Gritaria, insultos e ameaças no julgamento de Dilma Rousseff

Presidente do Senado lamenta "espectáculo" que "é sobretudo demonstração de que a burrice é infinita". A votação final deverá acontecer na terça-feira. Se dois terços considerarem a Presidente culpada, Dilma perde o mandato e torna-se inelegível por oito anos.

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Julgamento de Dilma Rousseff começou no Senado REUTERS/Ueslei Marcelino

A incredulidade do presidente do Senado do Brasil, Renan Calheiros, com a forma como está a decorrer o julgamento da Presidente Dilma Rousseff, ficou patente no pedido de desculpas que apresentou ao juiz do Supremo Tribunal Federal que dirige o processo, e nas críticas públicas que endossou aos senadores, que só por a sessão ter sido interrompida não se pegaram à pancada. “Não podemos apresentar este espectáculo à sociedade. Fico muito triste porque esta sessão é sobretudo uma demonstração de que a burrice é infinita”, lamentou.

Cem dias depois de ter sido aprovado pela Câmara dos Representantes e endossado pelo Senado brasileiro, o processo para a destituição da Presidente Dilma Rousseff, acusada de crime de responsabilidade, chegou finalmente a julgamento na câmara alta do congresso, mas até agora o hemiciclo parece mais uma arena de combate (ou de circo) do que um tribunal.

O juiz presidente do Supremo Tribunal Federal, Ricardo Lewandowski, está a sentir grandes dificuldades para controlar os ânimos e assegurar a normalidade dos trabalhos. Logo na primeira sessão, o magistrado foi obrigado a usar a autoridade para refrear a agressividade dos senadores, que começaram a atacar-se mutuamente, com argumentos que extrapolam em muito o conteúdo político da discussão.

Houve insinuações de promoção de trabalho escravo, de ligação ao jogo do bicho e até do consumo de cocaína (“Tem que fazer anti-doping, fica aqui cheirando não”, atirou o líder do DEM, Ronaldo Caiado, um dos principais defensores do impeachment, contra um senador do PT e aliado de Dilma, Lindbergh Farias), tudo para reformar a ideia de que nenhum dos presentes tem probidade moral para julgar a Presidente.

A tensão de cortar à faca voltou a manifestar-se esta sexta-feira, levando Lewandowski a ordenar o corte do som nos microfones e a interromper a sessão por duas vezes, após a escalada dos insultos – que já iam ao nível de “desqualificado” e “canalha” – e a ameaça de violência física. Perante a gritaria e o tumulto, Renan Calheiros pediu desculpa “pelos constrangimentos” às testemunhas que ainda aguardam a sua vez para depôr, e também ao juiz do Supremo, “obrigado a presidir a um julgamento num hospício”.

O processo, uma maratona que deverá prolongar-se pelos próximos dias até à votação final dos 81 membros do Senado, estimada para segunda ou terça-feira, obriga a nova audição de testemunhas de acusação e defesa da Presidente, que poderão ser directamente interpeladas pelos senadores (que no julgamento de impeachment, assumem o papel de júri, a quem cabe a decisão sobre a inocência ou culpa).

Como cada senador dispõe de um tempo até seis minutos para a sua pergunta, e a acusação e defesa de dez minutos para pedir esclarecimentos, esta primeira fase do processo pode prolongar-se por três dias. Já se sabe que ocupará todo o fim-de-semana: inicialmente, a base de apoio de Dilma, e o próprio presidente do Supremo, defenderam a suspensão dos trabalhos no sábado, mas um acordo entre as bancadas que apoiam o novo Governo interino conseguiu que a sessão fosse prolongada até à madrugada de domingo.

Dilma Rousseff, que foi oficialmente suspensa de funções no dia 12 de Maio, marcará presença quando o julgamento for retomado no dia 29 – será a primeira vez que participará nas audiências. Segundo explicou, fez questão de depôr em defesa da sua honra e da sua presidência, e para repetir que é inocente e está a ser vítima de um “golpe parlamentar” para a tomada do poder. “Vou lá defender a democracia e defender o meu projecto [político], que foi o eleito. Vou defender os interesses da população e vou defender mudanças para que isto nunca mais aconteça no Brasil”, prometeu aos seus apoiantes na quarta-feira à noite.

O seu advogado, José Eduardo Cardozo, disse à AFP que a Presidente suspensa tenciona apontar “as inconsistências que exigem nas denúncias”. A sua exposição servirá, ainda, para se pronunciar sobre o processo contra si e a democracia brasileira. “A ida de Dilma ao Senado é importante para marcar posição e reafirmar que é vítima de um golpe”, notava à BBC Brasil a cientista política Christiane Laidler, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

A Presidente foi acusada de crime de responsabilidade, por ter alegadamente praticado actos orçamentais vulgarmente conhecidos como “pedaladas fiscais” – para os legisladores, os decretos de abertura de créditos que Dilma assinou sem a autorização do Congresso e os empréstimos contraídos junto de bancos públicos serviram para esconder o verdadeiro estado das contas públicas e assim garantir a reeleição em 2014.

De acordo com o procurador Júlio Marcelo de Oliveira, o representante do Ministério Público junto do Tribunal de Contas da União, as pedaladas fiscais e outras manobras orçamentais de Dilma foram um “grande plano de fraude fiscal”, que “trouxe um grande benefício ao poder executivo” mas que levou à “explosão da dívida pública”, afirmou esta quinta-feira. Oliveira começou o seu depoimento como e testemunha da acusação, mas depois da sua imparcialidade no caso ter sido posta em causa pela defesa, acabou por ser “despromovido” por Lewandowski à categoria de informante.

Conforme está previsto do regimento, a Presidente tem 30 minutos para se defender, mas esse tempo poderá ser prorrogado por decisão do presidente do Supremo. Poderá optar por não responder às perguntas dos senadores, mas se decidir responder, as questões não podem exceder cinco minutos. Depois disso, inicia-se a discussão entre a defesa e a acusação: uma hora e meia para cada lado, e depois uma hora de réplica e tréplica. A discussão será alargada aos senadores (dez minutos para cada um) se estes se inscreverem para falar.

No final da discussão, o presidente do Supremo encaminha o processo para a votação. Cabe-lhe apresentar um relatório com os argumentos a favor e contra a destituição, e poderá convocar dois senadores a apresentar os seus pontos de vista. A votação é nominal e feita através do painel electrónico, sem direito a declarações de voto. Os senadores respondem à pergunta: “Dilma Rousseff cometeu crime de responsabilidade?”.

Se dois terços da câmara (ou seja, 54 senadores) votarem sim, a Presidente é definitivamente destituída de funções, e torna-se inelegível por um período de oito anos. O cargo passa também a título definitivo para Michel Temer, que cumprirá o mandato até ao fim. O ainda Presidente interino disse que espera esse desfecho “tranquilamente”, e que espera contar com pelo menos 60 votos a favor do impeachment.

Sem uma maioria qualificada, a Presidente é absolvida e retoma o cargo. Um cenário que Dilma afastou desde o princípio é o da renúncia ao cargo (que foi o que fez Collor de Mello, o único Presidente brasileiro submetido a um processo semelhante): “Não renuncio porque sou absolutamente incómoda: não cometi nenhum crime, nunca recebi dinheiro de corrupção”, frisou.

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