A azáfama da preparação da Romaria d'Agonia

Em Viana do Castelo fazem-se os últimos preparativos para a grande festa do Alto Minho, de 19 a 21 deste mês. É preciso deixar tudo a postos para os tapetes de sal nas ruas da Ribeira, a Procissão do Mar, o Cortejo Histórico-Etnográfico e o desfile das Mordomas.

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A festa de dias 19 a 21 é considerada a maior romaria do país Nelson Garrido
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A festa de dias 19 a 21 é considerada a maior romaria do país Nelson Garrido

“É por devoção à Nossa Senhora d’Agonia, a padroeira dos pescadores”, diz o mestre João Salvador Vieira, com um sorriso estampado no rosto, que há mais de uma semana tem o barco Montaria encalhado na doca das Marés, em Viana do Castelo; em vez de andar no mar à pesca do congro e do polvo, o sustento da família. Por estes dias, todo o tempo e ajudas são poucos para “reparar e pôr a embarcação bonita” para a mulher Cristina Moreira a engalanar com flores sexta-feira noite dentro. “E com muito orgulho que levamos, no sábado, a imagem da Santa na Procissão do Mar”.

O casal já começa a sentir um nervoso miudinho, por este ano lhe “ter tocado, pela segunda vez numa década, “esta honra”, numa tradição que conta com meio século. E nada pode falhar. À volta do barco em doca seca há várias latas de tinta e trinchas dispostas no chão, a sugerir muito trabalho. O mestre arrastou uma mão cheia de amigos em troca de dois dedos de conversa, animação e uma bebida fresca. Os trabalhos de lavagem, raspagem já decorrem há dias. Por agora, e debaixo de um calor intenso, dão-se os últimos retoques de pintura em tons azuis, brancos, vermelhos e castanhos, para o barco, que há 13 anos usa na faina, “ficar bem bonito” para a festa. “Há-de vir um camião com grua para o meter na água”, diz tão emocionado que chega a questionar: “Já viu o que é milhares de pessoas assistirem e aplaudirem nas margens do rio Lima à passagem de uma centena de embarcações de pesca e de recreio engalanadas?”. A sua ainda há-de levar 16 pessoas, entre familiares e autoridades religiosas, depois da procissão chegar pelas 14h30 ao cais com homens vestidos com as suas melhores camisas aos quadrados - as tradicionais de pescador -, a carregar nos ombros os andores, cada um com cerca de 600 quilos. Outros mestres levam os andores com as imagens de Nossa Senhora de Monserrate, dos Mares, de São Pedro, depois de abençoadas em terra.

E vale a pena? “Pela Santa fazemos tudo, porque, quando estamos aflitos ou os nossos barcos estão muito assoreados e temos dificuldades em entrar na barra, pedimos-lhe para nos dar boa hora.” E resulta? “Oh, então não? Atende-nos as preces”, assegura o mestre com 30 anos de faina, os últimos dos quais a marear nas águas entre Caminha e a Póvoa de Varzim. E no dia da Procissão do Mar, continua a mulher, também se fazem pedidos em terra: “Pedimos protecção [para os pescadores] nas horas de mais aflição, que, agradecemos e cumprimos promessas.”

Cristina Moreira é o braço-direiro do mestre João Salvador Vieira e é ela quem transporta o pescado até à lota de Matosinhos, para venda. Anda numa roda-viva há vários dias, desde que teve de idealizar toda a decoração do barco. E conta os dias que faltam para sexta-feira à noite, para poder fazer a decoração com cabos e redes de pesca, mais “as flores, na tonalidade do azul arroxado do manto da Senhora d’Agonia”, que mandou vir de propósito do estrangeiro.

Tapetes “floridos” de sal

Mandam os costumes que, depois do regresso da Procissão do Mar, as seis ruas da Ribeira recebam a bênção da Senhora d’Agonia, decoradas com os famosos tapetes de sal e motivos marítimos, outro dos pontos altos da romaria. Também aqui todo o trabalho começa na véspera e segue noite dentro com centenas de moradores e amigos de todas as idades a confeccionarem os tapetes de sal com toneladas dele já tingidas de várias cores. A empreitada arrasta milhares de pessoas para uma noitada de trabalho mas também de folia, com concertinas, cantares ao desafio e comes e bebes.

“Animação até demais”, descreve “a filha da Ribeira”, como Maria Doraty gosta de se apresentar, com a frescura dos seus 71 anos. Há três décadas que tem por hábito passar a noite em claro, no Largo Infante Dom Henrique, na zona ribeirinha, onde mora, “para no dia da padroeira dos pescadores tudo estar bonito”. Ainda que recentemente tenha passado o testemunho à filha e a uma amiga desta. Não é que a idade lhe pese, mas já são uns bons anos nesta arte e é “costume antigo os velhotes passarem o testemunho a filhos e outros”, diz por entre risos. Só tem pena que, com toda aquela euforia, os jovens bebam uns copitos a mais e atirem os vazios para cima dos tapetes que tanto trabalho dão a fazer. “Mas a Nossa Senhora d'Agonia não tem culpa e fazemos na mesma os tapetes.” E vale a pena todo o esforço? “Então não vale? Pela Nossa Senhora vale tudo, para ela passar por cima dos tapetes na Procissão do Mar.” Maria Doraty só duvida que a devoção a volte a levar a um barco da Procissão do mar. “O ano passado vim toda encharcada do barco, porque estava muito vento. Este ano não sei se irei. O sal 'corta' o traje típico da Ribeira que visto: avental, lenço, saia. E calço socas.”

Maria Doraty lembra o tempo em que não usavam sal para fazer os desenhos e que, lá pela rua, começaram por pôr as artes da pesca no chão, como redes, e serrim tingido quando Nossa Senhora passava. Depois vieram os tapetes de flores; mas este ano a rua não tem meios para transportar as muitas que são precisas e fica-se pelo sal. “As flores também voavam com o vento e quando a procissão passava, onde elas já iam. Nem vê-las!”

Do tema escolhido para os tapetes, Maria Doraty nada desvenda, “porque também todas as outras ruas da Ribeira gostam da moda do caladinho”; apenas diz que “vai ser muito bonito”. Ainda assim, garante não haver rivalidade entre as várias artérias, mas cada uma mantém fechado a sete chaves o que vai fazer de tapetes de sal. “Toda a gente se guarda”. Maria defende que deveriam previamente combinar entre elas os temas, para não correrem o risco de fazerem coisas semelhantes, como já aconteceu.

Também num armazém do cais de pesca, há duas semanas que se desenham motivos com as cinco toneladas de sal já tingidas. Desde 1975 que João Chavarria, da organização, se “dedica a esta arte popular com todo o gosto” e quer “transmiti-la aos mais novos para que nunca se perca”.

Numa outra rua ribeirinha mais à frente, a Góis Pinto, “uma das mais jovens”, os 25 anos de Miguel Lima já se encantaram há muito pela tradição. Desde os cinco anos que participa. Tradição de família, começou pela avó, passou depois para uma tia e não vai muito tempo para Miguel, irmãos e uma cunhada. Mas este ano tem outro encanto, porque é o organizador lá da rua onde cresceu. “Cumpro esta tradição, que mistura o profano e a fé, com muito amor e devoção à Nossa Senhora d’Agonia que temos no coração”, lá vai dizendo, enquanto aponta para o desenho inspirado nas camisas regionais, sobretudo nos bordados, que tem no chão do pátio da casa onde vive. “É um molde de papel que usamos para depois cobrir os desenhos que fazemos com sal”.

Por aqui nada fica ao acaso: janelas e varandas são enfeitadas, e tudo por devoção à Santa. Pelas ruas já se respira este sentimento e nos bastidores da romaria também. Há uma semana este ambiente já presidiu ao lançamento do livro Romaria da Sr.ª da Agonia, da VianaFestas, entidade organizadora desta festividade, que reúne cerca de 500 fotografias de Rui Carvalho, responsável pelo projecto “Somos todos Romaria”. Aborda a preparação e os dias daquela que é considerada a maior romaria portuguesa.

Gigantones e cabeçudos

Uns quilómetros mais à frente, sente-se um intenso cheiro a tintas, vernizes e madeira vindo do armazém da VianaFestas, na zona industrial da Praia Norte, por entre fileiras de esferovite e latas de tintas empilhadas. Aqui ganham vida trinta carros do cortejo histórico e etnográfico, e dos gigantones e cabeçudos (40 no total). Este ano, estas figuras divertidas são o próprio tema deste cortejo que sai à rua a 21, domingo, e nos leva numa viagem pela história dos gigantones e cabeçudos. “Nesta oficina foram feitos o fauno e o dragão de duas cabeças – os gigantones são as figuras míticas do cortejo” que reúne três mil figurantes, explica Gil Viana, da organização, enquanto Elias Fernandes, que coordena há dois anos todo o trabalho no armazém, aponta para mais gigantones de 50 quilos.

Por estes dias, Elias Fernandes, 45 anos, metade dos quais dedicados ao cortejo, entre o combate a fogos e outros serviços prestados como bombeiro dos Voluntários de Vila Praia de Âncora, anda a fazer um gigante de vime. “É bem diferente do gigantone, revestido a palha”, diz a aludir ao vime dos Celtas que era usados em sacrifícios. “Os povos celtas faziam oferendas em escravos ou prisioneiros de guerra, animais ou produtos para terem melhores colheitas e purificar dos maus-olhados”, conta Gil Viana. Este é um dos primeiros quadros vivos do desfile de domingo que explora o passado destas figuras caricatas que são os gigantones, em Viana do Castelo. Além de alguns santos representados também em gigantones. “Antigamente, na procissão de Corpo de Deus, os santos eram gigantes e resolvemos ir buscar algumas figuras bíblicas”, explica Gil. Alguns dos gigantones e cabeçudos chegam da Bélgica; são os maiores e têm cerca de cem quilos cada.

Para a vereadora da cultura, Maria José Guerreiro, que preside à VianaFestas, a escolha do tema deste ano foi “extremamente feliz” por permitir “reflectir sobre o papel de Viana do Castelo nesta arte milenar da máscara e homenagear algumas das figuras da cidade, como a Taipeira de Darque”, artesã do concelho que continuou a arte familiar de modelar artesanalmente os gigantones e cabeçudos.

Elias Fernandes percorre os corredores para ver se está tudo a postos. Por aqui é o homem dos sete ofícios: “Faço pintura, serralharia, carpintaria”. Lá vai mostrando os carros alegóricos com réplicas de espaços da cidade, como a estação de caminhos-de-ferro que vai transportar quatro dezenas de crianças; dos Paços do Concelho com o chafariz, na Praça da República. Ou das casas da Ribeira com os típicos tapetes de sal; do cruzeiro de uma freguesia, feito de madeira e revestido de fibra, vidro e esferovite, que transporta duas mordomas pelas ruas. “Já viu esta peça? É uma réplica do coração de filigrana de Viana do Castelo com quatro metros de altura que vai no último carro do cortejo com uma fadista.”, questiona entusiasmado. “E o carro que imita uma tasca e distribui broa e bagaço com mel pelas pessoas que assistem ao cortejo?”. Ainda assim, Elias pouco deixa fotografar, porque “há que manter tudo em segredo” até ao dia em que o cortejo sai à rua e é recebido por um banho de gente.

É todo um trabalho minucioso de preparação das festas o que se faz nos bastidores da romaria que é tida como uma das principais do país. E que tem o projecto “Somos Todos Romaria”, a nova marca oficial das festas para a promover. Depois há ainda o desfile da Mordomia, outro dos pontos altos do cartaz, com centenas de mulheres trajadas a preceito, carregadas de quilos de ouro que exibem ao peito. Com as lavradeiras, as varinas, as mordomas e noivas. E muito mais…

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