A organização Gülen, uma seita “à espera de controlar o mundo”

“Se me perguntassem se há outra força política, social e conspirativa pior do que Erdogan, é Gülen”, diz o investigador Murad Akincilar. Quase dois terços dos turcos acreditam que o imã a viver nos EUA tentou derrubar o regime e querem vê-lo julgado.

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Uma aula do curso de preparação para o acesso à universidade numa escola do Hizmet, em Istambul REUTERS/Murad Sezer

Na Turquia, por estes dias, poucos dizem Fethullah Gülen ou Hizmet. A maioria fala em FETO, a Organização de Terror Fethullah, sigla lançada pelos governantes, prontamente adoptada pelos media, e isso já diz tudo. Também podem ser só “os terroristas” ou “estes terroristas”.

Durante anos, na Turquia, pouco se falava de Gülen. A sua existência não era segredo. Mas o imã moderado que ganhou lugar em listas de personalidades influentes ou de quem se espera que mudem o mundo (as escolhas anuais da revista americana Time, por exemplo), reconhecido pela defesa do diálogo inter-religioso, era visto pelos turcos como mais uma das camadas do movimento pós-islamista que devolveu o poder a gente sem medo de assumir a sua natureza religiosa e começou por democratizar a Turquia.

Era uma influência para Recep Tayyip Erdogan, sem deixar de ser parte do seu percurso (do poder para prisão, da prisão para o poder, e agora é poder mesmo a sério).

Gülen, hoje com 75 anos, dava conferências há décadas e começou com campos de férias, imagine-se, ainda nos anos 1970. Fora da Turquia, quando deram por ele, foi mais por defender uma forma própria de modernização do islão e a separação entre política e religião (quando se temia que Erdogan e o AKP desejassem exactamente o contrário). O seu movimento chama-se Hizmet – (serviço) os turcos, os que não o seguem, dizem cemaat (assembleia ou comunidade) – e isso é demasiado abrangente para não ter agarrado a si uma carga negativa (ou positiva).

Certo é que o Hizmet começou com palestras e acampamentos e, de repente, é uma força com milhões de seguidores espalhados pelo mundo, uma rede de escolas e de universidades em 160 países (Erdogan avisou governos em alguns deles, dizendo-lhes para temerem golpes gulenistas), um império mediático, associações empresariais e até uma federação empresarial.

Sim, muitos dos filhos dos líderes do AKP (Partido da Justiça e do Desenvolvimento, no poder desde 2002) estudaram nas escolas e universidades de Gülen, alguns beneficiaram das suas bolsas de estudo. A qualidade do ensino nunca foi disputada e tinham especial sucesso as suas escolas “preparatórias”, onde os alunos treinavam para o acesso ao ensino superior; eram uma importante fonte de rendimento e recrutamento, o então primeiro-ministro Erdogan acabou com elas em Novembro de 2013.

Sempre teve críticos, sempre houve os que descreviam o seu movimento como “sociedade secreta” ou falavam de Gülen, que vive na Pensilvânia, nos Estados Unidos, desde 1999, como “agente da CIA”. Mas durante os anos 1980 (e na década seguinte, no auge da guerra civil entre o Estado e o PKK, Partido dos Trabalhadores do Curdistão), quando na Turquia se matava em nome de tudo e havia terrorismo de extrema-direita, assassínios à bomba e golpes de Estado, um homem que defende a não-violência, o diálogo e a educação para fazer avançar o país, oferecia uma alternativa com sentido para muitos.

64% dos turcos

Como é que daqui se salta para o aqui e agora, um mês depois da tentativa de golpe de Estado fracassada que matou mais de 240 pessoas (a maioria civis, para além de dezenas de militares rebeldes), com o Presidente Erdogan, o Governo, toda a oposição e colunistas insuspeitos a exigirem aos EUA a extradição de Gülen? Na noite de 15 de Julho, os militares que lideraram o golpe disseram querer “restabelecer a democracia” e anunciaram a lei marcial. Os turcos não foram na conversa, saíram à rua e enfrentaram tanques, caças e atiradores furtivos.

Segundo uma sondagem divulgada na imprensa turca, 64% da população acredita que foi mesmo Gülen a tentar derrubar o regime. Uma tentativa que agora serve de pretexto ao seu ex-aliado e actual arqui-rival para afastar dezenas de milhares de funcionários e perseguir opositores. O movimento de Gülen é um polvo de muitos tentáculos. Se Erdogan está a apontar aos tentáculos certos ou a aproveitar para arrancar todos os braços que se lhe opõem já é outra conversa.

Certo é que é difícil (impossível, vá) vacilar quando se conversa com alguém como Murad Akincilar. Um homem que foi perseguido e preso, em 2009, por defender uma oposição democrática e feita por turcos e curdos, e que há cinco anos vive em Diyarbakir (onde no dia 10 uma explosão matou cinco pessoas e esta segunda-feira um carro armadilhado matou três, dois polícias e uma criança), longe do conforto da sua cidade, Istambul, dedicado aos curdos, à frente do Instituto para os Estudos Políticos e Sociais de Diyarbakir.

Provar na pele                                                    

“A seita de Gülen fez demasiado para provocar uma guerra entre curdos e turcos. Mesmo durante o chamado processo de paz”, diz Akincilar, à conversa numa das salas do centro de estudos, no centro da cidade do Sudeste. “Politicamente, não podia ser mais oposto ao regime de Erdogan. Mas se me perguntassem se há outra força política, social e conspirativa pior do que ele é Gülen”, afirma, sem hesitação. “Nesse aspecto, se pedissem a minha colaboração... [nas investigações]. Eu provei na pele do que eles são capazes.”

Assim é complicado duvidar, não é? Mesmo quando ao longo dos últimos anos se conviveu com assumidos gulenistas, seus representantes em Lisboa, por exemplo. Mesmo quando se entrevistou gente com um discurso coerente, como o ex-deputado do AKP Muhammed Çetin, doutorado em Sociologia, que estudou no Reino Unido e ensinou nos EUA, seguidor de Gülen há mais de 30 anos.

Numa passagem por Lisboa há dois anos, Çetin descrevia Erdogan como “duro, autoritário, egoísta”, um homem com “uma retórica áspera” que age como “Governo, partido, Estado” e “faz mal à Turquia”. Ora, tudo isso é verdade. Em troca, gente como Çetin diz ter para oferecer “vontade colectiva, discussão, decisões colectivas”, a paz com os curdos, “liberdades civis alargadas”…

O paraíso na terra dir-se-ia. E porque não?

O pior é ir a Diyarbakir e ouvir de Akincilar que os gulenistas “fizeram demasiado para minar o cessar-fogo; antes de mais, tentaram criminalizar a equipa que estava a negociar, tentaram prender o chefe negociador só por admitir o PKK e [Abdullah] Öcalan [líder independentista curdo, preso há 17 anos] como parceiros, interlocutores”. E acusá-los de terem, “em muitos casos”, feito tudo para impedir a paz: “vimos que havia determinados grupos dentro das forças de segurança que esticavam a corda até ao fim, abriam fogo contra civis, criavam uma destruição sem fim, a um nível que só podiam estar contra o processo de diálogo e a paz”.

Apocalipse curdo

Se isto é terrível, então oiça-se Akincilar descrever o que sabe das diferenças de abordagem entre Gülen e o AKP. “Um dos pontos em que Gülen cemaat e o AKP discordavam era a questão curda. De acordo com Gülen, o Exército iria destruir fisicamente os curdos, a resistência armada; depois, o Governo deveria subcontratar a fase de conquistar as mentes e os corações ao seu movimento, percebes, com a ajuda de líderes religiosos, dinheiro, as suas organizações de caridade”, conta. “Este era o projecto dele, parece que Erdogan não aceitou. Os curdos nunca dariam o mínimo de crédito a Gülen mesmo estando também a combater Erdogan.”

Ninguém esquece que Gülen só chegou onde chegou, na Turquia, por causa de Erdogan. “Claro que Gülen deve tudo ao AKP, só assim conseguiu tornar-se neste estado gigante dentro do Estado”, diz Akincilar. Mas para este homem doce e inteligente, que a prisão não amargou, isso não torna Gülen nem um pouco mais simpático.

Se Sakir Dincsahin fala do processo “Ergenekon”, um dos dois grandes casos de supostas conspirações militares para derrubar o Governo que levaram centenas à prisão e depois se descobriu terem sido forjados por gulenistas (procuradores e juízes) – como mais tarde terão forjado provas de corrupção contra Erdogan, familiares seus e ministros –, não é para ilustrar uma ideia teórica. É mesmo para lembrar que o reitor da sua universidade, a Yeditepe, de Istambul, privada, secular, conotada com a oposição, se viu acusado de ser líder da “organização terrorista Ergenekon”.

Dincsahin está, como todos os académicos, impedido de sair do país enquanto decorrem as investigações para “limpar” a Turquia dos gulenistas. Um preço que não se importa de pagar, ele que é simpatizante do CHP (Partido do Povo Republicano, o mais antigo do país, fundado pelo “pai” dos turcos, Mustafa Kemal Atatürk), partido cujos líderes nem falavam com Erdogan e se puseram a seu lado nesta onda anti-Gülen que engole tudo à passagem.

Livrar o mundo do mal

É que da oposição às Forças Armadas à academia (onde os gulenistas eram escolhidos em detrimento de gente mais preparada, tendo tido até, segundo Dincsahin e outros, “acesso aos exames” para conseguirem promoções), há anos que se avisava para o poder deste movimento, algo que Erdogan só terá percebido quando se viu, ele próprio, envolvido no escândalo de corrupção.

Erdogan, o intocável, o homem que se quer perpetuar no poder e gosta de se apresentar como homem do povo (que já foi), não costuma admitir erros. Não ajuda à aura de novo “pai” dos turcos, queremos poder confiar cegamente num pai. Mas há dias pediu desculpas por não ter visto antes o potencial de ameaça de Gülen: “Sinto tristeza por ter fracassado em revelar muito mais cedo a verdadeira face desta organização terrorista”.

O professor de Política Turca e Pensamento Político Contemporâneo deu-se ao trabalho de ouvir discursos de Gülen e de membros do movimento no YouTube. Diz que acreditam “no Mahdi” e isso nem Erdogan. O Mahdi é o messias, o profeta redentor que chegará para “guiar” os fiéis e liderá-los mesmo antes do Dia do Julgamento ou da Ressureição, quando livrará o mundo do mal.

Dincsahin diz isto a rir porque ou se ri ou se chora. Mais a sério, mas pouco, conta que no comunicado dos golpistas “havia uma referência ao Mahdi, imagina”, enquanto se felicita pelo fracasso de uns conspiradores apressados e desajeitados (terão antecipado o golpe para se adiantarem ao Supremo Conselho Militar do início de Agosto, onde os oficiais gulenistas seriam corridos e, depois, no próprio dia, em vez de avançar de madrugada, como planeado, foram descobertos e arriscaram agir à hora do jantar de sexta-feira, quando não há turco que não esteja acordado, a maioria até está na rua).

Tudo é estranho

Akincilar e Dincsahin são só dois, mas há tantos mais. Dincsahin, agora que o golpe não chegou a ser, goza com uma seita “à espera de controlar o mundo”. Merve, jornalista no desemprego, fala de um “culto estranho”. Oya, jornalista que recusa escrever uma linha sobre política para evitar problemas e porque “não é possível escrever de forma objectiva” nesta Turquia que é tão menos do que os turcos merecem, descreve “um golpe muito estranho”. O coronel na reforma Savas Biçer diz que já acabou o tempo dos golpes, mas espera que agora Erdogan aprenda que o caminho é “o do secularismo e dos princípios fundadores da Turquia”, os de Atatürk.

Os curdos, que não têm nada a ganhar com nada disto, como nunca têm (a não ser, diz Akincilar, a certeza que, um dia, com novas negociações, haverá menos gente com armas e poder a torcer para que elas falhem), ainda atiram um “eu avisei”.

Dincsahin conta que a livraria atacada que correu mundo num vídeo partilhado nas redes sociais logo depois do golpe falhado, era… adivinharam, de gulenistas. Na Turquia ainda não se queimam livros a não ser que tenham sido escritos por gente que terá mandado helicópteros e aviões de combate bombardear o Parlamento, esquadras de polícia, ou disparar contra civis desarmados numa ponte sobre o Bósforo.

O académico também acredita que quando os EUA perceberem que têm de escolher “a Turquia ou Gülen” vão escolher o país com o segundo maior Exército da NATO e com a base aérea que Washington mais usa para atacar os jihadistas do Daesh. Gülen continua no seu rancho da Pensilvânia, de onde vai dizendo que muito sofreu às mãos dos militares (é verdade, ele, Erdogan, e tantos) e que nunca tentaria derrubar o Governo. Os turcos já não acreditam, acabe Gülen os seus dias num calabouço turco ou nunca mais volte a pisar Ancara ou Istambul.

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