A fixação obsessiva de Passos Coelho
O que mais impressiona na teimosia obtusa de PPC é a semelhança inquietante das ideias que insiste em defender com os ditames de Milton Friedman e dos seus Chicago Boys.
O que mais avulta num político de recursos tão limitados como Pedro Passos Coelho (PPC) é a sua fixação febril, obsessiva e obtusa na «teoria» do empobrecimento deliberado do país e do povo, para servir de alavanca a um enriquecimento futuro de tal modo incerto que nem ele próprio se atreve a prognosticar. Quanto à sua ex-professora e ex-ministra das Finanças, Maria Luís Albuquerque, cujas limitações também são óbvias, tornou-se a sua mais repetitiva discípula política e não passa de um epifenómeno, ou seja, de um sintoma que sobreveio numa «doença» já declarada (por PPC). Constituem ambos uma parceria política de meter medo ao susto.
Mas o que mais impressiona na teimosia obtusa de PPC é a semelhança inquietante das ideias que insiste em defender com os ditames de Milton Friedman e dos seus Chicago Boys, quando estes fizeram do Chile de Pinochet o primeiro grande «laboratório» de aplicação prática das suas teorias neoliberais, de acordo com a «santíssima trindade» — privatização, desregulamentação e redução das despesas sociais — formulada na obra matricial Capitalismo e Liberdade (!?). Como escreveu Naomi Klein, no seu livro The Schock Doctrine, The Rise of Disaster Capitalism, foi o Chile que marcou a génese da contra-revolução ultraliberal, nascida no terror, que pretendia ser «uma verdadeira revolução, um movimento radical rumo à liberalização total dos mercados», como escreveu o Chicago Boy José Piñera, ministro do Trabalho e das Minas de Pinochet.
O resultado do «tratamento de choque» que o próprio Milton Friedman foi ao Chile aconselhar a Pinochet — uma «orgia automutiladora» de reformas, como salientou a insuspeita revista The Economist — traduziu-se num brutal empobrecimento (noção que viria a ser tão cara ao «nosso» PPC) com o objectivo de empurrar o Chile até à «liberalização completa dos mercados», provocando um enorme aumento do desemprego (que os Chicago Boys consideravam ser «provisório») e desmantelando o Estado-Providência, no intuito de estimular o nascimento de uma «utopia capitalista pura». O ano crucial foi 1975, quando a inflação já atingira os 375% (mais do dobro do que durante o governo de Allende) e o balanço é simplesmente aterrador.
As despesas do Estado foram reduzidas, de uma só vez, em 27%. A Saúde e a Educação foram os sectores mais duramente atingidos (uma das medidas mais emblemáticas foi o corte do abastecimento de leite às escolas). A rede de escolas públicas foi substituída por escolas privadas à la carte, às quais se tinha acesso com «cheques de ensino». Os serviços de saúde foram submetidos ao princípio do «utilizador pagador», os jardins de infância e os cemitérios foram vendidos ao sector privado. Mas a medida mais radical foi a privatização da Segurança Social. Mais de 500 bancos e empresas públicas foram igualmente privatizados, ao «preço da chuva». As empresas locais foram destroçadas e, entre 1973 e 1983, o sector industrial perdeu 177.000 postos de trabalho. Cerca de metade da população chilena foi, pura e simplesmente, excluída da economia. A corrupção, o compadrio e a fraude escaparam a qualquer controlo. As pequenas e médias empresas públicas foram dizimadas. A riqueza passou do sector público para o sector privado enquanto os passivos passaram do sector privado para o sector público. Aconselhado por Milton Friedman e pela sua ignominiosa e corrupta quadrilha de Chicago Boys, o general Augusto Pinochet mergulhou deliberadamente o Chile numa profunda recessão.
Claro que os únicos beneficiários das reformas ultraliberais executadas no Chile pelos Chicago Boys locais — designadamente pelo seu chefe de fila, o ministro das Finanças Sérgio de Castro (antigo aluno de Milton Friedman em Chicago) — foram as grandes empresas estrangeiras e um pequeno grupo de financeiros oportunistas, a que os chilenos chamavam «piranhas», que nunca se cansaram de ganhar, à custa da especulação desenfreada, milhões e milhões, partilhando-os com os Chicago Boys estrangeiros e locais. O resultado das reformas ultraliberais só podia ser, como de facto foi, o de aspirar a riqueza de baixo para cima e, à custa dos sucessivos choques, empurrar a classe média de cima para baixo, para o desemprego e a despromoção social.
A lógica neoliberal do «tratamento de choque» (o mesmo que a troika e o governo de PPC quiseram impor a Portugal entre 2011 e 2015) fez Naomi Klein evocar, no seu livro já citado, o «parentesco» impressionante com a lógica dos psiquiatras que, nas décadas de 1940 e 1950, estavam convencidos de que bastava provocar deliberadamente as crises de epilepsia para que o cérebro dos pacientes voltasse a funcionar «normalmente». Para tanto, esses psiquiatras prescreviam o recurso massivo aos electrochoques, tal como Milton Friedman, e depois a UE, o BCE e o FMI (isto é, a troika) — com apoio de governos como o de PPC — receitaram e continuam a receitar os «tratamentos de choque» aos países periféricos em sérias dificuldades. Como então descreveu a também insuspeita revista Business Week, o que se viu no Chile foi «um mundo digno do doutor Strangelove, onde a depressão é provocada voluntariamente».
As propostas de Friedman foram de tal forma brutais e desumanas, que um seu antigo discípulo, André Gunder Franck, escandalizado com o horror que testemunhou no Chile, escreveu que tais propostas «não teriam podido ser aplicadas sem os dois elementos-base em que se apoiavam: a força militar e o terror político». Eu diria, sem constrangimentos ou papas na língua, que foram estes dois elementos-base que, felizmente, faltaram em Portugal, entre 2011 e 2015, para criar um cenário tão dantesco, não só como o do Chile, mas também como o da Argentina, do Brasil e de outras ditaduras militares sul-americanas igualmente «aconselhadas» pelos Chicago Boys.
Não duvido de que seja grande a capacidade dos grandes potentados económicos e financeiros — assim como da União Europeia, do Banco Central Europeu e do Fundo Monetário Internacional — para desestabilizarem governos cujas políticas tenham em vista a melhoria das condições de vida e do bem-estar das populações. Se pudessem contar com a força militar e o terror político — como a multinacional norte-americana ITT contou no Chile — é quase certo que não hesitariam. Mas, onde a democracia ainda funciona, esses potentados não têm outro remédio se não contar com a truculência de políticos tão soturnos, rebarbativos e obtusos como Passos Coelho.
Fundador do Partido Socialista, ex-secretário de Estado