo deixar vários problemas em aberto, como o retorno dos refugiados que estão no Líbano, Síria e Jordânia desde 1948).
Baha tinha a idade de Oslo, faz parte da geração que cresceu a ver os colonatos multiplicarem-se contra o acordado, fragmentando cada vez mais o território, separando os palestinianos. Até que em 2000 a Segunda Intifada rebentou, Israel construiu o muro, Arafat morreu em 2004, e em 2006 o Hamas ganhou à Fatah. Um resultado dos avanços da ocupação, somada à corrupção da Autoridade Palestiniana (AP), à manutenção do statu quo pela comunidade internacional, e à crispação global pós-11 de Setembro, com todas as achas na fogueira, como a guerra do Iraque em 2003. Entre Baha nascer e o ano em que morreu, tudo se radicalizou com uma imediatez que nunca existira, porque a geração dele é a da Internet. Cercada por Israel, Gaza ficou dominada pelo Hamas, quase dois milhões hoje duplamente reféns; a Cisjordânia entregue à Fatah, com 600 mil colonos lá dentro cercando cada cidade; Jerusalém Leste num limbo; e os refugiados de fora esquecidos entre novas guerras. Um puzzle de cada vez mais peças e menos encaixe.
“Esta geração é muito diferente da minha”, diz Rania. “Mas também é diferente entre si, dependendo do lugar. As pessoas da Cisjordânia raramente vêm aqui. Jerusalém está cercado de checkpoints. Os israelitas criaram diferentes níveis de liberdade de movimento, de opressão. A jovem geração em Ramallah é diferente da de Gaza, Hebron ou Jerusalém. As prioridades são diferentes. A forma como vêem a ocupação é diferente. Cada um arranja a sua forma de não ficar maluco.”
Terraço com vista para o problema
Deste seu terraço, Jackie vê três bairros palestinianos num raio de 180 graus, um logo à esquerda, Sur Baher, outro em frente, Umm Lisan, e parte de Jabal Mukaber do lado direito, circundada pelo colonato, Armon Hanatziv. Onde estamos, então? Em Armon Hanatziv. Mas como a expansão se fez em forma de ferradura, por acaso este prédio fica numa ponta que “era terra de ninguém em 1967”, diz ele.
Ninguém lhe chama Jacob, nome oficial. Na universidade, como no livro que acaba de publicar (A Jewish Guide in the Holy Land — how christian pilgrims made me Israeli), é o antropólogo Jackie Feldman. Uma amiga pôs-nos em contacto, depois da minha primeira ida a Armon Hanatziv. Jackie disse que o ideal seria eu aparecer antes do pôr do Sol, não porque fosse shabat, mas pela vista até ao deserto. Além do horizonte, está a Jordânia.
O pai de Jackie, húngaro, saltou do comboio quando ia reunir-se a outros judeus que seriam embarcados para um campo de concentração; a mãe era filha de um mercador de Antuérpia que meteu a família num autocarro e conduziu até Lisboa. Casaram em Nova Iorque, Jackie cresceu em Washington Heights, ao lado do Bronx, e em 1978 veio para Israel.
“Achei que o futuro do povo judeu seria aqui, que isto ia ser um grande lugar, onde os judeus podiam viver a sua cultura sem estar no gueto”, conta ele, sentado à mesa do terraço, enquanto o céu muda de azul para rosa. “Hoje sinto que Washington Heights me seguiu. Era um lugar duro, onde alguém com uma faca me podia exigir um dólar. O mundo dividia-se entre judeus e anti-semitas, ruas onde podíamos andar e ruas proibidas.” Filho de ortodoxos, Jackie usava uma kipá, não passava despercebido. “Nós íamos realizar o sonho americano que os nossos pais, judeus pobres, sobreviventes do Holocausto, não tinham podido. Íamos ser doutores, engenheiros, tínhamos de ser bem sucedidos, não como os porto-riquenhos do outro lado da bairro, vistos como ‘a abominação’, ‘os selvagens’. Também havia dominicanos, cubanos, negros e irlandeses, que também não gostavam de nós. Os irlandeses batiam-nos: ‘Ei, puto judeu, vou mijar na tua kipá.’ Éramos judeus antes de sermos americanos. Os meus pais tinham fugido da Europa, o anti-semitismo era algo evidente para eles, e a América o lugar que os salvara. ”
Aos 17, Jackie quis voluntariar-se para a Guerra do Yom Kippur (1973). Já tinha vindo a Israel em visita com jovens ortodoxos, e muita da sua família estava aqui. A Guerra dos Seis Dias, diz, fora a viragem na identidade dos judeus americanos, consolidando o apoio a Israel. Mas em 1967 Jackie ainda era criança e em 1973 os pais não o deixaram vir. Só depois da faculdade.
Para ganhar a vida em Israel, trabalhou 20 anos como guia de agências palestinianas cristãs, onde havia menos concorrência. “E eu tinha estudado o Novo Testamento em grego, falava alemão, inglês, holandês, podia trabalhar com protestantes, evangélicos, reformistas, luteranos.” Casou com uma judia francesa, Rachel, professora na Universidade Hebraica, teve dois filhos (ambos artistas, de momento fora do país), doutorou-se em Antropologia e dá aulas na Universidade Ben Gurion. Até 2011, morou no confortável bairro de Rehavia, centro de Jerusalém Ocidental. Até que o apartamento ficou indisponível, e buscaram outro para comprar. “Um agente trouxe Rachel aqui, ela viu o tamanho, 140m2, mais 80m2 de terraço com esta vista. Só o terraço era maior do que o nosso apartamento em Rehavia. Eu vim ver e disse: Uau! As aldeias, o deserto, a Jordânia.” Por aldeias, refere-se aos bairros palestinianos espalhados nas colinas.
E o facto de se tratar de um colonato? Jackie é um homem corpulento com uma voz suave que não se altera. “Para mim, era importante que o prédio não estivesse além da Linha Verde, fomos ver ao Google: era terra de ninguém.” Ou seja, a faixa entre Israel e Jordânia (que então governava Jerusalém Leste e Cisjordânia). “Tive de ter a certeza”, diz Jackie. “De outra forma, eu seria parte do problema.” A ocupação. “Mas se não fosse esta vista, e este terraço, nem consideraríamos morar aqui. O bairro não nos atrai. É longe do centro. Estávamos habituados a andar até ao café, onde posso trabalhar cinco ou seis horas.”
Nos primeiros tempos, ainda foi lá abaixo a Sur Baher, tem lá um amigo palestiniano, Khalil, condutor dos seus tempos de guia. Mas há dois anos que não faz isso. “Por isso digo que Washington Heights me seguiu. Há lugares onde não vou. Israel tem a responsabilidade de ter feito disto um lugar como Washington Heights.” Aponta as primeiras casas de Sur Baher. “Lá está a mercearia de Khalil, e eu não posso ir.” Ninguém o impediria, mas seria demasiado tenso, sente ele.
O que aconteceu há dois anos foi a última guerra de Gaza: “Lembro-me de me sentar aqui à meia-noite, a trabalhar no livro, tocar uma sirene, porque um ou dois rockets [do Hamas] foram apontados nesta direcção, e depois ver fogo-de-artifício ali.” O bairro palestiniano mais próximo. “Pessoas de Armon Hanatziv marchavam até lá com cartazes a dizer ‘Morte aos Árabes’. A atmosfera aqui é bastante antiárabe.” No próprio elevador deste prédio, Rachel viu um graffiti a dizer ‘Morte aos Árabes’. “Pode ter sido um protesto contra a nossa empregada. É um bairro de direita, como 80 por cento de Jerusalém.” Jackie vota Meretz desde sempre, esquerda esvaziada de qualquer força.
E o que sabe sobre 13 de Outubro de 2015, aqui no seu bairro? “Sei que houve um ataque num autocarro 78, e que três pessoas foram mortas. Não tenho a certeza se foram dois ou três terroristas. Acho que havia uma pistola. Creio que eram desta aldeia.” Aponta Sur Baher. Digo-lhe que eram dois atacantes, de Jabal Mukaber, e que além da pistola tinham uma faca. “Tento evitar os detalhes. Se for aos detalhes sangrentos... Evitar é parte da técnica de sobrevivência. Rachel diz que aqui estamos de costas voltadas para Jerusalém, a olhar o deserto. É uma ilusão, mas assim não temos de enfrentar Jerusalém. Leio o jornal só uma vez por semana, o Haaretz, à sexta [dia de revista]. E mesmo assim fico deprimido. Se lesse todos os dias, não sei como funcionaria.”
Ouvi o mesmo de outros israelitas, não querer ver nem ouvir. Ao mesmo tempo, lá está boa parte de Armon Hanatzvi em cima de Jabal Mukaber, mesmo aqui em frente. E o muezzin cinco vezes ao dia, aliás oito muezzins, como contaremos quando se acender o néon verde em cada minarete. Que saída vê Jackie? “Gostava de ver dois estados. Mas torna-se cada vez mais difícil. Por outro lado, se penso num estado, não vejo como colonos e palestinianos viverão juntos. E são centenas de milhares a viver nos colonatos. Fomos ver o filme [Os Colonos, de Shimon Dotan, documentário estreado este Verão] e foi muito perturbador.” Antes de anoitecer, vamos à cozinha, voltada para o outro lado, ver os prédios em construção no colonato.
Como muita gente em Israel, Jackie e Rachel têm dois passaportes, e os filhos três. “Um tio meu dizia que um judeu nunca tem demasiados passaportes.” Talvez os filhos não queiram viver aqui. Mas para Jackie e Rachel não se trata de partir. “O que discutimos é o desapontamento com este lugar. A sensação de que os judeus, e o judaísmo, não sabem o que fazer com o poder. Podemos criar Einsteins e Kafkas nas diásporas, mas quando vimos para aqui, e temos poder sobre nós e os outros, isso requer todo um outro pensamento, e até agora isso não resultou.”
Noite escura, os minaretes ficam em perspectiva, até ao fim do horizonte.
No bairro de Baha
Ibrahim Johar, 60 anos, lembra um pouco Einstein, ele o diz. Um Einstein magríssimo, num terraço mais pequeno que o de Jackie, voltado para o muro que nos separa da Cisjordânia, mas com videiras, amendoeiras, oliveiras. Eis o amigo sugerido pelo pai de Baha. Professor de árabe no liceu, dinamizador de leituras, autor de livros, foi um tutor-consultor para Baha.
Estamos em Jabal Mukaber. Para achar a casa, subimos e descemos abruptamente. Valeu Muna, a tradutora, ter carro e um conhecido no bairro que mostrou o caminho. Jabal cresceu por entre um relevo dramático, como pôde. Às vezes, contam-me, o morro desmorona-se, tipo favela. Só que árido e ocre, com mais intervalo entre as casas.
A casa de Ibrahim é um retrato da hospitalidade palestiniana: o terraço florido, a sala com sofás a toda a volta, as esfihas de carne que a sua mulher, Bothina, começa a preparar mal chegamos, e hão-de vir fumegantes, acompanhadas de iogurte, amêndoas verdes e azeitonas, rematadas por bolo de chocolate com noz e chá de hortelã, enquanto a neta de cinco anos ciranda entre terraço e sala.
“Esta casa é de 1936, o meu avô já nasceu nela”, conta Ibrahim. Aqui estava a família quando aconteceu a Guerra dos Seis Dias, que opôs Israel aos árabes vizinhos. “Foi um jogo internacional, não uma guerra, e não foram seis dias mas seis horas. Talvez apenas uma.” As armas dos jordanos eram velhas, fracas. “Toda a gente fugiu na direcção do Mar Morto, vimos o próprio exército jordano fugir.” Quando voltaram, puseram bandeiras brancas nos telhados. “Depois vieram estudantes da Universidade Hebraica fazer a lista dos Residentes Permanentes.” Uma ocupação fácil. “Em 1971-72, Israel começou a construir o colonato de Armon Hanatziv na terra de algumas famílias, e uma delas era a de Alah Abu Jamal”, diz Ibrahim.
Este Alah foi o terceiro morador do bairro a ser notícia dia 13 de Outubro de 2015. Após o ataque de Baha e Bilal, atropelou pessoas em Jerusalém Ocidental: matou uma, feriu quatro, foi morto. Funcionário da companhia de telemóveis Bezeq, era primo de Ghassan e Uday Abu Jamal, que dois anos antes tinham atacado uma sinagoga: cinco mortos. As famílias pediram que as casas fossem poupadas, o Supremo rejeitou: a de Ghassan foi demolida no começo de Outubro de 2015, e a de Uday selada. Israel diz que precaver futuros ataques, salvando nem que seja uma vida, se sobrepõe à perda de património. Mas o que aconteceu após a polícia acabar com as duas casas foram dois ataques com várias mortos israelitas. “Alah ganhava bem, tinha 32 anos, três filhos, o que o levou a isso?”, pergunta Ibrahim. Ele próprio fez essa pergunta à família. “Eles explicaram-me que Alah vira como os soldados apareceram, como trataram a avó, as crianças, o agrediram, encheram a casa com cimento. Sentiu-se humilhado, para ele terá sido um acto de resistência. Não posso julgá-lo.”
A história de Alah veio a propósito da construção do colonato. Porque na infância de Ibrahim as terras da família Abu Jamal “eram o paraíso, tinham fruta como nenhuma outra”. O avô de Alah cuidava bem delas. E se, meio século depois, o ataque de Alah surpreendeu Ibrahim, então o ataque de Baha deixou-o perplexo.
Conheceu-o num casamento. Baha sabia que Ibrahim era escritor, pediu ao pai que os apresentasse. “Alguns dias depois veio visitar-me e disse que queria fazer algo para que as crianças lessem. A ideia já era essa, ele tinha só 18 anos mas já era muito maduro. Acabara o liceu e ganhava dinheiro a fazer reparações, pinturas, como a maior parte dos rapazes aqui, quando não vão para a universidade. Porque os colonatos precisam destes serviços. Ele ia a qualquer lugar, onde tivesse trabalho.” E foi planeando a ideia, até que ela se transformou na maratona de 16 de Março.
“Foi um dia cheio de alegria, algo incomum em Jerusalém Leste, e não me lembro de outro em que se tenha juntado toda a gente assim. Acho que foi ali que eu, e todos, começámos a acreditar na geração seguinte. Havia muitas crianças, até carrinhos de bebé com livros de colorir.” Baha distribuiu as pessoas ao longo da muralha a partir da Porta de Damasco: para a esquerda em direcção à Porta de Herodes (ou das Flores), para a direita em direcção à Porta Nova, circundando o Bairro Muçulmano e o Bairro Cristão, com gente sentada em pedras e na relva. “Toda a gente ficou a ler, durante três horas. A mensagem para o mundo era: estamos contra a violência, protegemos Jerusalém com livros, com cultura.” Ibrahim viu todo o tipo de livros lá. “Quando acabou a leitura, apareceram bandeiras de movimentos, gente a aproveitar. Atiraram pedras à polícia, e aí houve feridos, a polícia começou a dispersar as pessoas.” Mas Baha não estava ligado a nenhum movimento, garante. “Ele acreditava numa geração com alegria, em começar a ignorar o stress da ocupação. Estamos sempre a culpar a ocupação, a dizer que não podemos fazer nada por causa dela. Por isso, ele queria vestir-se de palhaço, ir às escolas, sair com os escuteiros tocando tambor. Era como um Pai Natal dos feriados. Quando morreu, as crianças fizeram-lhe uma homenagem.”
Nesse dia, Ibrahim estava a dar aulas. A polícia cercou Jabal Mukaber, bloqueando as saídas. “As pessoas diziam que tinha sido Baha, e eu dizia que não podia ser. Fiquei chocado, escrevi isso no Facebook.” Tanto que só horas depois foi a casa de Mohammed. “Aí, percebi. Havia soldados lá, levaram os computadores, os telemóveis, afastaram as pessoas. Abracei Mohammed a chorar, não consegui falar. Ele também não falava.”
Ibrahim sabe que Baha está morto, mesmo que o corpo não tenha chegado, e sabe que Mohammed também sabe, só que o corpo ainda não chegou. “Ele não o viu morto.” E por que Baha decidiu matar? “Não sei. Gandhi não mata. Só tenho perguntas. Ele terá chegado a um ponto em que deixou de acreditar na paz, achou que estávamos num beco. Talvez tenha explodido ao fim de tanto tempo.” A mãe de Baha contou uma coisa que aconteceu na manhã do ataque. “Ele pediu que ela lhe apertasse o último botão da camisa.” Baha nunca fizera isso, e estava muito bem vestido. “Ela perguntou o que se passava, e ele respondeu que tinha um casamento.” Ibrahim acha que ele quis sentir a mãe perto, em despedida.
Nisto chega Nasab Hussein, 29 anos, poeta amiga de Ibrahim, T-shirt e jeans, cabelo descoberto. Palestiniana da Galileia, trabalha em Jerusalém Ocidental como farmacêutica, mora neste bairro e também conheceu Baha. “Por mais que acreditemos na paz, o pensamento de matar pode surgir em qualquer um de nós, ao enfrentarmos os checkpoints e tanto racismo”, diz, firme. “Vamos ser honestos: todos sentimos isso, todos podemos chegar a esse ponto. No dia anterior [ao ataque de Baha], todos vimos imagens daquele menino, Ahmad Manasrah, a sangrar no chão.”
Ahmad Manasrah, 13 anos, foi acusado de esfaquear gente a 12 de Outubro no colonato de Pisgat Zeev, Jerusalém Leste, em co-autoria com o primo de 15 anos. O primo foi morto na hora e Ahmad atropelado. O vídeo, que se tornou viral, mostra Ahmad aflito no chão, sobre uma grande poça de sangue, enquanto colonos o filmam, apelam à polícia que lhe dê um tiro na cabeça e gritam repetidamente: “És um filho da puta! Morre, filho da puta! Morre filho de 66 putas!” Durante os minutos que o vídeo dura, vêem-se várias pessoas à volta, incluindo polícias e uma ambulância parada, sem que ninguém o socorra. “Acho que foi isso que motivou Baha”, diz Nasab. “Na véspera, o vídeo de Ahmad estava no Facebook, por toda a parte.” Nasab falou com o irmão de Baha depois do ataque no autocarro e “ele disse que também achava que fora essa a razão”. Bate certo com a informação no processo, segundo a qual foi nesse dia, 12, que Baha abordou o vizinho do Hamas, e comprou a arma.
A jovem tradutora Muna, que não conhecia nenhuma destas pessoas antes de vir comigo a Jabal Mukaber, lembra-se bem do vídeo, e de pensar: “Amanhã alguém vai responder por esta criança.”
Imagens posteriores mostram Ahmad a ser interrogado por dois polícias de kipá que berram continuamente. Este Verão, foi condenado a “duas tentativas de assassinato”. Advogados palestinianos acusaram Israel de discriminação, de tratar um menor contra o estipulado nas convenções internacionais, de o julgarem sem ter em conta o que já sofrera, de o terem detido até aos 14 anos, idade em que já o podiam julgar como adulto. Israel mantém mais de 400 crianças palestinianas presas. Mais de cem têm menos de 16 anos.
Na manhã seguinte ao vídeo, Baha fez o ataque no autocarro, e a notícia chegou à farmácia de Nasab. “Não me surpreendeu o ataque, mas que fosse Baha. Porque se via como ele amava a vida.” Pausa. E depois, sentada ao lado de Ibrahim, Nasab começa a falar num jorro: “Se quer saber porque fazemos isto, é porque não temos esperança. Eu também não tenho esperança. Não tenho resposta. Quando penso no futuro de Jerusalém, ou da Palestina, não sei o que pensar. Não podemos confiar em ninguém, em nenhum líder da Palestina, nenhum líder árabe. Sabemos que estamos sozinhos e que ninguém nos vai ajudar. Todo o tempo sinto que estou num círculo e ando à volta de mim mesma. Há dias em que penso que a cada hora, a cada minuto, posso morrer. Sempre que saio de casa sinto que posso não voltar. É tão escuro. Não há solução. Não há futuro. Em Fevereiro, vivi o auge desta depressão. Esperava morrer a qualquer momento. Mas, como escrevo, deitei tudo cá para fora. Escrevi um poema onde acho que pus o que sentia. Antes, tínhamos um cerco à volta de todos. Agora, cada um tem o seu próprio cerco.”
A sala está em silêncio.
Trabalhando entre e com israelitas, a percepção de Nasab é que este estado das coisas será mau para eles. “Estão a autodestruir-se, a tornar-se fascistas. Mas, até pararem, o que vai ser de nós? Ainda estaremos aqui? E temos tantos problemas internos.” Há tempos, um escritor tunisino disse-lhe que os soldados é que eram prisioneiros. “Esse pensamento deu-me força.” Porque a vitimização constante enfraquece. “Há um peso entre os palestinianos, se vais a uma festa é porque esqueces a Palestina, esqueces os prisioneiros. Isso é opressivo, a tristeza contínua, a recusa da festa. Temos de refazer o nosso carácter, reconstruir a cultura, tornar o espírito forte, ter mais alegria, para enfrentarmos Israel. Porque neste momento estamos vazios.”
O que aconteceu com Baha foi uma derrota? “Claro! Salvar a vida é mais difícil do que resistir pela morte. Isso foi o mais triste, porque a vida dele nos ia ajudar mais do que a morte. Baha tinha tudo para fazer a vida mais bela aqui.”
Ibrahim ouve em silêncio. Depois pergunta se quero ver a cave por baixo do terraço, a pequena biblioteca pública que ele improvisou, e inspirou Baha. Descemos, estantes cheias, um mapa pré-1948. E lá está a fotografia da leitura de Baha, com Ibrahim ao lado de Mohammed, dois velhos amigos.
Muna e Ahmad, em Jerusalém Leste
Na noite seguinte vou a casa de Muna, a jovem tradutora com quem visitei Ibrahim. Ela mora em Beit Safafa, um bairro palestiniano atravessado pela Linha Verde, parte em Jerusalém Leste, parte em Jerusalém Ocidental. A casa dela fica em Leste, mesmo no limite da cidade, antes do muro de betão e do checkpoint que nos separam de Belém, já Cisjordânia.
Logo à entrada do bairro, vê-se o esqueleto do que o pai de Muna está a construir, um casarão que incluirá apartamentos para os filhos (dois rapazes, duas raparigas) e em baixo uma loja. Ele tem uma pequena cadeia de souvenirs em Jerusalém e arredores, aparentemente bem-sucedida: além do casarão em curso, as despesas correntes incluem ter o rapaz mais velho numa universidade em Londres, Muna pensa fazer o mestrado também no estrangeiro, e o apartamento alugado onde entretanto a família mora é novo, num bom prédio, com bons móveis, uma sala imensa. Muna acaba de estacionar o carro que costuma conduzir, daqui a pouco o pai chegará noutro. Ela é estudante da Universidade Hebraica, sempre que a vi estava de calças, pinta o cabelo de loiro e nunca o cobre, tal como a irmã mais nova, e ao contrário da mãe, que anda de lenço.
Muna traz o seu computador-tablet para ver comigo posts e imagens de Baha. Aos 22 anos, vive cercada de conforto material, dá-se bem com a família, tem planos e meios para o futuro, fala árabe, hebraico, francês e inglês, é graciosa, querida por professores e colegas, tem muitos amigos, incluindo vários israelitas. Mas nada lhe pareceu tão impressionante quanto a leitura de Baha: “Foi o maior acontecimento da minha vida.” Nada menos. Quando a contactei para a tradução (através de Rachel, mulher de Jackie e sua professora de Francês, portanto uma via não-palestiniana, que nada tinha que ver com Baha), Muna atalhou: “Baha Alyan? Eu sei quem é. Conheci-o.” Sinal de como ele teve impacto muito para além do seu meio.
“Sou contra matar seja o que for”, diz Muna, recostada no amplo sofá. “Tenho amigos judeus. Quando cheguei à universidade, sentávamo-nos separados, mas Rachel fez-nos gostar uns dos outros. Agora, abraço-os, viajo com eles. Por vezes, os amigos palestinianos não percebem isto, mas sou contra ataques, podem estar lá amigos. Acreditar que esta é a minha terra não me dá o direito de matar. As pessoas importam mais do que a terra. Gosto dos meus amigos judeus, não os posso culpar, eles nasceram aqui. A nossa vida importa, quero que vivamos sem nos matarmos. Eu aceito a palavra 'terrorista' em relação a quem mata.” Usada pelos media israelitas, e pelos israelitas em geral, em relação a qualquer palestiniano que faça um ataque. Tal como os palestinianos em geral chamarão 'mártir' a um palestiniano morto por israelitas.
Como foi Muna parar à leitura de Baha? “Uma amiga conhecia o irmão dele, ele pediu ajuda para transportar as T-shirts que tinham imprimido, milhares.” Muna levou caixas de T-shirts no carro, o mesmo em que fomos a Jabal Mukaber. E depois ficou lá a ler, como toda a gente, levara um livro da romancista argelina Ahlam Mosteghanemi (dez milhões de likes no Facebook), em que ela incentiva as mulheres a não aceitarem homens violentos e traidores. Mas viu Baha logo ao chegar. “Ele escorria água, de tanto esforço. A imagem que tenho dele é essa, como se estivesse debaixo de um chuveiro. Podíamos ver a alegria nos olhos dele. Comentei com a minha amiga que ele era bonito. E pensei: como pode um rapaz sozinho fazer isto tudo?”
A 13 de Outubro de 2015, quando Muna soube que acontecera um ataque, fez o que sempre faz: “Mandei uma mensagem a Rachel e aos meus amigos judeus, a saber se estavam bem.” Depois a amiga das T-shirts ligou, perguntou-lhe se sabia do que acontecera. Muna respondeu: “Sim, temos de parar com estes ataques.” Aí a amiga disse: “Mas sabes quem foi?” E Muna, como todos, negou: “Não, não pode ser. Não o Baha daquela leitura.” Então, não quis falar com nenhum amigo judeu sobre esse ataque. “Não posso dizer que Baha é um terrorista. Vi a cara dele e não a esqueço. Sempre olhei Jerusalém à luz dos israelitas, as lojas, os shoppings. Onde há muita gente, são judeus, e nós vemos tudo de longe. Mas no dia da leitura, era a minha cidade, o meu povo à volta das muralhas. Senti uma alegria, um orgulho! Foi a primeira vez que algo nos pertencia em Jerusalém, algo que não estávamos apenas a olhar de fora. Porque em geral o que acontece aqui não fala a nossa língua, não nos pertence. E ali estava toda a gente, todo o tipo de pessoas, de avós a bebés.”
Muna tinha seis anos na Segunda Intifada, já cresceu com os bairros palestinianos históricos cheios de judeus ortodoxos empurrando carrinhos de bebé como intrumentos de povoação em massa, arame farpado à volta das casas. Os colonos são uma visão constante para quem mora ou trabalha nesse centro vital de Jerusalém Leste: o pai de Baha, quando vai para o escritório, ou o rapaz que me falou nele a primeira vez, Ahmad Muna (sem relação com Muna).
Os Muna são das famílias mais conhecidas em Jerusalém Leste, donos da Educational Bookshop, livraria, quiosque e papelaria que já alimentou mais do que uma geração com jornais, mapas, cadernos e livros, em árabe e inglês. A Educational tem um pé no chique American Colony Hotel e outro na popular Rua Salah Ad-Din. Esse segundo pé dividiu-se em dois há uns anos, com a papelaria e os livros árabes na loja antiga, e um novo espaço no passeio em frente para livros, revistas, filmes em inglês, e um cafezinho. Um lugar onde toda a gente se encontra.
Ahmad fala inglês com o wit e o outfit (sobretudo as bermudas) de quem morou entre Kent e Londres dos 17 aos 24, cinco anos a estudar Contabilidade, dois a trabalhar. Teve uma namorada lá, anglo-árabe. Era uma vida com vantagens e desvantagens.
“O Plano A era trabalhar e voltar”, conta-me, ao balcão da loja antiga, enquanto o tio atende do outro lado da rua, e o pai, que dirige as livrarias, está no estrangeiro. “Mas quando comecei a trabalhar percebi que não pertencia ali. Não era nada hostil, nada por eu ser palestiniano. Eu apenas sentia que as pessoas não se importavam comigo. Eles simplesmente não querem saber. Há muita solidão na vida inglesa. Não era terrível. Só não era bom o suficiente.” Entretanto, os tories chegaram ao poder, os vistos ficaram mais difíceis e Israel pode tirar a Residência Permanente a um palestiniano que more mais de sete anos fora. Ahmad chegara a “dois limites, lá e cá”. Casar com a namorada era uma possibilidade. “Mas não quis fazê-lo pela razão errada. E para mim era fundamental poder voltar aqui.” Pais, irmãos, tios, avós.
Não foi fácil. “Jerusalém Leste não é um lugar em que se possa progredir. As opções são muito limitadas.” Para trabalhar na Cisjordânia, teria de cruzar checkpoints, para trabalhar com israelitas teria de aprender hebraico, e se tiver alternativa prefere não. Então aqui está, a vender canetas, blocos, jornais, o que for. “Também não estou interessado em trabalhar com ONG ou a ONU, porque as organizações internacionais têm de cooperar com Israel. Gerem a ocupação, tornam-na mais fácil. Os israelitas não têm de lidar com os palestinianos que querem visitar prisioneiros porque o Comité Internacional da Cruz Vermelha faz isso. A USAID constrói casas e estradas na Cisjordânia, quando a responsabilidade é de Israel. A ONU alimenta os refugiados, paga a escola. Claro que se não o fizessem ninguém o faria, e quem está na Cisjordânia e em Gaza precisa de apoio. O que as ONG fazem deve ser respeitado, a forma como operam é que é questionável. Não sei qual é a solução. Sei que é difícil. E os diplomatas vêm aqui e dizem que tudo é terrível mas não podem fazer nada. Não questiono os indivíduos. Quem trabalha para estas organizações quer ajudar, sem dúvida. Mas o sistema não está certo.”
A 8 de Outubro há eleições municipais palestinianas. Ahmad nem sabe se votará. “Mahmoud Abbas expirou há muito. Não respeitou o resultado quando o Hamas ganhou. Nem ele nem o mundo. As pessoas acham que acreditam na democracia, depois não gostam do resultado e agem de acordo. Abbas é um nada, não me representa, nem representa ninguém. Não percebo como ele não entende isto.” Parece consensual. Ao longo de dois meses e meio na região, não ouvi um palestiniano defender o ainda presidente da Autoridade Palestiniana. E Ahmad não vê alternativa. Volta e meia, o diminuído campo da esquerda israelita ainda debate a possível libertação de Marwan Barghouti, líder na Segunda Intifada, preso em Israel: poderia ele ser um interlocutor? Mas, para a nova geração de palestinianos, Marwan é remoto: “Quem está na prisão há 13 anos representa alguém? O que há de tão bom em estar preso? Como sabemos de que ele é capaz?” Perguntas de Ahmad que a geração anterior, tantas vezes presa, sempre honrando os prisioneiros, nunca faria. E o outro Barghouti, Mustafa, que na Segunda Intifada envolveu muitos estrangeiros em campanhas contra a ocupação? “Já se candidatou e não teve grande apoio. Ele não tem uma base. E não há caras novas. Quem me dera ver alguém de 40, 50 anos. Os jovens estão desligados porque ninguém os representa. Cameron demite-se e ainda não tem 50. Olho para o mundo árabe e o mais novo tem 60 e tal.” Ahmad sorri. “Precisamos de intervenção divina.”
Chegamos então a Outubro de 2015, a vaga das facas. Ahmad acha que foi o quê? “Os muito novos viam alguém e queriam fazer o mesmo, ser heróis, sem terem bem noção. Pensei que era uma fase, e foi o que foi. Intifada está fora de causa. Quem ia liderá-la?” Ahmad percebe que tenha acontecido. “As pessoas chegam a um ponto em que têm um muro aqui, outro ali, não podem voltar atrás, e fuck it. Precisam de libertar energia e não têm nada a perder. O que tenho dificuldade em aceitar é como perderam a esperança tão rápido, aos 15, 16 anos. De onde vem a esperança? Como dar-lhes esperança? Não defendo estes ataques. É muito errado. É triste. Compreendo a pressão mas não aceito que esteja certo.” Ao mesmo tempo, desde que voltou de Inglaterra, só viu a ocupação piorar. “Agora tenho um checkpoint a um minuto de casa por causa de um colonato com 180 casas, e está a expandir-se. Não invejo as pessoas na Cisjordânia, posso ir à praia, eles não, mas eu tenho de ver os israelitas todos os dias.”
A conclusão não é a preto e branco. Ahmad entende mas não aceita que os ataques estejam certos. Vê a ocupação crescer e isso exaspera-o mas nunca faria um ataque: “Valorizo a minha vida mais do que a minha morte. Mas também nunca criticarei quem morre a lutar.” Para se juntar a uma revolução agora, “pensaria se havia hipótese de ganhar”. Se não está arrependido de ter voltado de Inglaterra, também não exclui voltar a partir. Gosta de beber com os amigos, de viver como entende. Não gosta da falta de privacidade e liberdade em Jerusalém Leste. Quanto a Israel, “quem nasceu aqui não tem culpa, não escolheu”, mas o sistema “está baseado no racismo, os judeus sefarditas, os do Leste, os negros, os ortodoxos, há muitos problemas além dos palestinianos, o país está a ficar radical”. Tudo isto dito, Ahmad acredita que “há uma solução para o conflito”, e no seu tempo de vida. “O apoio internacional é maior, a voz palestiniana é mais ouvida, o boicote a Israel cresce, os pagantes de impostos nos EUA vão começar a perguntar para onde o dinheiro está a ir...”
Entretanto, gente vai morrer. E sobre Baha, porque aconteceu o que aconteceu, Ahmad tem uma expressão: mind-blowing. De dar muitas voltas à cabeça.
Faris, Nuwwar, Khalil, Hadil em Ramallah
(e uma roda de seis em Jenin)
Jogo de capoeira em Ramallah? Tem. Cercado pelo frenesim de quinta de manhã na maior cidade da Cisjordânia, boom de construção, boom de trânsito, boom de compras para o fim-de-semana, Faris enumera movimentos de capoeira com sotaque do Brasil. Estudou Educação Física, dá aulas numa academia, a capoeira é um extra.
Aos 21 anos, podia ser um baiano numa roda, caracóis, pele. Mas é palestiniano da gema, filho de um esquerdista várias vezes preso, farto de ver soldados israelitas entrar em casa à noite, com snippers em volta, porque uma vez preso, marcado para sempre. Faris sabe uma coisa: “Não quero passar a vida a entrar e sair da cadeia.” Viu a vaga das facas como “algo desesperado”, nada que o pudesse captar. “Porquê desperdiçar a vida? Porque Deus te vai dar o paraíso? E o que estás a fazer à tua família? E acentua essa ideia de que os palestinianos são terroristas. Dá uma desculpa a Israel. Vê o que aconteceu em Gaza em 2014. Não era uma guerra, não eram dois exércitos, era gente a ser bombardeada em casa. Então para quê aqueles rockets [do Hamas]? Acham que podem derrotar Israel com rockets? É sem sentido. A violência não vai levar a nada, só desperdiçará vidas. Eu cresci com violência a todo o momento.”
Canalizou toda a energia para o movimento físico. “Detesto que me batam e bater de volta. A filosofia do karaté é não tirar vantagem do fraco. Serás mais forte se voltares as costas. Há dois meses, fui a Telavive e recusei-me a entrar numa discussão. Mesmo uma discussão é violento para mim.”
Quando Israel começou a bombardear Gaza, Faris era voluntário do Crescente Vermelho, viu muitas crianças em protestos. “Ainda que seja um protesto pacífico, aparece sempre alguém a lançar pedras e acaba tudo a ser reprimido a tiro.” No checkpoint de Qalandia, que divide Jerusalém de Ramallah, viu soldados responderem com tiros, primeiro de borracha, depois fogo real. Mais de 450 feridos com balas, fora centenas com gás de nervos, que paralisa. “As crianças vêem violência e morte o tempo todo. Quando é o direito de cada uma ir à escola, comer, brincar. E se os pais não estão lá?” Como o pai dele tantas vezes não esteve, e aos 67 anos continua a ser chateado por Israel.
Além do desporto, Faris é líder de escuteiros, como Baha era. “Tento que não caiam nessa mentalidade doentia de querer dar a vida. Digo-lhes que não são eles que têm de tomar conta do país, o país é que tem de tomar conta deles. Vão levar uma bala num checkpoint e depois a AP vai receber dinheiro de outros países em nome deles, é isso?” Faris viu isso: “Um garoto vai aos escuteiros, anda numa boa escola, as pessoas gostam dele, um dia decide ir a um protesto num checkpoint, vai com a cara tapada com um pano e simplesmente leva um tiro nas costas.” Alguém que Faris conheceu bem. “É uma história que não me larga. Vi gente morrer por nada. Não posso aceitar isso.” Ao mesmo tempo, separa as coisas. “Não sinto ódio se falo com um israelita da minha idade. Ele não pediu para nascer neste país.” Não é o primeiro e também não será o último a quem ouvirei isto. “Há 15 anos, talvez não achasses alguém com este discurso, porque a resistência era o único lugar em que os palestinianos se viam. Mas o que temos hoje é um governo que não nos protege. Não luta. Não faz nada.” Receptor dos apoios internacionais, do investimento que se vê nas ruas de Ramallah, torres em construção, ruas entupidas de carro. Expansão dentro da ocupação.
Descendo para a Cidade Velha, reencontro a Al Kamandjati, escola de música fundada há dez anos por Ramzi Aburedwan, que em criança foi símbolo da Primeira Intifada, se tornou violetista, colaborou com Daniel Barenboim. E o que vejo, ao chegar sem aviso, é um pátio cheio de professores e estudantes, em que os estudantes de há dez anos são os professores de agora. Eles, que começaram ensinados por estrangeiros, estão por sua conta, já.
Por exemplo, Khalil, agora com 22, tinha 12 quando o vi a desfilar pelas ruas na Festa da Música de 2006, tocando tambor. Cresceu num campo de refugiados, o pai fez a sua própria guitarra, a irmã, Hadil, 20 anos, aprendeu piano, também está aqui no pátio, parecem gémeos, só que ele de barba e ela de lenço. Ele estava a tocar em França quando foi a vaga das facas, e de repente “os palestinianos estavam nos media franceses como terroristas”. Ela estava aqui: “Foi terrível, tivemos tantas mortes, não nos sentíamos seguros. Não queremos a ocupação, pensamos que temos de lutar, mas se lutamos morremos, e não faz muita diferença. Já tivemos tantos mártires e nada aconteceu, pais a chorar, gente que se transforma em memória. Não mudamos nada.”
O pátio está cheio de buganvílias, sol da tarde na pedra, escalas de música em volta, mas a alguns passos, a algumas horas, a guerra continua cá. “Quando estava em França, conheci israelitas”, diz Khalil. “Só soube depois. Fomos amigos antes de eu saber. E quando lhes falei na ocupação eles responderam com o Holocausto.” Conversa sem saída. “O que posso fazer pela Palestina? Ensinar bateria às crianças. Mas muitas coisas têm de acontecer. A AP, Abbas, talvez sejam um grande problema.” A irmã sorri: “Não é talvez, são. Abbas ou Hamas, não confio em ninguém.”
Num café não muito longe, sento-me com Nuwwar, 20 anos, bailarina e estudante de Sociologia de Birzeit, universidade próxima de Ramallah e um epicentro dos protestos políticos, com o Hamas à cabeça da Associação de Estudantes. O pai, muçulmano, é de uma família de refugiados do Norte de Israel, a mãe, cristã, de uma família antiga de Ramallah. Tão antiga que a velha casa de pedra, pré-1948, ainda está de pé, vazia, no meio de prédios, Nuwwar leva-me lá. Gostava de a poder recuperar, morar nela. Os pais estiveram activos na Primeira Intifada, o pai chegou a estar preso uns meses. É um padrão nesta geração. Nuwwar anda de cabelo descoberto, bebe álcool, não vai à mesquita. “Não caber na moldura islâmica não foi um problema no liceu, mas é um problema em Birzeit, onde há muita gente das aldeias, mais conservadora.” O aumento de raparigas que passaram a cobrir a cabeça foi algo que até Nuwwar, no seu curto tempo de vida, observou. “Senti isso muito nos últimos cinco anos. Hoje, em cem numa aula, só umas 20 não estão cobertas.” Nem de propósito, o muezzin do lado sobrepõe-se à conversa e Nuwwar comenta: “É isto cinco vezes ao dia. Quando a religião é algo para cada um, não para impor aos outros.”
Ao mesmo tempo, ela não valoriza muito a vitória do Hamas em Birzeit: “Foi só porque as pessoas estavam fartas da Fatah.” E acredita que, depois das gerações só focadas em política, esta possa ser “mais aberta”, mais empenhada “na liberdade do indivíduo”. A abertura ao mundo não se compara: “Sabemos muito, e mais rápido, a Internet é decisiva.” A vaga das facas gerou protestos entre os universitários de Birzeit, mas ela não participou e eles não se alargaram. “As pessoas têm empréstimos, casas, carros, têm mais a perder. Se eu for para a rua perder coisas, quero saber em nome de quê. Por que se formos para a rua vamos ser presos ou mortos. As pessoas transformam-se em números, e provavelmente poderiam fazer mais estando vivas.”
À noite, reencontro Faris. Vai mostrar-me o que é quinta à noite em Ramallah, em 2016: DJ, bares cheios, pista de dança cheia, raparigas de micro-shorts e macrodecotes, rapazes furando a multidão com copos de cerveja levantados, como em qualquer lugar onde rapazes e raparigas saiam à noite.
Não é o caso de Gaza (onde agora, para um jornalista entrar, tem de se submeter a um interrogatório prévio do Hamas, e contratar um jornalista local que não seja perseguido pelo Hamas, como vários estão a ser). Nem será o caso de Hebron, onde fui há semanas, ou Jenin, onde vou na manhã seguinte.
Para quem não visitava a região há sete anos, a multiplicação de colonatos pela Cisjordânia é brutal, para sul como para norte, colinas cheias de casas, mais tudo o que as serve pelo meio, estradas, segurança, infra-estruturas.
No campo de refugiados de Jenin, seis actores entre os 18 e os 25 preparam a próxima estreia do Freedom Theatre (ver Ípsilon, 9 Setembro). Vim para assistir ao ensaio, no fim conversamos. Uma roda, no chão da Black Box, num lugar que há 15 anos estava cheio de resistência armada. “Resisto com a arte, é o meu meio”, diz Amir, o mais jovem, ainda com acne. “Todo o tempo penso como ser parte desta comunidade. E se não fosse o muro, os de 1948 e nós poderíamos lutar juntos. Assim, eles estão a lutar sozinhos e nós também.” Ihab, que vem do outro extremo da Cisjordânia, Hebron, diz que “só estar na Palestina é resistir, porque Israel não roubou só a terra, rouba o espírito”. Osama, o mais velho: “Escolhi teatro, mas todo o tipo de resistência é bom. Israel deve sentir-se ameaçado todos os dias. Não pode sentir-se bem com o que está a fazer.” Ibrahim, o acrobata do grupo: “Acredito em todo o tipo de resistência, armas, arte, precisamos de tudo. Temos um único objectivo, a Palestina. Não há nenhum país chamado Israel.” Osama: “Mas um único estado não é um estado islâmico, é para cristãos, muçulmanos, judeus.” Ibrahim: “Aceito ter judeus no meu prédio quando a Palestina for livre.” Ranin, cabelo e roupas que em Jenin fazem dela uma rara rapariga-rapaz: “Estou no Freedom para aprender teatro, viajar pelo mundo e falar da minha identidade. Estar aqui é a maior forma de resistência.”
Última morada ou os caminhos que se bifurcam
Quando Baha morreu, recuperaram do seu Facebook um post do ano anterior com os “10 mandamentos de todo o mártir”. Na altura terá sido tomado como ficção, mas depois da morte é difícil não o ler como anúncio. Falando na primeira pessoa, como alguém que se prepara, Baha diz que não quer posters, aproveitamentos políticos, televisões a esgotar a mãe com perguntas, gente a alimentar ódio para vingar a sua morte ou tristeza por ter morrido. “Fiquem tristes com o que vos está a acontecer depois de mim.” E pede: “Não olhem para o que escrevi antes. Perguntem qual a razão por trás.”
Ao começo da madrugada de 31 de Agosto para 1 de Setembro, recebo duas mensagens a dizer o mesmo: Baha acaba de ser enterrado. Israel avisou Mohammed em cima da hora de que o corpo ia chegar, o enterro seria no cemitério da Salah Ad-Din, à meia-noite, com não mais de 25 pessoas (a polícia israelita remeteu as minhas perguntas sobre a retenção e negociação dos corpos para o Ministério de Segurança Pública, que remeteu para o porta-voz do ministro, que até ao fecho deste texto, onze dias depois do primeiro contacto, não respondeu).
Na manhã de 1 de Setembro, a Salah-Ad Din está tão movimentada como sempre. Velhas palestinianas de roupa bordada vendem amêndoas, figos, uvas, as frutas da época. Cheira a hortelã fresca, a café com cardamomo, a pão de sésamo saído do forno, empilhado em carrinhos. Nunca tinha dado por um cemitério aqui, mas lá está ele, um portão com dois palestinianos encostados. Digo apenas “Baha Alyan?” Um deles conduz-me, subimos entre centenas de campas até uma colina, ele aponta um quadrado de pedra com terra revolvida, por cima flores recentes. Cruzo-me com um rapaz de jeans, que vai a sair, ao fim de um minuto aparecem duas raparigas, longos cabelos descobertos, jeans, flores. Pousam o ramo na campa, fotografam-na, enquanto me afasto. Ficam ali a chorar, limpando as lágrimas com as mãos, sem falar.
Não voltarei a rever Mohammed. Através de Nasab, a poeta, que o trata como tio, percebo que não é possível. Ele decidiu partir para Meca já na terça, fazer o haj (peregrinação). Provavelmente mais para se afastar de tudo do que por razões religiosas. No dia seguinte, Nasab manda-me uma mensagem, que lhe pergunto se posso citar: “Esperámos por Baha muito tempo, e não pensei que ele voltaria para ser enterrado enquanto estivesses a escrever esta história. É muito cruel esperar por alguém que volta morto. Não sei o que sentir. Hoje falei com o tio Mohammed. Ele diz que ainda não pode mergulhar na tristeza porque tem de ficar forte pelas outras famílias que ainda esperam os filhos. Baha deixou o caminho da vida e foi pelo da morte por achar que o sonho da Palestina ficaria mais próximo. Eu acredito no caminho da vida. Há vários caminhos, cada palestiniano escolherá o seu.”
O cemitério de Baha fica junto às muralhas da Cidade Velha. Saindo, vê-se a Porta de Herodes, adiante a Porta de Damasco, mais acima a Porta Nova. Foi neste pedaço de Jerusalém que milhares de palestinianos se juntaram a ler num domingo. Israel terá escolhido este cemitério por ser central, fácil de controlar, uma coincidência involuntária. Mas, sempre que alguém vier visitar Baha Alyan, estará no lugar que ele próprio escolheu para a maior festa na sua cidade.