Cem estudantes a discutir o futuro da Manutenção Militar
A antiga fábrica do Exército na Rua do Grilo, em Lisboa, foi escolhida como caso de estudo para o workshop do Docomomo.
Na quinta-feira, muitas dezenas de estudantes de arquitectura, vindos das mais variadas partes do mundo, entraram pelos enormes espaços vazios do edifício da Manutenção Militar (MM), em Lisboa, de blocos de notas nas mãos e máquinas fotográficas em punho.
A visita marcou o início do workshop que antecede a 14.ª conferência internacional do Docomomo (Documentação e Conservação Movimento Moderno) e que oferece a oportunidade de estudar um caso real de um edifício moderno à espera de vir a ser reinventado para um uso diferente daquele para o qual nasceu — foi, no século XX, uma instalação industrial que produzia comida, uniformes e outros bens para o Exército português.
Actualmente, na sequência de um protocolo assinado com o Exército, a Câmara Municipal de Lisboa é, durante 50 anos, a entidade gestora da área sul da MM e foi ela quem o sugeriu como caso de estudo. Um dia depois da visita, no Instituto Superior Técnico, onde está sediado o Docomomo, os estudantes debruçavam-se sobre os computadores e analisavam as fotografias coladas nas paredes, discutindo animadamente os possíveis usos a dar àquele espaço, com a ajuda de 30 arquitectos e professores, portugueses e estrangeiros.
Daniela Arnaut, da coordenação do workshop, lamenta que não participem mais portugueses — serão menos de dez entre os mais de cem estudantes inscritos, vindos de “países e culturas completamente díspares”. Essa diversidade é, aliás, uma das grandes riquezas deste tipo de encontro. Zara Ferreira, secretária-geral do Docomomo Internacional, foi tutora no anterior, há dois anos em Seul, e recorda as dificuldades que os alunos tiveram em entender-se em inglês. “O que conseguiram encontrar para comunicar sem palavras foram as sensações que o conjunto urbano que estávamos a tratar lhes transmitia.” Tratava-se de um edifício — o longuíssimo Sewoon Arcade — que o Governo coreano planeava demolir por considerar obsoleto. No final do workshop, as autoridades tinham mudado de opinião e decidiram preservá-lo.
No caso da Manutenção Militar, o importante, diz Daniela Arnaut, é “pensar o que é que esta estrutura, que hoje está fechada sobre si própria, pode vir a ser, que significado pode ter para Lisboa e que oportunidades podem advir deste espaço”. Para ajudar a reflexão, explica a coordenadora, são mostrados filmes sobre casos semelhantes. “Ontem vimos um filme sobre o projecto SESC Pompéia, de Lina Bo Bardi, e acabámos a discutir como se pode envolver as comunidades.”
Esse é um ponto fundamental, adianta o arquitecto João Pedro Falcão de Campos, outro dos coordenadores. “Uma das nossas preocupações é que aquele espaço não seja encarado como uma ilha. A relação com a envolvente e a comunidade é muito importante. Queremos perceber como podemos abri-lo à cidade e às pessoas que ali vivem.” É uma reflexão, diz, que aponta no sentido contrário de, por exemplo, a LX Factory, em Lisboa, que continua a ser um espaço fechado, com uma portaria à entrada.
Para pensar os usos deve-se começar por olhar — não apenas para o edifício mas para a vida à sua volta. Falcão de Campos descreve os vários tempos históricos ainda visíveis na zona, as quintas, as vilas operárias, os conventos, os palácios, as fábricas, e enumera as lojas, os negócios que ali existem, as dificuldades que observou nas tentativas de as pessoas se deslocarem de um lado para o outro, a idade média dos residentes. Tudo isto são factores a ter em conta quando se pensa no que fazer com o edifício.
E isso não alarga a função dos arquitectos, transformando-os também de alguma maneira em sociólogos? Ricardo Bak Gordon, um dos tutores do workshop, intervém: “Os arquitectos sempre tiveram um trabalho de equipa e não apenas com engenheiros de estruturas. Estas questões passam por juntar saberes e tentar encontrar uma solução que muitas vezes não é exclusivamente arquitectónica. Os arquitectos amparam as comunidades. Antigamente estavam presentes no planeamento. Foram deixando de estar quando o mundo começou a tender para um liberalismo em que o que conta é a exploração do terreno. Os arquitectos foram sendo cada vez mais excluídos dos processos de decisão e chamados só para fazer o bonito. Mas já fizemos todos os bonitos possíveis e agora a cidade pede mais.”
Uma das coisas que a cidade pede é precisamente que se defina o que fazer com edifícios vazios, grandes espaços industriais, onde ainda resistem gigantescas peças de maquinaria, como acontece na Manutenção Militar. “A questão das máquinas tem de ser avaliada caso a caso, com os arqueólogos industriais”, afirma Falcão de Campos. “Se fizer sentido mantê-las, podem perfeitamente ser compatíveis com outras funções.”
E que funções? Pensa-se geralmente em equipamentos culturais ou hotéis. “Porque é que tudo tem de ser lúdico?”, interroga-se Bak Gordon. “Também é preciso trabalhar. Se tirarem as indústrias da cidade, e os hospitais e os liceus, o que é que fica? É preciso pensar nisso. Tira-se o trabalho, tira-se o saber e fica o tuk-tuk?”
Os resultados do workshop (que terminou ontem) serão apresentados à câmara e poderão servir de inspiração para futuros projectos — para já, a ideia é criar ali um hub criativo e empresarial. Mas o que todos entendem é que aqui reside uma oportunidade preciosa para reactivar uma zona da cidade — entre o Terreiro do Paço e a Expo — que parece ter ficado esquecida.
E, conclui Bak Gordon, este trabalho é uma forma de se perceber o “que podemos fazer na cidade com um património que já existe, o que é uma visão distinta da que tem dominado nos últimos tempos, que é fazer tábua rasa do que existe e construir mais e de novo”.