A guerra interminável começou a 11 de Setembro

A resolução aprovada pelo Congresso americano poucos dias depois dos atentados é usada por Obama. O mês passado, por exemplo, serviu-lhe para lançar ataques na Líbia. No horizonte da Síria, dos EUA e do mundo há mais conflitos, não menos.

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Um curdo perante a sua cidade, Kobani, destruída nos combates contra o Daesh Bulent Kilic/AFP

Há 15 anos, começou a guerra infinita. Foi a 11 de Setembro, podia não ter sido. Aconteceu assim. As torres foram derrubadas e estava no poder quem estava. Com outros líderes poderia ter sido tudo diferente. Ou talvez tivesse acontecido exactamente da mesma maneira. Certo é que quase 3000 pessoas morreram. O chão saiu debaixo dos pés dos que vivem em Nova Iorque e Washington. Para quem vive no Iraque, Afeganistão, Iémen ou Síria o mundo também começou a mudar, mesmo que ainda não fosse possível saber ou imaginar como.

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Há 15 anos, começou a guerra infinita. Foi a 11 de Setembro, podia não ter sido. Aconteceu assim. As torres foram derrubadas e estava no poder quem estava. Com outros líderes poderia ter sido tudo diferente. Ou talvez tivesse acontecido exactamente da mesma maneira. Certo é que quase 3000 pessoas morreram. O chão saiu debaixo dos pés dos que vivem em Nova Iorque e Washington. Para quem vive no Iraque, Afeganistão, Iémen ou Síria o mundo também começou a mudar, mesmo que ainda não fosse possível saber ou imaginar como.

No dia 14 vão completar-se 15 anos da aprovação, no Congresso dos Estados Unidos, de uma resolução conhecida como Autorização para o Uso da Força Militar (AUMF, em inglês), que dá ao Presidente que estiver sentado na Casa Branca autoridade para “usar toda a força necessária e apropriada contra as nações, organizações ou pessoas que determinar terem planeado, autorizado, cometido ou auxiliado ataques terroristas”, assim como contra os que “abrigaram estas organizações ou pessoas”.

Sim, a AUMF ainda está em vigor e continuará a ser legal quando o sucessor de Barack Obama for eleito. Se o Presidente George W. Bush usou a resolução para bombardear o Afeganistão, declarar “guerra ao terrorismo” e ao “eixo do mal”, invadir o Iraque (houve debate e uma votação específica a autorizar a invasão, mas a AUMF – e a “guerra preventiva” – como única forma de derrotar quem conspira contra os EUA antes do país sofrer novos ataques esteve entre as justificações) e lançar drones no Iémen; Obama ainda hoje a usa para bombardear alvos na Síria, Iraque, Líbia, Somália, Afeganistão, Paquistão, Iémen, ou para mobilizar forças especiais em qualquer país.

A Administração em funções descreveu a AUFM como desactualizada e a candidata democrata Hillary Clinton “gostaria de a ver revista”, apesar de concordar que autoriza o uso da força contra o autoproclamado Estado Islâmico, ou Daesh. A verdade é que ninguém se esforçou por substituir esta resolução nos últimos anos e muitos peritos acreditam que melhor do que uma pequena alteração cosmética seria a definição de uma nova doutrina.

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As Torres Gémeas, pouco depois do ataque de 11 de Setembro de 2011 REUTERS/Brad Rickerby

Para já, é o que temos. Defendendo que “a interpretação forçada que a Administração Obama faz da AUMF de 2001 contraria totalmente os princípios dos legisladores e dos fundadores [que deram ao executivo poder para usar força defensiva quando as ameaças à nação são tão iminentes que o Congresso não tem tempo de agir]”, o professor de Direito e Diplomacia Michael J. Glennon cita o senador Tim Kaine para sublinhar os riscos da situação. Numa entrevista a semana passada ao think tank Council on Foreign Relations, o académico recorda o que o agora candidato a vice de Clinton disse em Maio: “Não é difícil imaginar que um futuro Presidente possa usar este exemplo para justificar iniciar uma guerra sem a autorização do Congresso”.

Este exemplo é o uso por parte de Obama da resolução pensada para atacar os autores dos atentados, a Al-Qaeda e os taliban, contra o Daesh, um grupo que nasceu no Iraque pós-invasão e que, recorde-se, combate a Al-Qaeda na Síria (mesmo se no Iémen, por exemplo, já acontece unir-se à mesma a Al-Qaeda, contra o inimigo comum, os rebeldes xiitas houthis). Sim, o Daesh pode ser analisado como um descendente directo do grupo fundado por Osama bin Laden, mas… e se outro Presidente encontrar outra análise para sustentar uma guerra com outro alvo qualquer?

Independentemente de quem for eleito em Novembro, os últimos 15 anos foram partilhados por duas presidências que não podiam ser mais diferentes e que, no entanto, cada uma à sua maneira, usaram a AUMF para “abrir uma era de guerra indefinida”, escreve, no mesmo Council on Foreign Relations, Samuel Moyn, professor de Direito e História em Harvard. E se é a Bush que os EUA devem quase todos os 7000 militares mortos em combate desde 2001 (para além de 50 mil feridos), é Obama, a quem devemos a pragmática máxima “não fazer coisas estúpidas”, que “deixa como um dos seus principais legados a reinterpretação da AUMF como aparentemente sem limites”, diz Moyn (citando outros dois professores de Direito, Curtis Bradley e Jack Goldsmith).

Limpa e “humana”

A resolução de Setembro de 2001 “provou ser mais elástica do que anteriores autorizações do poder da guerra porque o inimigo é muito mais fungível e não tem fronteiras geográficas claras”, escreve Moyn. “Mas, mais importante, enquanto as atrocidades no Vietname acabaram por tornar essa guerra impopular, ajudando a pôr-lhe fim, o Presidente Obama percebeu que se a guerra se tornar limpa e ‘humana’, pode ser interminável. Ataques com drones, entre outras práticas, valeram críticas a esta guerra para sempre, mas nunca as suficientes para que diminua de intensidade, talvez porque os drones representam um conflito mais livre de danos colaterais do que qualquer outra contrainsurreição na história”. 

Estes 15 anos de guerra não se fizeram só de drones, nem apenas de ataques aéreos. A verdade é que nunca saberemos ao certo quantos civis morreram em guerras iniciadas por autoridade total ou parcial da resolução aprovada pelos congressistas nesse dia 14 de Setembro e assinada por Bush a 18. Se pensarmos apenas no Iraque, são centenas de milhares de pessoas.

Durante vários anos, o Pentágono viu-se sem tropas suficientes para satisfazer o belicismo de uma Administração que quis mudar o Grande Médio Oriente e acreditou que isso se fazia a partir de Bagdad. A resposta fez-se com custos dramáticos para as Forças Armadas, como a multiplicação de comissões de serviço cada vez mais longas; e com custos dramáticos para todos, das populações locais às ONG, com a subcontratação da guerra. Há 15 anos alguém usava com normalidade a palavra contractor? A subcontratação não se fez só a empresas, fez-se a países aliados ou a milícias, criadas para o efeito como os Filhos do Iraque, ou já existentes como, agora mesmo, se faz com os curdos na Síria ou no mesmo Iraque.

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Bush abriu Guantánamo, que Obama ainda não conseguiu encerrar Win McNamee/Reuters

Se foi Bush que abriu Guantánamo (que Obama não vai conseguir encerrar) e invadiu o Iraque – no que Obama descreveu como “uma guerra estúpida”, a tal que não se devia fazer –, distraindo-se do Afeganistão e de Bin Laden, foi com Obama que os drones se tornaram na escolha por excelência de uma “guerra ao terrorismo” nunca terminada, onde os alvos mudam e pouco importa onde se ataca. Do Paquistão à Líbia, foram sete os países onde os EUA estiveram ou estão (com tropas ou apenas Força Aérea) nestes 15 anos.

Um dia normal

Hoje, num dia normal, para além de eventuais ataques com drones, a Força Aérea dos EUA bombardeia alvos na Síria, Iraque e Afeganistão. E depois das guerras dos milhões de milhões de dólares e das centenas de milhares de soldados, Washington faz isto com menos de 10 mil militares no Afeganistão, 5000 no Iraque e umas centenas na Síria.

A curto prazo, tudo isto está a funcionar e os objectivos americanos parecem muito mais próximos de atingir do que há dois anos, quando os radicais extremistas que substituíram Bin Laden e o ultrapassaram no fundamentalismo e no horror entravam pelo Iraque e declaravam um califado. Até no Afeganistão, de onde a retirada dos EUA foi sucessivamente adiada, são as forças de segurança locais que fazem agora grande parte do esforço de combate contra os taliban.

Na Síria, para além do acordo alcançado com a Rússia para combater o Daesh, e independentemente da sua viabilidade, a verdade é que já estava em marcha um plano para atacar Raqqa (possivelmente com os turcos) e no Iraque se espera poder atacar Mossul o mais tardar no início de 2017. Quer isto dizer que a guerra infinita e total (onde uma nova frente pode começar sem pré-aviso e não passar de um raide ou arrastar-se sem data) está a dar frutos e pode conduzir, em breve, à sua própria extinção?

Nada disso. Antes pelo contrário. “Como a guerra às drogas ou a guerra à pobreza, a guerra pelo Grande Médio Oriente tornou-se um elemento permanente na vida americana e é aceite como tal”, escreve Andrew Bacevich, coronel na reforma e professor na Universidade de Boston. Os EUA, continua Bacevich no livro America’s War for the Greater Middle East (editado em Abril), “não escolheram conter nem esmagar, em vez disso traçam um voo a meio caminho; na verdade, escolheram o agravamento”. Isto por terem o instrumento perfeito para esta opção: os drones.

Tudo é conflito

Tanto Hillary Clinton como Donald Trump (o candidato republicano à presidência) já deixaram claro que as guerras actuais são para continuar e podem ser até para intensificar, prometendo mão dura contra os radicais do Daesh. No acordo anunciado este sábado de madrugada pelo secretário de Estado, John Kerry, e pelo ministro dos Negócios Estrangeiros russo, Sergei Lavrov, junta-se a ex-Frente al-Nusra ao rol de inimigos a atacar. Na prática, Washington (tal como Moscovo, apesar das diferenças) não distingue com precisão esses inimigos e é natural que não o faça.

“Tornou-se cada vez mais difícil definir os nossos inimigos”, escreve no seu novo livro Rosa Brooks, professora em Georgetown que já trabalhou no Pentágono. “Quando travamos guerra contra um inimigo sem forma, sem nome e sem Estado – um inimigo com objectivos e métodos igualmente incertos –, é complicado antecipar como é que essa guerra alguma vez pode acabar”, resume em How Everything Became War and the Military Became Everything, de Agosto.

Novas frentes, atentados

Num exercício que é assustador sem deixar de ser simples e bastante directo, Liz Sly, correspondente do jornal The Washington Post em Beirute, concluiu que “à medida que os bastiões do Daesh vão caindo” a guerra liderada pelos EUA começa a chegar a um ponto onde deve ser pensado o que se segue. A resposta não podia ser mais clara: “Para já, a resposta parece ser algo como mais guerra”, escreve Sly.

A jornalista enumera dez conflitos que podem começar na ordem pós-Daesh, da já iniciada guerra entre curdos e Turquia, passando por uma que oponha o regime sírio aos curdos da Síria, outra em que seria Bagdad a combater com os curdos iraquianos até chegar a um conflito em que os restos do Daesh combatem contra todos os outros actores em jogo.

Outro dado fundamental: nos últimos anos, tudo se acelerou nesta guerra permanente, em particular o número de atentados na Europa lançados ou inspirados nos radicais com capitais na Síria e no Iraque. O que sírios e iraquianos já sabem é também que, à medida que estes perdem território, deixam de se preocupar tanto em mantê-lo e concentram-se mais em conseguir lançar ataques mortíferos contra alvos simbólicos, como Bagdad (ou Nice). É inevitável que os atentados nestes países continuem e o mesmo acontece nas cidades europeias, para onde já regressaram centenas de recrutas que passaram por campos de treino sírios e iraquianos.

Isto com novos políticos no lugar de Obama, mas também possivelmente de François Hollande (França), Angela Merkel (Alemanha) ou Theresa May (Reino Unido). O que estas mudanças de liderança podem significar para esta “era de guerra indefinida” está por saber.