Belmondo, o Leão

Leão de Ouro, em Veneza, para a carreira de uma das figuras mais singulares e populares da nossa cinefilia: um clown, boxeur e dançarino, um actor.

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Jean-Paul Belmondo esta quinta-feira em Veneza AFP PHOTO / TIZIANA FABI
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Jean-Paul Belmondo já sobrevoou Veneza pendurado num helicóptero, em O Irresistível Aventureiro (Georges Lautner, 1980), com aquele apetite que a sua carreira mostra de regresso à infância, quando queria ser clown e boxeur – e quando descobriu que podia ser tudo isso, e ainda um pedaço de bailarino, sendo actor.

Uma parte importante do seu generoso contributo para a arte de representar (e alguns diziam que era pura fanfarronice) é uma lista de ferimentos: entorse do tornozelo em O Homem do Rio (Philippe de Broca, 1964), perna ferida e dedos esfolados em As Atribulações de um Chinês na China (Philippe de Broca, 1965), coxa rasgada, depois de ter atravessado uma janela envidraçada, em O Magnífico (Philippe de Broca, 1973) – como se vê, não é menos importante o encontro com De Broca do que o convite de um homem de olhar triste, Jean-Luc Godard, para O Acossado (1960) , mão direita fracturada durante a memorável sequência nos telhados das Galerias Lafayette de Paris em Peur sur la Ville (Henri Verneuil, 1974), e mais… 

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O Acossado dr

O homem que chegou esta quinta-feira a Veneza de avião tem 83 anos, sinais no corpo, e na fala, de um acidente cardiovascular em 2001, mas a atracção para ver nele um ferido deve ser reprimida. Até porque Belmondo parece continuar a divertir-se com as estratégias das novas acrobacias para estas suas dificuldades: a bengala, içar o corpo, “voilà!”.

Belmondo é um Leão de Ouro à carreira desta edição do festival: mais de 100 filmes e peças de teatro (e ainda as acrobacias); um corpo adequado aos apetites da modernidade quando levou o polegar da mão direira ao lábio inferior em O Acossado; um corpo cinematográfico onde figuram Jean-Pierre Melville, Duras, Resnais, Chabrol, Claude Sautet ou Louis Malle (O Ladrão de Paris foi o filme exibido na cerimónia de entrega do prémio); ainda, um salteador da arca perdida da aventura avant la lettre (Spielberg assumiu a dívida de Os Salteadores da Arca Perdida para com Belmondo vestido de branco e pendurado em Brasília em O Homem do Rio). 

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O Homem do Rio dr

Em suma, todo um saudável je m’en foutisme que o elevou à maior e mais familiar estrela do cinema francês nos anos 1970, em concorrência explícita mas em tensão surda com Alain Delon  durante dez anos, com início a meio dessa década, cada filme de Belmondo valia 3,5 milhões de espectadores franceses.

A quem tiver dificuldades em conciliar o Belmondo “moderno” de O Acossado – comparações com Bogart e Brando na altura, mas Belmondo achou demasiado “intelectual”, não suficientemente “popular”, o que nos diz algo sobre o que seria a sua carreira – com o Belmondo com ares de Stallone e de Clint Eastwood nos 70s e 80s, ele poderá responder, como respondeu na conferência de imprensa em que foi apresentado o prémio: “Um dia choramos, no outro dia rimos.” As suas dificuldades na fala permitem eloquentes sínteses.

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Jean-Paul Belmondo, em Le Guignolo (Georges Lautner, 1980) dr

Continua a pensar aquilo que há anos disse numa entrevista, que quando um homem envelhece se torna mais belo e melhor actor? “Sim”. Pensa muito no seu passado? “Não penso muito no meu passado. À frente, à frente, à frente...” Um movimento en arrière, então, até porque a modernidade de Belmondo também nasceu da sua capacidade de estabelecer laços com as figuras (cineastas, actores) do passado, como um reconhecimento.

No primeiro dia em que se encontrou com Jean Gabin, na rodagem de Un Singe en Hiver (1962), de Henri Verneuil, o “chefe” disse-lhe: “Miúdo, tu és os meus 20 anos." A carreira de Belmondo mostra que se foi a Nouvelle Vague que o fez nascer, o seu coração também estava com o cinema que a Nouvelle Vague menosprezava. Para trás, então...

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Jean-Paul Belmondo, em Le Guignolo (Georges Lautner, 1980) dr

Filho do escultor Paul Belmondo, nascido num mundo burguês e culto (dir-se-ia que Jean-Paul e Alain Delon “enganam” sobre as suas origens, foi Alain que veio “de sítio nenhum”, como o próprio disse), quis ser boxeur. Inscreveu-se em ginásios, pensou seguir a profissão – foi o primeiro contacto nessa infância com o film noir, com os predilectos Garfield e Bogart – mas constatou que lhe faltava a raiva proletária de sobrevivência, não a tinha, e continuou a subir ao ringe como amador.

Uma ameaça de tuberculose obrigou-o a parar, e nesse tempo de paragem uma inflexão, ou se calhar a continuação de uma linha a direito: de palhaço e boxeur a actor. Quando passou por escolas de teatro, pelo Conservatório, ainda não tinha chegado o momento de genialidade que é o acordo perfeito de um corpo com o seu tempo (chegaria com O Acossado), e Belmondo fartou-se de ouvir negas: que com uma cara daquelas não podia fazer teatro, porque quem se chegasse à sua beira sentia que ia receber uma directa da mão esquerda; que com aquele físico nunca poderia ter uma mulher nos braços sem que a audiência desatasse a rir...

Não correspondia ao cânone, queriam fazer dele um trágico e ele, insolente, parecia estar sempre a causar riso. Mas havia, nos colegas desses tempos, quem visse ali um “petit animal qui jouait sans jouer”, que nunca dizia o texto da mesma maneira, com o mesmo tom, que inventava, que se reinventava. Os colegas elevaram-no quando, derrotado uma vez mais num concurso do Conservatório, ele fez um manguito aos jurados.

Uma das suas biografias cita-o dizendo: “Toda a minha vida quis provar que eles estavam errados”. Foram nove anos no teatro, até que o tal homem de óculos e de olhar triste, depois de ter visto num filme “execrável” de Marc Allégret, Un Drôle de Dimanche, e ter deparado com “o Michel Simon e o Jules Berry de amanhã”, lhe perguntou "Quer fazer cinema?”.

Segundo a biografia escrita por Oriane Oringer, a resposta inicial foi categórica, “Não”, o homem não lhe inspirava confiança. O homem insistiu, pagava-lhe cinco mil francos por dia. Primeiro aconteceu uma curta, Charlotte et son Jules, a fazer espera para uma longa que começava em Marselha, em que havia um tipo que roubava um carro, que matava um polícia e... depois logo se via. Belmondo contou um dia que filmou O Acossado como se estivesse em férias, não achava que Godard fosse um imbecil, mas nunca acreditou que o filme chegaria a estrear. E foi o que se viu.

Agora, diz Jean-Paul Belmondo, é tempo para mar e sol.

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