Um ex-juiz australiano quer trocar de vida com um refugiado

Jim Macken enviou uma carta ao ministro da Imigração australiano, Peter Dutton. O que propõe ao Governo é viver num dos centros de detenção de refugiados de Nauru ou Manus para que um dos detidos possa viver como cidadão australiano.

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As agressões são constantes aos que vivem no campo de detenção de Manus, na Papua-Nova Guiné AAP/Eoin Blackwell/via REUTERS

Trocar de lugar com um refugiado. É esta a proposta do australiano Jim Macken, juiz reformado de 88 anos. Macken não se importa de viver o resto da sua vida num campo de refugiados australiano — em Manus ou Nauru — se isso significar que um refugiado pode sair e viver na Austrália como qualquer outro cidadão do país. Está tudo explicado numa carta de protesto enviada a Peter Dutton, ministro da Imigração e Protecção de Fronteiras australiano.

"A razão de eu fazer esta proposta é simples. Não consigo continuar em silêncio enquanto homens, mulheres e crianças inocentes estão a ser mantidas em condições aterradoras na ilha de Manus e em Nauru", escreveu Macken, na carta à qual os meios de comunicação australianos tiveram acesso. "Só tenho mais uns anos de vida, mas um refugiado que venha para cá pode ter 50 anos de vida, por isso não é um grande feito no meu ponto de vista", declarou Macken à SBS News.

Este antigo juiz do tribunal da comissão industrial do estado australiano de Nova Gales do Sul (nomeado pelo sindicato) foi premiado com o estatuto de membro da Ordem dos Advogados da Austrália em 2003. Pretende agora dar a uma pessoa a possibilidade de continuar a sua vida como cidadão australiano, nem que para isso lhe seja retirada a sua cidadania. "[Os que estão detidos nos campos] sabem que é preferível imolarem-se do que viverem em condições de detenção australiana", expôs Macken num artigo publicado em Maio no site australiano de notícias independente New Matilda.

Para ele, as pessoas que se encontram nestes centros de detenção para imigrantes — que são geridos por empresas privadas — estão a ser usadas como exemplos disuasores para quem pensa em pedir asilo na Austrália. "O Governo australiano está essencialmente a tratar os refugiados nestes campos como escudos humanos e isto é completamente imoral. Como isto está a ser feito em meu nome, não posso continuar em silêncio", afirmou Macken. "Consideraria um privilégio viver os meus últimos anos em Nauru ou na ilha de Manus", disse, numa afirmação que garante ser sincera e feita sem estar à espera de qualquer publicidade.

É uma ideia de quem não tem mais nada a perder. No entanto, Manus e Nauru não parecem os sítios em que alguém queira passar o resto da sua reforma. No dia 10 de Agosto, o Guardian divulgou relatórios sobre incidentes ocorridos dentro do campo de refugiados em Nauru, que ocorreram entre 2013 e 2015. A leitura dos documentos concede acesso a alguns detalhes da vida das pessoas que lá vivem, o dia-a-dia de abusos de quem vive em tendas, sem condições e constantemente sob os olhares de guardas. São mais de dois mil incidentes reportados durante três anos.

Uma empresa de segurança que opera nestes campos anunciou a 1 de Setembro que ia abandonar os centros assim que o seu contrato expirar. O Governo australiano fica assim sem uma entidade que regule os campos. Esta decisão vem no seguimento de outra empresa ter dito que ia retirar-se assim que o vínculo terminar em Outubro de 2017.

Oposição pede investigação

Ainda em Agosto, já depois dos relatórios terem sido publicados, o Governo australiano assegurou que ia encerrar o campo de Manus, localizado na Papuásia-Nova Guiné — cujo Supremo Tribunal considerou, em Abril, que a detenção dos refugiados era inconstitucional. Peter Dutton, ministro da Imigração australiano, avançou que iria propor mudanças na lei da imigração para impedir que os refugiados que saíssem das instalações de Manus entrassem na Austrália. O ministro, membro do Partido Liberal da Austrália, disse que contava com o apoio do Partido Trabalhista Australiano (oposição)para a aprovação dessas alterações, noticiou a ABC Australia.

No entanto, o partido da oposição quer que seja feita uma investigação sobre a forma como o Governo lidou com estas pessoas. "Queremos que esta investigação seja séria", disse Shayne Neumann, porta-voz dos trabalhistas em questões de imigração. "A Austrália tem uma obrigação de tratar estas pessoas com decência e humanidade. A resposta do Governo aos relatórios tem sido até agora exagerada e fabricada", apontou Neumann, citado pelo Guardian Australia.

O destino de cerca de 850 pessoas está neste momento por definir, a data de encerramento também. As opções de realojamento são limitadas: permanecer na Papuásia-Nova Guiné ou voltar ao país de origem. Peter O’Neill, primeiro-ministro da Papuásia-Nova Guiné, garantiu que tanto o seu país como a Austrália estavam de acordo com o encerramento do centro em Manus. Não foram apontados mais pormenores sobre o que se segue. Quanto a Nauru, o centro continuará aberto para, segundo Dutton, impedir que barcos que transportem imigrantes cheguem ao seu país.

Os problemas mais comuns apontados por parte dos detidos e reunidas nos documentos que foram agora apelidados de Nauru Files são a automutilação. As tentativas de suicídio também são comuns dentro do campo. Há quem use objectos afiados para se cortar, há quem ingira produtos químicos como repelentes para insectos.

Mais de metade dos 2116 casos envolve crianças — são 1086 —, apesar de serem apenas 18% do total de detidos em Nauru na altura em que os relatórios foram preenchidos. Há sete relatórios de abuso sexual a crianças, 59 de agressão, 30 crianças que se automutilaram e 159 relatos de quem ameaçou fazê-lo. As identidades das vítimas foram protegidas, os nomes e as idades estão ocultados na base de dados dos Nauru Files.

Seguiram-se protestos pacíficos organizados em várias cidades australianas a favor da entrada de refugiados no país e a exigir o encerramento destes centros. Reuniram-se centenas de pessoas em Sydney, Melbourne, Perth, Brisbane, Adelaide, e até nas embaixadas australianas em Londres e em Tóquio. Organizaram-se vigílias.

Manifestação em Londres

Em Londres, os manifestantes encenaram uma leitura dos documentos em frente à Casa da Austrália (que faz o serviço consular). A narração das histórias de abuso e tortura que se viveram em Nauru foi conduzida pela International Alliance Against Mandatory Detention. "A duração, monotonia e repetição usada na leitura de cada ficheiro ecoa na normalização da violência tolerada por refugiados em detenção indefinida", explicou Sarah Keenan, uma das responsáveis pela iniciativa na capital inglesa.

Em Melbourne, Jane Willey, antiga professora em Nauru, deu o seu testemunho perante uma multidão que a ouvia. Contou a sua experiência e denunciou alguns dos incidentes que presenciou. Um jornalista curdo-iraniano, Behrouz Bouchani, contou ao Guardian que o cenário de abuso em Manus é semelhante. "Vi ataques físicos, morte, abusos sexuais e tortura. Vi recusa deliberada de cuidados médicos, até para condições sérias com possível risco de morte. Se vissem o que está a acontecer aqui, não teriam dúvidas de que é um sistema de castigo deliberadamente cruel", descreveu Bouchani.

"O objectivo é manter a pressão ao Governo de [Malcolm] Turnbull [primeiro-ministro australiano]. Pensamos que as políticas sobre os refugiados estão a desmoronar", comentou Chris Breen, porta-voz do Refugee Action Collective, um dos organizadores deste protesto.

Já Jim Macken continua sem resposta à sua carta desde dia 21 de Agosto.

O ministro Dutton não se pronunciou. Quando o antigo juiz escreveu ao primeiro-ministro australiano, e ao líder do partido trabalhista, Bill Shorten, também não houve qualquer comentário. Apesar de Macken ser membro vitalício do Partido Trabalhista Australiano — tem condenado o apoio do seu partido a esta forma de processamento dos pedidos de asilo. "Acredito que tem um poder considerável que poderia ser usado para acabar com esta situação vergonhosa de uma vez por todas", acusou na sua carta dirigida a Shorten.

Para Jim Macken este é um assunto de carácter humanitário — um carácter que a Austrália perdeu, disse. "Não sei porque razão o fizemos, mas fizemos".

Texto editado por Ana Gomes Ferreira

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