“Qualquer pessoa que pareça árabe ou muçulmana vai ser olhada como se fosse da família destes assassinos”
Os muçulmanos já se sentiam discriminados em França e a suspeição entre as comunidades vai aumentar. O radicalismo também está a crescer, diz o investigador Jean-Yves Camus, lembrando a pequena vila do Sul do país onde seis jovens partiram para combater na Síria.
Colaborador ocasional do Charlie Hebdo, perdeu vários amigos no ataque de quarta-feira contra a redacção do jornal satírico. Falou ao PÚBLICO horas antes das duas operações policiais que terminaram com a morte de três suspeitos que as autoridades acreditam ter estado envolvidos no atentado.
Conhecia algumas das vítimas do ataque de quarta-feira. O jornal e alguns jornalistas tinham sofrido ameaças, a redacção já tinha sido atacada em 2011, mas havia a mínima consciência de que algo assim pudesse acontecer?
O risco de um ataque de algum tipo existia, evidentemente, eles sabiam disso. Havia caricaturistas que mantinham protecção policial, mas nos últimos tempos a protecção tinha relaxado um pouco, precisamente porque havia muito menos ameaças. Não era como se o Charlie Hebdo publicasse todas as semanas páginas que pudessem ser consideradas ofensivas ou temas que para algumas pessoas mais radicais pudessem servir de justificação para um atentado. O islão não era o tema principal do jornal nem o jornal era islamófobo, nunca foi esse o espírito. Sempre foi um jornal satírico sem limites nos temas a que se dedicava. A capa desta semana foi dedicada a Michel Houllebecq [a propósito do lançamento do livro Soumission, onde o polémico romancista imaginava a França governada por um Presidente muçulmano], escritor com posições de intolerância em relação aos muçulmanos, mas o Charlie Hebdo nunca foi nem quis ser o Michel Houllebecq, nunca partilhou as suas opiniões e os seus receios face ao islão e às consequências da existência de milhões de muçulmanos em França.
Os jornalistas sabem que correm este tipo de riscos quando vão para um cenário de guerra, mas um ataque assim, em Paris, era difícil de imaginar.
Absolutamente. Não há uma guerra em Paris, a França não vive num estado de guerra. Quem vai para zonas de combate prepara-se, sabe que tipo de enquadramento vai encontrar. Com os ataques cometidos e evitados ao longo dos últimos anos aprendemos que podemos esperar dois tipos de acções terroristas, aquelas que são cometidas por jihadistas que regressam da Síria e do Iraque, como acontecia antes no conflito do Afeganistão, onde tiveram treino de guerra e participaram activamente em combates, e outras por jihadistas improvisados, que nunca saíram dos países europeus onde nasceram e que se radicalizaram sem terem pertencido a nenhum grupo armado.
Aqui parece haver uma mistura.
Quero ser prudente e esperar pelo fim do inquérito. Mas sim, os dois suspeitos têm obviamente um perfil de jihadista e um deles terá mesmo viajado até ao Iémen, onde poderá ter recebido treino militar [Saïd Kouachi, morto entretanto pela polícia francesa com o seu irmão, Chérif, no fim de um longo cerco a uma gráfica na localidade de Dammartin-en-Goêle, no Nordeste da região de Paris,]. Quanto ao que se julga ser o seu cúmplice, o terceiro elemento [Amedy Coulibaly], segundo o que sabemos nunca saiu de França, nunca aprendeu a usar uma arma. Mesmo em relação ao autor dos ataques de Toulouse [Mohamed Merah, morto pela polícia depois de ter cometidos vários ataques na região, contra militares e uma escola judaica onde matou três crianças e um professor], sabe-se que esteve no Afeganistão, mas há dúvidas sobre se recebeu efectivamente algum tipo de treino militar e se esteve em combate.
A França, e os países europeus, estão preparados para reagir a estas diferentes ameaças?
Procuram adaptar-se. O ano passado, o Governo francês introduziu novas medidas, mas falta ainda mais colaboração entre as autoridades dos diferentes países diferentes, tem melhorado, mas a troca de informações pode ser mais eficiente. Sabemos que os franceses que partiram para a Síria e para o Iraque recebem de imediato treino, é um processo muito rápido. São mantidos afastados da linha da frente num primeiro momento e logo treinados. É preciso vigiar cada um deles após o regresso, é necessário que sejam detidos de imediato. O mais provável é que vários voltem decididos a cometer ataques aqui.
Tal como aconteceu em Toulouse, temos aqui homens que atacam com armas de fogo em vez de porem bombas ou de cometerem atentados suicidas, como nos ataques dos anos a seguir ao 11 de Setembro.
Sim, o que é interessante constatar é que este ataque foi realizado com uma violência selvagem que junta características dos ataques com motivações fundamentalistas a elementos que estamos habituados a encontrar em crimes de direito comum. Os dois homens que atacaram o Charlie Hebdo chegaram armados e de carro, como fazem os atacantes de bancos, por exemplo, com um plano de fuga que puseram em marcha. Mas os criminosos que costumam agir assim fazem reféns apenas para cumprir um objectivo muito específico, realizar um assalto, não vão decididos a matar pessoas, só o fazem se isso for necessário. Agora, parece que há uma mistura, um novo tipo de terroristas, uma juventude radicalizada, decidida a matar, como fazem os fundamentalistas na Síria e no Iraque, e fascinada com esta violência quase de guerrilha urbana.
A França já vivia um momento de relações difíceis entre comunidades e religiões, com os muçulmanos a sentirem-se cada vez mais estigmatizados. O que é que pode acontecer depois destes dias?
É cedo para dizer, mas tenho medo que assistamos a um aumento grande de uma suspeita generalizada entre as diferentes comunidades. Nalgumas cidades e zonas, já se sentia isso. Agora, qualquer pessoa com um nome árabe, com um aspecto árabe ou muçulmano irá ser muito provavelmente olhada de lado no seu quotidiano, como se fosse da mesma família, do mesmo grupo destes assassinos. As primeiras vítimas dos radicais são os muçulmanos.
É justo que todos exijam aos muçulmanos que condenem estes ataques?
Não, não é. Mas a verdade é que o islão tem uma imagem negativa em França neste momento. Já tinha, em grande parte sem motivo, em parte por via da escalada de leis para reforçar a laicidade dos últimos anos [proibição de uso de véu islâmico nas escolas, proibição de burqa e niqaq – véu que deixa apenas os olhos à vista – no espaço público], que levou centenas de pessoas a serem despedidas por escolherem usar elementos identificativos da sua religião fora de casa. Agora, isso só vai crescer, por mais apelos à unidade que se façam. É preciso que os sociólogos e os economistas procurem as razões das desigualdades em que muitos destes jovens das periferias nascem e crescem, que levam muitos deles à criminalidade e, nalguns casos, acabam por provocar um sentimento de descriminação e de falta de integração que os leva à procura de um sentido numa determinada interpretação de uma religião. Mas não podemos deixar de constatar que há um aumento do islamismo radical no país, temos de assumir essa realidade e aprender a lidar com ela. De Lunel [no Sul da França], uma vila que nem chega a ter 30 mil habitantes, houve seis jovens muçulmanos que partiram para combater ao lado de radicais na Síria. Seis, é um número considerável, impressionante, para uma comunidade desta dimensão.
As novas medidas antiterroristas aprovadas o ano passado são suficientes para fazer face a esta situação?
São medidas importantes, que procuram monitorizar os potenciais combatentes, impedir que partam, procurar identificar todos os que eventualmente possam regressar. Ainda há muito a fazer mas risco zero é algo que não existe e que nunca vai existir. Nunca vai ser possível saber onde está toda a gente, antecipar cada radicalização. Mesmo neste caso não foi possível e, aparentemente, estas pessoas já tinham sido sinalizadas.
A grande manifestação de unidade marcada para domingo em Paris já está envolta em polémica por causa do eventual convite à Frente Nacional e da possível presença da líder do partido, Marine Le Pen. Era inevitável que rebentasse esta controvérsia?
A questão é saber se a Frente Nacional se pode manifestar e a marcha continuar a ser sobre a unidade e a tolerância. Penso que recusar a participação dos eleitores da Frente Nacional também dá um sinal negativo, é como se estivéssemos a dizer-lhes que eles não fazem parte do mesmo país – e estamos a falar de muita gente. Ao mesmo tempo, sabemos que pode haver distúrbios se tivermos os membros do partido ao lado de militantes de partidos de extrema-esquerda ou de grupos anti-fascistas. Se Marine Le Pen quiser estar presente imagino que estará, mas aí essa participação vai acabar por se tornar num dos focos da manifestação, o que de certa forma acabará por desvirtuar o protesto.
Como é que avalia o comportamento da líder da extrema-direita até ao momento em reacção aos ataques?
Julgo que tem sido cuidadosa o suficiente para não ultrapassar demasiado certos limites. É uma política, faz política, como todos aqui.
Mas ao fazê-lo não está a utilizar os ataques para seu proveito? A aproveitar-se do medo que as pessoas sentem por estes dias?
Sim, mas a política é assim, os políticos aproveitam tudo para mobilizar o seu eleitorado. Os próprios partidos de esquerda, que apelaram à manifestação de domingo… De certa forma também podemos falar de uma instrumentalização deste crime terrível. Até agora, Marine Le Pen tem falado contra os islamistas radicais, contra o fundamentalismo, não contra os muçulmanos, independentemente das posições que o seu partido tem tido sobre o islão e que ela própria exprimiu no passado. Na minha opinião, cometeu um erro grave, [na quinta-feira] quando afirmou que se for eleita Presidente vai referendar a reintrodução da pena de morte. Isso sim, é jogar com o medo das pessoas numa altura em que as pessoas já estão suficientemente assustadas. É um disparate, julgo que foi um erro de avaliação. Não faz sentido nenhum falar em pena de morte em França.