Se morrer de cancro a culpa é sua, diz o guru Chopra
Há coisas inacreditáveis que são mesmo verdade e outras que parecem certas mas que não resistem a uma análise crítica. Deepak Chopra vende milhões de livros e diz que uniu a sabedoria hindu com física quântica, a genética e as neurociências, para curar doenças e ajudar-nos a viver melhor. A Sério?
Sigo no Twitter uma conta chamada Sabedoria de Chopra (@WisdomOfChopra), que todos os dias publica frases enigmáticas, entre aspas, à laia de citações, como:
- Tudo é possível apenas na abundância de eventos espaço-tempo;
- A quietude eterna depende de observações mortais;
- Cada um de nós é o útero de sensações exponenciais;
- O mundo é a sabedoria da realidade essencial.
Esta conta é um gerador de falsas citações do médico e guru Deepak Chopra, criadas a partir de palavras encontradas no Twitter oficial de Deepak Chopra (@DeepakChopra), que são depois combinadas aleatoriamente. Chopra publica na sua conta citações que são mesmo suas:
- Consciência espiritual é leveza do ser;
- O Universo é experiente em consciência;
- A consciência é o primitivo ontológico;
- O cérebro é uma experiência perceptiva na consciência.
A premissa da conta Sabedoria de Chopra é a de que as citações inventadas são indistinguíveis das verdadeiras e que em ambos os casos não passam de amálgamas de palavras sem sentido. Chopra soa profundo e sofisticado, com um travo esotérico apenas acessível aos iniciados, como agrada a quem procura entender os grandes mistérios da vida e do Universo.
New age
Deepak Chopra escreveu mais de 70 livros, traduzidos em 35 línguas, que venderam mais de 20 milhões de exemplares. Tem uma colecção impressionante de prémios e dá aulas em várias universidades. É talvez o mais proeminente representante do movimento new age, uma forma de esoterismo ocidental que surgiu nos anos 70. O new age é uma referência à era de Aquário que, de acordo com a astrologia, irá suceder à de Peixes, um destes dias.
O movimento new age procura aliar a espiritualidade oriental ao que os seus adeptos chamam “ciência ocidental”. Chopra escreve no livro Cura Quântica: “Surpreendentemente, o ponto de vista científico do Ocidente confirma a visão dos antigos sábios da Índia.” Deepak Chopra personifica esta ideia na perfeição. Médico endocrinologista de origem indiana radicado nos Estados Unidos, estudou e praticou a medicina “ocidental", mas regressou à Índia para aprender os princípios da medicina ayurveda, que faz parte da tradição hindu. Reclama ter combinado as duas e criado a medicina mente-corpo, de acordo com a qual, além do corpo material, o ser humano tem uma existência intangível.
A ideia de uma dimensão imaterial do ser humano com a qual se pode interagir para curar doenças não é nova. Chama-se vitalismo e ao longo do tempo tem assumido várias formas. Mas Chopra embrulha o vitalismo pré-científico com palavras da ciência actual. Partindo de conceitos da física quântica chega à ideia de que “a consciência cria a realidade”. A ideia que o observador cria a realidade tem uma vaga inspiração na interpretação de Copenhaga da teoria quântica, que se aplica ao comportamento das partículas mais pequenas do que o átomo (e não à escala dos doentes em camas de hospitais). Mas Chopra, através de analogias, metáforas e prosa poética procura demonstrar que a capacidade de criar realidade com a nossa consciência permite curar doenças. Apesar da aparente sofisticação conceptual desta ideia, “a cura quântica rejeita os métodos externos, de alta tecnologia, e actua no núcleo mais profundo do sistema mente-corpo”, explica o próprio.
No caso da alegada cura milagrosa do cancro da mama de uma paciente sua, conta em Cura Quântica que os tratamentos consistiram em “mudanças na alimentação, algumas ervas aiurvédicas, (…) exercícios de ioga e instruções sobre meditação”. Ah, e é verdade: também quimioterapia, que a doente nunca deixou de fazer. A esse propósito Chopra escreve que “as pessoas preferem correr os riscos da cura, em vez dos da doença”. Reconhece no entanto que “ainda não existe nenhuma explicação científica para o facto de tudo isto resultar, mas resulta”. Mesmo assim, ao longo de Cura Quântica faz abundantes referências a “vários estudos”, sem especificar quais. O leitor tem que acreditar que eles existem, mas não pode consultá-los. Chopra não apresenta provas, conta histórias com que espera convencer o leitor, os pacientes e os seguidores. E convence.
A culpa é do doente
Claro que para criar a realidade com a consciência dá jeito ter um Super Cérebro (outro livro, em co-autoria com o prestigiado neurobiólogo Rudolph Tanzi) e controlar conscientemente os próprios genes, que passam a ser Super Genes (mais um título dos mesmos autores). Um corolário curioso de todo este controlo é o de que a culpa de estar doente é do doente. Chopra di-lo com todas as letras “os pacientes bem-sucedidos aprenderam a motivar a sua própria cura” ou “a razão pela qual nem todos conseguimos levar o processo de cura até ao seu limite tem a ver com o facto de nos mobilizarmos de formas drasticamente diferentes”. Nenhuma destas afirmações é verificável empiricamente, através de experiências ou observações, por isso são afirmações não científicas. Mas já sabe: se morrer de cancro, para Chopra a culpa é sua porque não se mobiliza.
Bioquímico