Bin Laden: Ele “odiava mais os inimigos do que amava os filhos"

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Osama guerreiro, garantem muitos “mujahedin”, é mais mito do que realidade Foto: Reuters

Um dia, Osama bin Laden convocou uma reunião com os seus combatentes e quis que todos os filhos estivessem presentes. A família vivia em Kandahar, o berço do movimento taliban, no Sul do Afeganistão, numa casa sem electricidade onde a comida escasseava, rodeada por outras casas simples habitadas por leais seguidores. “A palestra foi a respeito das alegrias do martírio, de como era a maior das honras para um muçulmano dar a vida pelo islão”, conta Omar bin Laden (“A minha vida com Osama bin Laden”, ASA).

“Quando a reunião acabou, o meu pai chamou os filhos, incluindo os mais novos. […] Estava, o que era raro, de bom humor. […] Depois de nos termos sentado no chão, formando um semicírculo aos pés dele, continuou: ‘Ouçam, meus filhos, há um papel afixado na parede da mesquita. Esse papel é para homens que sejam bons muçulmanos, homens que se ofereçam para ser bombistas suicidas.’ Olhou para nós com um brilho de expectativa nos olhos”, descreve Omar. Primeiro, nenhum dos rapazes se mexeu. Osama repetiu o que tinha dito e Omar viu um dos irmãos mais novos sair a correr em direcção à mesquita.

Foi aí que percebeu que o pai “odiava mais os seus inimigos do que amava os filhos”. “Como nos pode pedir uma coisa dessas?”, perguntou-lhe indignado. “Omar, precisas de saber isto. Não ocupas mais lugar no meu coração do que qualquer outro homem ou rapaz deste país. Isso é igual para todos os meus filhos”, respondeu Osama.

O episódio relatado por Omar passa-se em 2001, meses antes dos atentados que levariam Osama a sair das trevas para se tornar num dos rostos mais conhecidos do mundo. Já era o “inimigo número um” dos Estados Unidos, assim declarado pelo Presidente Bill Clinton depois do primeiro atentado contra o World Trade Center, em 1993. Mas a maioria dos milhões que, um pouco por todo o mundo, passaram a ver nele a “face do mal” (“o diabólico”, como lhe chamou o Presidente George W. Bush) ou a última esperança de líder para a “umma” (a nação muçulmana), capaz de resgatar o esplendor e a importância do islão no mundo, ainda não sabiam sequer que ele existia quando decidiu convidar os filhos a cometer martírio.

Um boi e uma melancia

Os Bin Laden são originários de Hadhramaut, uma região mágica do Iémen, com deserto, oásis, penhascos e construções de alturas e localizações impossíveis. Milagres, acasos e lendas que marcam a saga da família.

Por exemplo: ameaçado de morte por causa de um empréstimo que pediu para comprar um boi e não conseguiu pagar devido à morte precoce do animal, Awahd, o avô de Bin Laden teve de mudar de planalto e recomeçar. Foi na nova casa, em Wadi Doan, que nasceu o pai de Osama, Mohamed. Sobre Wadi Doan há uma lenda que Steve Coll descreve no seu “Os Bin Ladens – Uma família árabe no século americano”: “Uma raça de gigantes destruiu as pedras do abismo até Deus se ter ofendido com a sua arrogância e a ter destruído através de uma tempestade de areia. Isto pode explicar a espantosa arquitectura: amontoados de encontro às paredes de pedra, erguem-se os gigantes arranha-céus das povoações acasteladas”.

Se não fosse o boi talvez a vida dos Bin Laden tivesse seguido outro caminho. E se Awahd não tivesse morrido quando Mohamed tinha apenas onze anos, talvez este não se tivesse decidido a deixar para trás Hadhramaut e os seus penhascos e a tentar a sorte em Jidá. Mohamed e o irmão iam morrendo de fome para lá chegar: perdidos no deserto, depois de uma violenta tempestade, descobriram uma quinta e ali uma melancia que comeram, sentindo-se renascer, conta Coll. Jidá era “um porto varrido pelas doenças, sem uma única rua pavimentada”. Mas para Mohamed, que vira “os orgulhosos arranha-céus” de Wadi Doan, construídos por gente que fizera “fortuna em todo o tipo de locais improváveis”, era “um lugar cheio de oportunidades”.

Quando Osama nasceu, em 1957, já o pai era dono de um vasto império. Uma fortuna que só o nascimento da Arábia Saudita, em 1932, e o seu petróleo tornaram possível. Mas que também nunca teria existido se Mohamed não fosse um hadhrami para quem o impossível não existia.

Chegado já cego a Jidá, depressa passou de assentador de tijolos a capataz e em breve teria o seu próprio negócio. A Casa de Saud tinha um país de desertos e dinheiro sem fim. Mohamed ganhou a confiança da família real por nunca dizer não. “Sim, majestade, pode ser feito”, respondia. E assim construiu estradas, centrais eléctricas, palácios, aeroportos e renovou Meca, Medina e Jerusalém.

O filho da escrava

Morreu aos 60 anos, deixando um dos grandes impérios de construção do mundo e 54 filhos e filhas, que viveram sabendo que dificilmente conseguiram ultrapassar os feitos do pai. Osama também. Décimo sétimo filho, era um entre muitos. Menos do que isso até. Filho de uma síria, sentiu-se sempre um estrangeiro entre os sauditas – os seus outros irmãos tinham mãe saudita. A mãe, Alia, que gostava mais de vestir Chanel do que de cobrir o rosto, nunca se terá integrado bem no clã e Mohamed (que nunca tinha mais de quatro mulheres ao mesmo tempo mas ao todo teve 30) não esteve casada com ela muitos anos. Alguns membros da família garantem que era conhecida como “a escrava” e Osama como “o filho da escrava”.

Muito se especulou sobre se terá sido por causa do parco lugar ocupado pela mãe no clã que Osama começou a sentir-se alienado e revoltado. Certo é que acabou por ser Osama o único dos filhos de Mohamed a distinguir-se de forma a ensombrar tudo o que o pai e os irmãos alcançaram, e para sempre.

Osama nasceu no bairro Malazz de Riad, a capital saudita, a 10 de Março. “Depois Deus foi gracioso o suficiente para que nos mudássemos para a Medina sagrada e pelo resto da minha vida fiquei em Hejaz, movendo-me entre Jidá, Meca e Medina”, descreveu numa entrevista à Al-Jazira, em 1999.

Estudou entre a Arábia Saudita e o país da mãe, a Síria, e foram esses os dois espaços em que se moveu até à juventude, demonstrando pouco interesse pelas férias de diversão e esbanjamento que muitos dos seus irmãos passavam em Beirute ou Estocolmo. “Preferia morrer do que viver num Estado europeu”, disse muitos anos depois numa entrevista ao jornalista Abdel Bari Atwan.

Entrevistado por Peter Bergen (“The Osama bin Laden I Know”), Bryan Fyfield, que foi seu professor de inglês, lembra um rapaz discreto e um aluno que não era particularmente brilhante. Um vizinho de Jidá, Khaled Batarfi, conta que no futebol jogava a avançado por ser “alto e poder usar a cabeça para marcar golos”. Outros que se cruzaram com ele falam de um jovem tímido, bom observador, bom ouvinte, pouco carismático mas seguro de si.

Deserto, montanhas, sujar as mãos

Osama perdeu o pai com a mesma idade com que Mohamed perdera o seu, aos onze anos. Mohamed desapareceu quando um piloto norte-americano falhou a aterragem numa pista aplanada junto a uma das suas obras, no deserto saudita. Era esse o tipo de viagens que deixava Osama satisfeito. Gostava de sujar as mãos, gostava do deserto, de escalar montanhas, de caçar e de andar a cavalo. E gostava especialmente de acompanhar o pai até às obras de renovação de Meca e Medina. Sobre a morte do pai Osama diria muito mais tarde numa entrevista a Hamid Mir: “Foram notícias muito trágicas para mim, mas ouvia-as com muita paciência”.

Paciência e tranquilidade absoluta, perante qualquer situação, são algumas das características mais referidas para o descrever.

Osama casou pela primeira vez aos 18 anos e, segundo familiares do lado materno, casou por amor. A sua primeira mulher, Najwah, de 14 anos, era síria, como a mãe, e era sua sobrinha. Ainda não tinha passado um ano e o casal já tinha um filho, Abdullah.

Apesar de casado, Osama continuava a estudar. Ao contrário dos irmãos, que estudaram em países ocidentais, ele decidiu ficar em Jidá e estudar Administração Pública na Universidade Rei Abdul-Aziz. Já então considerado muito devoto pelos que o rodeavam, Osama não parecia interessar-me muito por política. Mas começava, aos poucos, a contactar com as prédicas dos religiosos tradicionalistas, que num mundo com cada vez menos fronteiras, defendiam a necessidade de regressar a uma interpretação estrita do islão para o defender da corrupção e da decadência que viam no Ocidente.

Uma guerra, um mentor

Bin Laden ainda não tinha 23 anos quando a União Soviética invadiu o Afeganistão e partiu pouco depois para ajudar os “mujahedin”, os muçulmanos que vieram de todo o mundo para defender o país muçulmanos atacado pelos “infiéis”.

Passaria os anos seguintes entre Peshawar, onde organizava a recruta e recepção de combatentes, e os campos de batalha afegãos, ao lado do seu primeiro mentor, Abdullah Azzam, o carismático palestiniano que começou por fornecer energia ideológica ao movimento. Foi nestes primeiros anos que ganhou reputação de guerreiro corajoso, ao mesmo tempo que se revelava eficaz angariador de fundos. Para dar resposta às famílias que perguntavam por combatentes mortos ou desaparecidos criou uma base de dados, o primeiro passo para fazer erguer a Al-Qaeda (a base).

Osama guerreiro, garantem muitos “mujahedin” que o conheceram nesses anos, é mais mito do que realidade. Mas no ano em que completou 25 anos, Osama viu a morte de perto: em Nangahar, um míssil soviético caiu sem explodir ao seu lado. Osama contou a Robert Fisk ter sentido "sequina", qualquer coisa como calma religiosa. "Durante a jihad afegã, ele esteve sob intenso bombardeamento mais de 40 vezes. Em pelo menos três destas ocasiões, seguiu-se uma matança horrível, com pedaços de pele e de corpos a voar pelos ares, mas nenhum vestígio de medo foi visível em Bin Laden", escreve Atwan em “The Secret History of Al-Qaeda”.

O filho de Mohamed foi essencialmente um financiador, mas a determinada altura decidiu-se a juntar os árabes num mesmo exército e a travar as suas próprias batalhas. Teve uma vitória, “conquistou” a Kalashnikov que nunca mais deixou de o acompanhar, e chamou jornalistas para dela se gabar. Começava a nascer o mito.

Terminada a “jihad” contra os soviéticos, em 1989, Osama tinha um exército os milhares de muçulmanos recrutados e treinados nos campos afegãos e não tinha guerra. Mas acredita que o ser exército era invencível e já começava a achar que tinha uma missão superior. Que seria, como Maomé, chefe político e militar.

Chefe militar apátrida

De regresso a casa, passou algum tempo em prisão domiciliária porque as suas intenções de abrir uma nova frente de batalha no Sul do Iémen (então comunista) não eram bem-vistas.

Um corte mais profundo aproximava-se: quando Saddam Hussein invadiu o Kuwait e o regime ignorou a sua oferta de colocar os “mujahedin” a defender os locais santos do islão. Em vez disso, os sauditas convidaram os norte-americanos a fazê-lo. Para Osama, tratava-se de um sacrilégio. Convenceu-se de que a presença dos Estados Unidos em solo muçulmano se destinava a manter os ditadores desses países no poder e era isso que impedia o estabelecimento de verdadeiros estados islâmicos.

Cada vez mais pressionado pela família real saudita, deixou o país e instalou-se em 1991 no Sudão, com as quatro mulheres que já desposara (e parte dos onze filhos que teve até 2001), onde havia um novo regime que içara a bandeira do islão. Cartum recebeu também Ayman al-Zahawiri, da Jihad Islâmica egípcia, que nos anos seguintes se tornaria no ideólogo da Al-Qaeda.

Em 1995, pouco depois de os Saud lhe retirarem a nacionalidade, vivia Osama numa quinta no deserto perto de Cartum quando publicou uma das suas primeiras mensagens importantes "A invasão da Arábia". Escrita, como muitas que se seguiriam, em forma de diálogo, dirige-se aos "veneráveis exegetas da Arábia" e ataca a presença de soldados americanos na Península, descrevendo-a como "uma calamidade sem precedentes" na história da comunidade de crentes.

Um santuário no Afeganistão

Depois de escapar a uma tentativa de assassínio, Osama acaba por perceber que também o Sudão deixara de ser abrigo seguro e volta a arrastar a família para um novo país. O destino agora seria o Afeganistão, onde em 1996 um grupo de auto-proclamados “estudantes de teologia”, os taliban, tentava conquistar o país, aproveitando as lutas fratricidas a que os “mujahedin” afegãos que tinham feito e vencido a guerra contra os soviéticos se entregaram nos anos seguintes.

Tora Bora, Jalalabad, Kandahar, foram as novas casas de Osama, da sua família e das centenas de combatentes que sempre o acompanhavam. Por fim, um santuário. Quase um país (a Aliança do Norte, coligação de grupos afegãos que antes tinham combatido entre si e que se uniram de novo contra os taliban, manteve sempre uma parte do território). Osama continuou a viver na simplicidade que sempre impôs às mulheres e aos filhos, rezando, estudando o Corão, comendo pouco, ao mesmo tempo que recrutava cada vez mais combatentes e expandia campos de treino espalhados pelo Afeganistão. O objectivo era unir todos os grupos radicais debaixo da bandeira da Al-Qaeda

É de 1998 a sua “Declaração de Jihad contra os Americanos”, texto em que afirma que matar norte-americanos é “um dever sagrado para os muçulmanos”. Nesse mesmo ano, em Agosto, duas bombas explodem nas embaixadas dos EUA em Nairobi e Dar es-Saalam, matando 224 pessoas. Osama continuava convencido de que era pouco e que o seu objectivo de unir a “umma” só seria alcançado depois de um golpe grandioso contra a América.

Quatro anos e vários ataques mais pequenos depois, cumpria com os atentados que chocaram o mundo e cuja dimensão em termos de perdas de vidas ele próprio confessaria tê-lo surpreendido. O Presidente Bush declarou “guerra ao terrorismo” e afirmou ao mundo que “ou estavam com os EUA ou contra”. Osama proclamou quase o mesmo: “Estes acontecimentos dividiram o mundo em dois campos, o campo dos crentes e o campo dos infiéis. Todos os muçulmanos têm de se erguer e defender a sua religião.”

Um monstro, Che Guevara

Seguiu-se a guerra dos EUA no Afeganistão e a oportunidade perdida de apanhar Osama, que regressou às caves de Tora Bora antes de desaparecer algures entre a fronteira que divide o Afeganistão do Paquistão. Tornou-se o “homem mais procurado do mundo” e o mais difícil de encontrar. Quando fez 50 anos, em 2007, Robert Fisk escreveu no “Independent”: “Bin Laden criou a Al-Qaeda. O monstro nasceu. Qual é o sentido de continuar à procura de um Bin Laden de 50 anos?” Peter Bergen escrevera pouco antes que o monstro são “os mil Bin Laden” que conseguiu criar em vida. Marck Hecker, analista do Instituto Francês de Relações Internacionais, dizia pela mesma altura em entrevista ao PÚBLICO que morto ou vivo, Osama “é incontestavelmente um ícone do terrorismo contemporâneo com um papel muito mais importante em termos de propaganda do que em termos operacionais”.

“Hoje, ele é no jihadismo internacional o que Che Guevara era nos anos 1960 para a guerra revolucionária.”

Numa entrevista ao jornalista paquistanês Hamir Mir, a 7 de Novembro de 2001, num esconderijo em Cabul, antes da queda da cidade, disse adorar a morte. À conversa durante um pequeno-almoço de azeitonas, manteiga, compota, pão e chá verde, Mir perguntou-lhe se se renderia caso fosse encurralado? “Sou uma pessoa que adora a morte. Os americanos adoram a vida. Vou confrontá-los e lutar. Não me renderei. Se chegar a altura, quero ser morto por uma bala”, respondeu, depois de uma gargalhada.

A sua maior esperança, dizia aos colaboradores próximos era, se fosse morto às mãos dos norte-americanos, que o mundo muçulmano se erguesse em uníssono para vingar a sua morte e derrotar a nação responsável. Dez anos depois do 11 de Setembro e quatro meses depois do inicio das revoltas árabes que derrotaram já dois ditadores e mataram a narrativa da Al-Qaeda, segundo a qual a violência era o único caminho para atingir qualquer mudança nos países dirigidos por ditadores apoiados pelos EUA, é pouco provável que isso aconteça.

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