Palestina: teatro de resistência

O Freedom não é uma alternativa à resistência, é uma forma de resistência. Fomos a Jenin quando o encenador Tobasi e os mais jovens seis estavam a fazer a mala para Portugal. Estão cá.

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FOTO: Alexandra Lucas Coelho

Ir ver o Freedom Theatre a Jenin dá uma boa ideia da escalada israelita na Palestina. Porque para chegar lá, ao extremo Norte da Cisjordânia, é preciso atravessar centenas de milhares de colonos, e o caminho está cheio de estradas novas, nomes novos nas placas, bombas de gasolina novas, casario novo com vedações novas com arame farpado novo, torres de electricidade e condutas de água novas, muito de novo para colonos novos.

Foi o que vi no fim de Agosto, partindo de Jerusalém Leste para Ramallah, depois entre Ramallah e Nablus, e entre Nablus e o distrito de Jenin, onde finalmente se avistam colinas livres de israelitas. Semanas antes, vira a mesma multiplicação de colonatos na direcção inversa, para sul, até Hebron. Neste Verão de 2016, sete anos depois da última vez que viajei pela Palestina, o avanço da ocupação é esmagador, de Norte a Sul. E a expressão “processo de paz”, na boca de políticos internacionais, um pouco mais patética. O Freedom faz questão de dizer que o seu teatro não é uma alternativa à resistência mas sim uma forma de resistência. Estando onde está não poderia ser outra coisa, se é que o teatro, ou qualquer outra arte, pode ser outra coisa.

Quando cheguei a Jenin, os seis actores finalistas da escola do Freedom preparavam-se para estrear um espectáculo e vir a Portugal, todo o mês de Setembro, acompanhados pelo encenador, Ahmed Tobasi. À espera deles estaria Micaela Miranda, a portuguesa que há oito anos se juntou ao Freedom, e dirige a escola. A tournée começou dia 3 na Festa do Avante; desde dia 5 e até amanhã o poiso deles é o Teatro da Barraca, em Lisboa, com espectáculos, workshops e conversas; dia 12 estão na Maia; de 13 a 18 no Teatro do Bolhão, no Porto; dia 20, em Vila Nova de Gaia (sessão de solidariedade com refugiados); a 21, em Santa Maria da Feira; 24 e 25 em Tondela.

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O encenador Ahmed Tobasi, com a sua t-shirt do Freedom: não é difícil imaginá-lo a lutar FOTO: Alexandra Lucas Coleho

À espera de visto

Menos populosa e mais remota, Jenin não vive o boom de construção nem tem o movimento de Nablus, Ramallah ou Hebron, sobretudo numa sexta-feira, dia santo: tudo fechado às dez e meia da manhã. Da estação de autocarros (aliás, carrinhas) é uma caminhada de quinze minutos para o teatro, primeiro através da cidade, depois no campo de refugiados. Quando à direita aparece um par de murais coloridos, não há que enganar, é a entrada do Freedom, que funciona num pequeno prédio: escritório, sala de reuniões e residência de convidados no primeiro andar, black box com plateia no pátio da frente.

Johanna Wallin e Jonatan Stanczak, ambos suecos, responsáveis pela comunicação e administração, e a morar por cima do escritório com os seus dois filhos louros, dão conta das peripécias da viagem, suspense até à última, porque o visto português ainda não chegou, os actores vão voar na quarta-feira de Amã, e precisam de partir de Jenin na terça. “Têm de atravessar quatro fronteiras: a da Autoridade Palestiniana, a de Israel, a da Jordânia e a de Portugal”, diz Jonatan, co-fundador do Freedom em 2006. “Como nunca se sabe quanto tempo demoram nas filas da ponte [Allenby, fronteira com a Jordânia, e única saída que permite aos palestinianos dos territórios ocupados irem apanhar um avião], têm de ir no dia anterior.” Isso significa todo um orçamento até ao avião: transporte, alojamento e refeições. Ou seja, só chegar ao aeroporto exige a um palestiniano mais tempo e dinheiro do que a qualquer outra pessoa. E implica voar para Portugal com duas escalas, enquanto os israelitas e os estrangeiros (ou seja, todos os que podem ir a Telavive) têm voos directos ou com uma escala, mais baratos. Ocupação também é tempo e dinheiro roubado.

E palestinianos divididos, e perda de memória. “Um dos nossos problemas é que não sabemos muito uns dos outros”, diz Ahmed Tobasi, 32 anos, o encenador. “As pessoas em Jenin não sabem o que está a acontecer em Hebron, como não sabem o que foi o Acordo de Oslo.” Assinado em 1993, para uma solução dois-estados, Israel e Palestina, e rapidamente largado, com colonatos a crescer, até vir a Segunda Intifada, em 2000. A geração que vai a Portugal, filha, neta, bisneta de palestinianos refugiados em 1948, em 1967, cresceu sem paz, quando a Intifada já se diluíra, as guerras se multiplicaram, e milhões de novos refugiados alarmam o mundo, pelo menos durante o tempo de uma fotografia. Quem vai ter espaço para os de 1948, os de 1967? Quem ainda se lembra? O que há para lembrar? Perguntas que são trabalho, e a que Tobasi pode acrescentar muitas outras: “Por que não lutamos? Por que aceitamos a tenda e a lata de sardinhas? Se aceitarmos isso, aceitaremos o que se segue.”

"Não sou como Israel"

Barbas negras, boné, t-shirt do Freedom, não é difícil imaginar Tobasi a lutar. E, de facto, quando começamos a falar da história recente, era o que ele estava a fazer na primeira vez que entrei neste campo de refugiados, Primavera de 2002, plena Segunda Intifada. Israel invadira o campo para pôr fim à resistência armada. Tanques, escavadoras, rockets, snippers. O exército bloqueou a entrada da imprensa internacional. Quando finalmente conseguimos passar, havia corpos nos escombros, mulheres vagueavam por cima das casas demolidas em busca de filhos, de maridos, os homens sobreviventes haviam sido levados, presos. Homens: muitos adolescentes. Tobasi tinha 17 anos. Este barbudo sentado à minha frente na black box era um desses miúdos.

A família de Tobasi fugiu de uma aldeia da Galileia em 1948, quando o estado de Israel foi declarado. Tios tornaram-se refugiados no Líbano, na Jordânia, e o pai dele aqui. Ele nasceu aqui em 1984, e quando a Segunda Intifada rebentou “toda a gente acabava por estar envolvida” nos movimentos armados, Jihad Islâmica, Hamas, Brigadas Al Aqsa, porque “eram família, amigos, conhecidos”, conta Tobasi. Bombistas suicidas sucediam-se nas notícias, em mercados, cafés, autocarros. “Aqui, acreditámos mesmo que podíamos ganhar aos israelitas.” Até que a invasão veio. “Eu estava no cimo de um prédio à noite e de repente vi milhares de luzes!” Arregala os olhos, abre os braços. “O que era aquilo?! Então comecei a ouvir os helicópteros, os tanques e percebi: eles vêm para nos destruir. Eu tinha uma AK-47 e estava sozinho. Corri para baixo, um amigo convenceu-me a ir para casa, porque era o mais novo da família, entreguei-lhe a arma. Nessa altura já estávamos cercados por todo o lado. Encontrei o meu pai na rua, ele disse, vamos para casa, e eu disse, ok, já lá vou ter. Vi-o quatro anos depois.”

Quando saiu da cadeia. Mas antes de os israelitas o apanharem ainda passou dias no combate, a correr dos snippers. “Eram como fantasmas, não percebíamos onde estavam.” Numa dessas vezes, quando se voltou, levou um tiro no braço, mostra a cicatriz. Muitas famílias refugiadas numa só casa, sem água, sem comida, feridos. Impossível continuar. Renderam-se. E aí foram presos, revistados, interrogados, uma longa fila de homens em roupa interior, na floresta. “‘Por que estás a fazer isto?’ ‘Por que és terrorista?’ E eu respondia: ‘Não sou terrorista.’ ‘Proteges quem é!’” O apelido aumentava o problema. “O meu primo tinha-se feito explodir num mercado em Haifa, era do Hamas: Shadi Tobasi. Quando eu dizia o meu nome, ohhhh… começavam a ameaçar-me, que me iam enfiar na cadeia com drogados que me iam violar, que iam trazer o bulldozer para destruírem a minha casa.” De cadeia em cadeia, andou entre Ramallah e o deserto do Negev, o mais novo no meio de prisioneiros políticos. “Aí percebi o quanto estávamos divididos, cada um trabalhando por aquilo em que acreditava e não pela Palestina. É por isso que faço teatro agora, não acredito mais nisso. Tudo isso, resistência armada, violência, morte, não levou a nada. Acabou com a vida das pessoas. Eu não sou como Israel, por que hei-de matar outra pessoa? Na Segunda Intifada, os palestinianos foram traídos pelo sistema de corrupção que temos. Levaram as pessoas a acreditar em morrer, quando as pessoas não sabiam nada do que se passava.”

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Os seis actores finalistas da escola do Freedom preparando-se para estrear um espectáculo e vir a Portugal, todo o mês de Setembro FOTO: ALexandra Lucas Coelho

24 peças, 100 mil espectadores

Na prisão, Tobasi teve este flash. “Perdi os meus amigos, quatro anos preso por nada. Não estamos a resistir, eles é que estão a controlar, nós estamos a fazer o que eles querem, e isso não é resistência.”

Saiu em 2006 da cadeia, onde já tinha feito alguns sketches teatrais. Juliano Mer Khamis (filho da activista israelita Arna Mer Khamis) acabava de fundar o Freedom Theatre com Zakaria Zubeidi, ex-líder das Brigadas de Al Aqsa em Jenin, que decidira trocar a luta armada pela resistência através da arte. Tobasi fez vários workshops, depois o primeiro curso da escola do Freedom. E um dia, pela primeira vez, saiu por Allenby: “Comecei a chorar no meio da ponte.” Bruxelas pareceu-lhe outro planeta. “Aí, decidi que não podia voltar mais fraco. Queria aprender.” Pediu asilo na Noruega, morou sete anos em Oslo, estudou teatro. Estava lá quando, em 2011, Juliano foi morto a alguns metros daqui. Israel investigou e não achou o assassino: “Como é possível, se são capazes de prender gente por sonhar fazer qualquer coisa?” Não é o primeiro e não será o último a que ouvirei esta pergunta, neste campo de refugiados. Tobasi voltou à Palestina em 2014, antes de Israel começar a bombardear Gaza. “A certa altura pensei, fuck, a Noruega tem teatros, tem dinheiro, não precisa de mim.”

Já esteve na África do Sul, no Congo, no Burkina Faso ou no português Festival Alkantara. Quando voltar desta tournée portuguesa, vai receber um iraquiano que escreverá uma peça sobre a sua história, e vão estreá-la em Londres. Quanto ao Freedom, conta 24 peças para 100 mil espectadores, entre adaptações (Orwell, Lewis Carroll, Harold Pinter, ou o palestiniano Ghassan Khanafani, protagonista de uma das peças da tournée portuguesa) e montagens originais como Return to Palestine (a outra peça da tournée). Envolveu uma centena de mulheres em ateliers de fotografia e cinema, e formou 12 actores.

Amir, 18 anos, Samah, 22, Ihab, 23, Osama, 25, Ibrahim, 24 e Ranin, 23 (quatro de Jenin, um de Hebron, um de Belém) são a última leva, o grupo que estará em Portugal com Tobasi. Chegam pontuais para o ensaio da uma da tarde, mesmo sendo sexta-feira. Já passaram uma longa temporada na Índia. Portugal será a segunda grande viagem da vida deles. Nas próximas horas, nesta black box de Jenin, vão repetir à exaustão pedaços de cenas, como qualquer actor. Osama há-de ferir o pé, porque há pedras verdadeiras no palco, sairá para o hospital, voltará. Depois das cenas, vão passar a peça toda, e Tobasi será duro, vai esbracejar, levar as mãos à cabeça, como qualquer encenador. Eles querem fazer teatro, é isso que querem fazer. Mas sabem que só estar aqui já é resistência.

O visto para Portugal chegou no último minuto.

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