Os Keaton, uma família às direitas

Entre as quatro paredes de uma residência suburbana no Ohio desfilou, durante a década de 1980, uma América a descolar da corrente liberal dos sixties. De um novelo de conflitos e cumplicidades, emergiu uma série com carisma para dar e vender.

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Jennifer, Mallory, Alex, Elyse, Steven: os Keaton DR
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O clã Keaton cresceu com a chegada do quarto filho, Andy, numa fase posterior da série DR
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Michael J. Fox tomou conta de uma série que os produtores começaram por imaginar centrada no casal Elyse-Steven DR
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Elyse e Steven eram o típico casal saído dos anos de excepção que foram os sixties na América DR
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A enorme, e tipicamente americana, cozinha dos Keaton era o epicentro de grande parte da acção da série DR

Em Fevereiro de 2008, a NBC fez uma viagem no tempo. E em 2015 repetiu a dose, justamente na mesma altura em que a Entertainment Weekly prestou a um dos filhos pródigos da cadeia televisiva uma homenagem em jeito de reunião familiar, juntando mais de 25 anos depois todos os protagonistas, em nome dos velhos tempos. Afinal, não é todos os dias que se celebra uma efeméride aos ombros de uma série que marcou uma geração, nos EUA e fora deles. Quem Sai aos Seus (a tradução portuguesa do original Family Ties) tinha tudo para dar certo, desde a música (Without us) que perpassava o genérico à densidade das personagens. E tinha Michael J. Fox.

Eram tardes como outras quaisquer num sofá como outro qualquer. Lá como cá, os anos 1980 estavam a fazer o seu caminho e não havia como não ser arrastado por eles. A televisão ainda era monolítica, ainda encarnava o papel de criadora transversal de tendências. E eu, adolescente, abria as portas da sala-de-estar a esse estímulo que viajava dos EUA até Portugal (obrigado, RTP2) para nos mostrar que o humor pode dissolver-se na actualidade sem medir distâncias. 

Não me recordo de quantas vezes a cozinha dos Keaton foi o meu abrigo temporário. Era lá, do outro lado do ecrã e do Atlântico, naquela dúzia de metros quadrados rematada a cortinados brancos e papel de parede retro, que desfilava uma família-espelho. O espelho de um país menos liberal, entretido com a fantasia do baby boom e ocupado com o conflito geracional que colocava frente a frente os saudosistas dos anos 1960 e uma nova vaga de contracultura disseminada pelas gerações mais jovens.

Elyse e Steven Keaton eram um casal suburbano. O seu dia-a-dia em Columbus dividia-se entre a arquitectura (ela), uma estação de TV local (ele) e a educação dos três filhos, Alex, Mallory e Jennifer. Ou, numa lógica de rótulos: Alex, o conservador; Mallory, a materialista; Jennifer, a maria-rapaz. A separá-los, havia um vale de diferenças tão profundo como a cumplicidade que os unia, uma realidade especialmente evidente a partir do momento em que a sitcom ganhou vida própria e se libertou das amarras do criador.

Inicialmente, Quem Sai aos Seus chegou à mão dos produtores com o casal no centro das atenções. Era suposto a feminista Elyse (Meredith Baxter-Birney) e o esquerdista Steven (Michael Gross) arrebatarem as luzes dos holofotes, reservando-se ao resto da família um papel de mero sidekick. Mas, sem o saber, Matthew Broderick reescreveu o guião. A recusa do actor em aceitar o convite para interpretar a personagem de Alex Keaton foi uma janela de oportunidade para Michael J. Fox e para uma série que cedo entrou em velocidade de cruzeiro. Alex não tardou a tomar conta da cozinha e o público americano aplaudiu.

Era fácil perceber porquê. O perfil descontraído do irmão mais velho, com o seu ar falsamente paternal e uma obsessão assumida por dinheiro, o seu look sempre aprumado e o fervilhante discurso republicano com o qual procurava evangelizar o mundo, atraía seguidores. E as demais personagens foram rebocadas por esse isco. A superficialidade e a ingenuidade de Mallory (Justine Bateman) sobressaíram, a independência e a proximidade de Jennifer aos valores dos pais ganharam peso. Cada peça no devido lugar do xadrez Keaton.

Ao longo dos 168 episódios distribuídos pelas sete temporadas da série houve centenas de gags que sobrevivem ao teste do tempo. Alguns, porém, têm um carácter tão distintivo e colam-se de tal forma à pele das personagens que merecem ser repescados. Mallory: “Mãe, preciso de reavaliar a minha vida. Tens um minuto?”. Simples, directo, eficaz. Alex, para um vizinho: “Lembras-te de quando éramos pequenos e te atropelei com a bicicleta?”. “Sim”. “Agora tenho um carro."

Era fácil deixarmo-nos levar. Havia carisma, classe, debate informado (a igualdade racial, o caso Watergate, a Guerra Fria) – e, ao mesmo tempo, havia também toda uma outra dimensão chamada Nick Moore. Na qualidade de pretendente e futuro namorado de Mallory, injectava no guião um lado mais boçal, que servia essencialmente para apimentar a relação com o putativo sogro. Ninguém resume melhor a natureza dessa personagem do que o próprio actor: “Fico muito satisfeito por ter frequentado a Academia de Artes Dramáticas para poder grunhir no prime-time televisivo”, ironizou Scott Valentine, em declarações a uma rádio de Montréal, em 1994.

Foi esta fórmula, oleada com aparições ocasionais de convidados de luxo como Tom Hanks, Geena Davis ou River Phoenix – e com um sexto elemento para o clã Keaton numa fase posterior, Andy (Brian Bonsall) –, que seduziu toda uma geração durante a década de 1980 (mais concretamente de 1982 a 1989). O tributo que lhe foi prestado em 2011, com o galardão de “série favorita dos fãs” nos TV Land Awards, é demasiado modesto para a sua grandeza, mas o maior prémio a que qualquer produção poderá aspirar, esse, já ninguém lho tira: um lugar cativo no lado bom das memórias.  

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