A juventude em revolta envelheceu
Há 50 anos, o mundo acordava para a Revolução Cultural chinesa. Começava uma década de perseguições impiedosas encorajadas por Mao Tsetung e que o Estado por ele criado decidiu esquecer.
Cerca de um milhão de jovens encheram a Praça Tiananmen, em Pequim, a 18 de Agosto de 1966, vindos de toda a China, para escutar um discurso de Lin Biao, um dos dirigentes mais próximos de Mao Tsetung. Mas este não era um simples comício de exaltação dos valores da revolução de 1949 ou do socialismo. Na verdade, Lin exortava os jovens a revoltarem-se contra o próprio partido comunista, tomado por “contra-revolucionários”.
A manifestação dos Guardas Vermelhos de 18 de Agosto foi o primeiro momento de demonstração de força da Revolução Cultural chinesa, mas o processo já estava em curso há algum tempo. No início dos anos 1960, o poder de Mao estava ameaçado pela catástrofe económica e humana causada pelo chamado “Grande Salto em Frente” — a política de colectivização forçada da agricultura que provocou a morte à fome de pelo menos 15 milhões de pessoas em apenas três anos. Com receio de ver o seu poder diminuído, ou até de ser afastado por rivais internos e pressões externas (por esta altura, as relações com a União Soviética começavam a degradar-se), Mao lançou um processo sem precedentes na História moderna.
“O nosso objectivo é lutar contra e esmagar aquelas pessoas com autoridade que estão a seguir a via capitalista (...) de forma a facilitar a consolidação e o desenvolvimento do sistema socialista”, escreveu Mao no documento emanado pelo Comité Central, poucos dias antes da manifestação em Pequim. Lin, dirigindo-se aos jovens, denunciou as “quatro coisas velhas” — costumes, cultura, hábitos e ideias — que deveriam ser erradicadas.
A República Popular encontrava-se ameaçada pela emergência de uma casta de “burgueses” que estavam a minar o domínio do partido a partir do seu interior e a pôr em causa os valores do proletariado, dizia Mao. Cabia então aos mais jovens organizarem-se para “purificar” as instituições do Estado. “Fogo sobre o quartel-general!”, era um dos lemas mais conhecidos presentes nos cartazes de propaganda. “Estaline, Pol Pot, Kim Jong-un, nenhum deles pensaria alguma vez em pedir às pessoas comuns para atacarem o próprio aparelho que eles construíram”, diz Frank Dikotter, autor do recente livro The Cultural Revolution: A People’s History, citado pela CNN.
Em Maio, tinha sido lançada uma “notificação” oficial que alertava para a presença de forças “revisionistas” no seio do Estado, e em algumas semanas os jornais estatais lançavam apelos às massas para “acabarem com os maus hábitos da velha sociedade”. Mas foi durante o chamado “Agosto vermelho” que o mundo acordou para a Revolução Cultural chinesa.
“Foi uma explosão social de uma escala sem precedentes”, nota Dikotter. Os Guardas Vermelhos, geralmente jovens nascidos já depois de 1949 ou sem memória da Guerra Civil, perseguiram todos aqueles considerados “representantes da burguesia”, incluindo professores, funcionários públicos e até os próprios familiares. Entre Agosto e Setembro calcula-se que quase 1800 pessoas tenham morrido em confrontos com estas milícias, só na capital.
Durante a década que durou a Revolução Cultural — a maioria dos historiadores faz coincidir o seu fim com a morte de Mao, em 1976 — estima-se que tenha morrido mais de um milhão de pessoas, vinte milhões tenham sido enviadas para aldeias para serem “reeducadas” e dois milhões tenham sofrido de subnutrição por causa da paralisação económica. A par da luta contra os elementos “revisionistas” no Estado, nas escolas e na cultura, os Guardas Vermelhos começaram a entrar em lutas entre si, numa competição sangrenta para provarem a sua fidelidade aos princípios maoístas. A Revolução Cultural passava a assumir contornos de um culto de personalidade a Mao, com o célebre O Pequeno Livro Vermelho, a sua colectânea de citações a vender mais de mil milhões de cópias.
No final de 1968, Mao dá um passo atrás e, para tentar conter a violência, dá ordens aos milhões de Guardas Vermelhos para serem enviados para aldeias espalhadas pelo país, onde seriam objecto de “reeducação”. Ao mesmo tempo, o Exército é mobilizado para assegurar o regresso à normalidade e é nesta altura que os confrontos sobem de tom e o país fica perto da guerra civil. Entretanto, a cúpula do poder na China tinha sido purgada dos elementos “revisionistas” que Mao tinha denunciado. Em 1968, cerca de três quartos dos membros do Comité Central eram apelidados de contra-revolucionários, incluindo o próprio Presidente, Liu Shaoqi.
O vasto património milenar chinês sofreu igualmente duros golpes. Segundo Henry Kissinger na sua obra Da China, dos 6843 locais de interesse histórico e cultural de Pequim, foram vandalizados 4922, por serem considerados “propriedade feudal”. Na esfera cultural, o confucionismo foi um dos alvos primordiais — o maoísmo não suportava ideologias rivais. Nem os gatos foram poupados por serem considerados pelos Guardas Vermelhos símbolos da “decadência burguesa”.
Mao imune a críticas
O acto de contrição surge apenas depois da morte do “Grande Timoneiro”. Deng classificou as decisões de Mao como “70% certas e 30% erradas” — a mesma fórmula que tinha sido utilizada por Mao para descrever as acções de Estaline. Em 1981, o Partido Comunista Chinês (PCC) adoptou uma resolução oficial em que responsabilizava a Revolução Cultural por ter causado “instabilidade interna e ter trazido catástrofe para o partido, o Estado e todo o povo”. Depois de fechado oficialmente pelo partido, este período passou a ser tabu. As investigações sobre a Revolução Cultural são limitadas e qualquer tentativa de assinalar o aniversário é encarada com desconfiança.
Um episódio recente demonstra a dificuldade em encarar este passado. No início de Maio, um concerto organizado no Grande Salão do Povo, em Pequim, incluiu alguns temas conotados com o culto de personalidade associado a Mao — e que desperta recordações do fervor da Revolução Cultural. O receio de que o evento pudesse ser relacionado de alguma forma com o aniversário do início da revolução — foi a 16 de Maio de 1966 que Mao emitiu os primeiros apelos à rebelião — levou a uma troca de acusações entre os vários organizadores da gala sobre quem foram os responsáveis pela inclusão de “músicas vermelhas” no repertório da orquestra.
Os líderes chineses enfrentam uma posição difícil sempre que se aborda a Revolução Cultural. Se, por um lado, é impossível descartar o profundo impacto negativo a que nem o próprio PCC fechou os olhos, por outro, assumir responsabilidades de forma demasiado frontal é também arriscar abrir caminho para a crítica ao próprio sistema que o regime diz defender. O problema é que Mao é também o fundador da República Popular, o que lhe confere uma impermeabilidade à crítica. “Toda a história do Partido Comunista Chinês gira em torno da personalidade de Mao, é por isso que o partido nunca irá promover um exame crítico à sua própria história”, diz Dikotter. Por outras palavras, foi isso mesmo que Deng Xiaoping reconheceu em 1981: “Desacreditar o camarada Mao Tsetung seria desacreditar o nosso partido e o nosso Estado.”
A narrativa oficial fez então recair a culpa sobre sucessor oficioso de Mao, Lin Biao, que tinha morrido antes do final da Revolução Cultural em circunstâncias altamente suspeitas num desastre aéreo quando tentava fugir para a União Soviética. Os culpados oficiais foram também os elementos do chamado "Bando dos Quatro", que incluía a própria mulher de Mao, Jiang Qing. “Eles cometeram muitos crimes nas costas dele [Mao], provocando o desastre no país e entre o povo”, concluía Deng. Com o encerramento oficial de um dos capítulos mais aterradores da história chinesa, Deng pôde então congelar a ideologia e conduzir algumas das principais reformas económicas que levaram a China a um crescimento contínuo e acelerado durante duas décadas. Mas a História nunca fica de fora durante muito tempo.
“Cinquenta anos depois, este é o episódio mais controverso da história moderna chinesa”, diz ao The Guardian o académico Jude Blanchette, que se encontra a escrever um livro sobre a influência do maoísmo na China contemporânea. Nas livrarias é cada vez mais difícil encontrar obras sobre a época, mesmo as que passaram o crivo da censura, escreve Kerry Brown, director do Instituto Lau China no King’s College de Londres. “O PCC do século XXI aprecia uma história simples, com os seus heróis e vilões óbvios e as suas mensagens directas e inequívocas”, escreve Brown. “A Revolução Cultural, por contraste, é uma confusão de contradições e paradoxos indesejáveis.”
Não é de admirar que a passagem de meio século sobre o início deste período tenha encontrado um silêncio ensurdecedor em toda a China. Porém, dois dos principais media estatais decidiram abordar o tema em dois editoriais publicados em Maio, embora a mensagem não mais tenha sido do que ecos da posição oficial de 1981. No Diário do Povo, num texto com o título “Aprendendo lições da história para melhor avançar em frente”, a Revolução Cultural é descrita como “completamente errada, tanto na teoria como na prática”. No Global Times é saudado o “consenso” na sociedade chinesa de “negar completamente os valores da Revolução Cultural”. O editorialista encontra, porém, uma lição aprendida: “Ninguém teme a desordem e deseja a estabilidade mais do que nós.”
De Mao a Xi
A geração que hoje governa a China viveu a sua adolescência durante a Revolução Cultural, tanto como vítimas ou culpados. Entre os actuais sete membros do Comité Permanente do Politburo do PCC, a “cúpula da cúpula” da hierarquia, cinco foram alvo de exílio forçado para as zonas rurais. Com 13 anos, o actual Presidente, Xi Jinping, viu o seu pai perseguido, agredido em público e enviado para o exílio. Há relatos de que a sua meia-irmã, Xi Heiping, se tenha suicidado — uma prática comum durante aquela época.
É com isto em mente que se deve analisar o percurso de Xi desde que assumiu o poder em 2013. Vários analistas referem o contraste entre o estilo de liderança de Xi em comparação com os seus antecessores pós-Mao, que tinham uma atitude mais tecnocrata e menos ideológica. O actual Presidente adopta um tom mais político e, segundo alguns, mais assertivo nos seus discursos, e tem concentrado mais poderes na sua pessoa do que outros líderes — Deng, por exemplo, queixava-se de ter “demasiados títulos”. Em Abril, Xi passou a deter um novo cargo de comandante supremo do Comando Operacional — ao qual se acrescenta o de secretário-geral do PCC e a chefia do Exército de Libertação do Povo.
A New Yorker descreve-o como o “líder chinês mais autoritário desde Mao”. A implacável campanha anticorrupção lançada por Xi é a pedra de toque do seu mandato até ao momento. Nos últimos três anos foram afastadas personalidades que detinham cargos até agora julgados intocáveis, tais como Zhou Yongkang, que liderou o aparelho de segurança interna e pertencia ao Comité Permanente do Politburo. Por outro lado, a repressão e a censura têm sido intensificadas de acordo com várias organizações não governamentais. A detenção para interrogatório de livreiros que trabalhavam em Hong Kong foi vista como uma ingerência sem precedentes das forças de segurança chinesas nos assuntos internos do território e simboliza até onde está Xi disposto a ir para calar os seus críticos.
Mas qualquer semelhança entre a atitude mais musculada de Xi e o terror lançado pela Revolução Cultural é puro exagero. O mínimo indício do surgimento de um culto de personalidade semelhante ao de Mao é desencorajado pelo actual líder, apesar da popularidade de músicas que apelam às mulheres que queiram casar-se que procurem alguém como o “Tio Xi”.
A campanha anticorrupção é vista como uma forma de Xi afastar os seus potenciais rivais e consolidar o seu poder, mas a forma como é conduzida está nos antípodas dos velhos apelos maoístas para que as sedes do partido sejam bombardeadas. “A elite partidária estava unida em querer alguém mais decisivo, uma liderança mais centralizada e capaz de levar a cabo a principal missão de tornar o domínio de partido único sustentável”, explicou ao Wall Street Journal o professor do King’s College, Kerry Brown.
Num artigo publicado no South China Morning Post, o historiador Niall Ferguson descreve as suas impressões após uma recente visita a Pequim e diz que há realmente uma revolução cultural em curso na China — mas “não tem nada que ver com Mao”. Reportando-se às constantes notícias acerca de reformas económicas, contenção do défice ou sobreprodução industrial, Ferguson nota que, 50 anos depois, “a verdadeira revolução cultural é que o líder do Partido Comunista Chinês precisa de lidar basicamente com os mesmos problemas que os seus congéneres ocidentais”.