O culto do “gosto”

O Facebook controla os nossos comportamentos e emoções, chega às nossas memórias e diz-se genuinamente “preocupado” connosco.

Há tempos, Clara Ferreira Alves referia-se ao “Cult of Likability”, expressão glosada de Easton Ellis, sobre aquilo que começa a ter contornos de patologia. Dizia ela na sua crónica: “Hoje, toda a gente quer dar nas vistas. E toda a gente está disposta a fazer tudo, incluindo vender-se e vender a família, para dar nas vistas. E ter um like. (…) Hoje impera a cultura do like, a likability, como escreveu Bret Easton Ellis. Todos somos obrigados a que gostem de nós”. O autor citado, para se ser mais exacto, tinha este alcance: “And it was this burgeoning of the likability cult and the dreaded notion of “relatability” that ultimately reduced everyone to a kind of neutered clockwork orange, enslaved to the corporate status quo. To be accepted we have to follow an upbeat morality code where everything must be liked and everybody’s voice respected, and any person who has a negative opinion — a dislike — will be shut out of the conversation”. Ou seja, castrados e reduzidos à neutralidade de uma laranja mecânica, única imaginação humana possível, num mundo em que, para se ser aceite, ela permanece enquanto consentimento de um código de irreprimível validação e como criada de servir da única verdade absoluta: a genialidade pessoal. Matéria trágica pela qual o “espelho humano” nos devolve a face que busca o crânio onde repouse e se suporte a angústia do mundo. E, pior, matéria de câmbio, onde a validação do “gosto” obedece ao deve-e-haver, sob pena de ressentimento.

Não é de negar a oportunidade do que aí se diz: o Facebook controla os nossos comportamentos e emoções, chega às nossas memórias (há quem se assuste de tão recônditas) e diz-se genuinamente “preocupado” connosco e com a matéria íntima, é verdade. E sujeita-nos a constrangimentos levados da breca. E ainda há aquela coisa dos “números de Dunbar”, desmistificadores da grande ilusão dos amigalhaços.

Mas seria pobre legitimar a censura àqueles que procuram consolo. Afinal, se Clara Ferreira Alves não contabiliza “likes”, não será certamente indiferente às referências abonatórias (sobretudo estas), em relação aos seus livros – o mais recente Pai Nosso, por exemplo –, ao volume de vendas da sua ficção, às repercussões das suas crónicas ou à espuma retórica em volta das máximas debitadas no “Eixo do Mal”, à plêiade, ao grémio intelectual da cultura e jornalismo, à tribo. Vaidade das vaidades, tudo é vaidade. O jardim cujos caminhos bifurcam entre os aderentes à rede social e os outros reside em estes serem mais sofisticados a camuflar o instinto de exibição, supondo iludir-se em falsas capas négligé e outros artifícios de modéstia. Não acredito numa Clara Ferreira Alves impassível face ao eco das suas palavras. Nem ela mesma acredita – perguntamo-nos apenas qual o seu preço, quanto está disposta a pagar pela sua humana segurança. O sueco Stig Dagerman falara disto tudo nos anos 50 e a editora Fenda presenteou-nos com esse pequeno tesouro, numa lindíssima edição de 1992: A Nossa Necessidade de Consolo é Impossível de Satisfazer. Aqueles que venham apregoar o contrário não passam de vendilhões de um templo que não existe.

Eu gosto de Clara porque, ao mesmo tempo que enverga máscaras sublimes, desmascara-se numa lucidez capaz de nos provocar e de, como Dagerman, nos provar que o talento não passa de uma forma de alguém se consolar da solidão, e que tudo se resume a “um duelo entre falsas e verdadeiras formas de consolo”. Tem o ímpeto da convicção e melhor máscara não há.

Professor

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