O que o "Brexit" não permite que se adie
O Reino Unido, é bom não o esquecer, é membro preponderante de uma importante série de acordos e tratados.
Por se estar agora a falar menos no “Brexit”, haverá, por certo, quem fique com a ilusão de que o assunto se resolve naturalmente e sem esforço porque o bom senso prevalece e as instituições reencontram os seus equilíbrios naturais que salvaguardam o que é fundamental. Isso não passa de uma pura e traiçoeira ilusão. A vontade soberana das nações vale o que vale e não é a gestão ardilosa do tempo e dos argumentos que clarifica e resolve as situações. Quem avançou não pode nem sabe agora voltar atrás, já que a vida de uma instituição tão complexa como a União Europeia num continente tenso, dividido, muito pouco solidário e com acentuadas tensões entre norte e sul e entre ricos e pobres não depende de golpes de magia nem de labirínticas tácticas argumentativas. Quem sai tem de sair, no momento certo, sem pressa e sem perigosos ressentimentos, devendo ficar claro que nem uma parte nem a outra erguerá o estandarte do triunfo, sobretudo porque todos vão ficar a perder.
Com o grave contexto criado pelo “Brexit” em fundo, voltamos a falar da gestão dos direitos de autor e do intrincado cenário com o qual não poderemos deixar de lidar.
Durante anos, as legislações dos estados-membros da União Europeia foram-se aproximando e harmonizando, mesmo tendo em conta situações de desequilíbrio e injustiça resultantes da adaptação de importantes directivas aos ordenamentos jurídicos nacionais. Portugal tem exemplos que podem ser citados, desde logo o do Direito de Sequência, que envolve a comercialização de obras da área das artes visuais. Isso contribuiu para que se atenuasse o dualismo fracturante entre os conceitos de direito de autor e de “copyright”.
Por outro lado, reforçou-se a importância e a capacidade de intervenção do Tribunal de Justiça da União Europeia em matéria de direito de autor. Se o Reino Unido deixar de facto, por sua expressa e livre vontade, a União Europeia mas continuar a integrar o Espaço Económico Europeu, o direito de autor, tal como existe, permanecerá em vigor. Mas é urgente que quem tem para tanto competência não adie o debate sobre o assunto. O mesmo se aplica à jurisprudência do Tribunal Europeu, pelo menos do ponto de vista formal.
Enquanto o Reino Unido permanecer na UE, as suas leis de direito de autor continuarão a levar em consideração as directivas de Bruxelas que ajudaram a construir esta longa e complexa história comum.
O Reino Unido, é bom não o esquecer (e tanto Londres como Bruxelas não cometerão o erro de o ignorar), é membro preponderante de uma importante série de acordos e tratados, o que tem como resultado que os direitos que protegem obras musicais, literárias, teatrais e audiovisuais continuarão a ser protegidos enquanto os termos da saída não forem negociados e consensualizados de forma clara e definitiva. Adiar não é resolver. Será, se tanto, complicar e dificultar. Creio que todos o sabem, embora surja uma natural resistência quando se trata de reconhecer e identificar as consequências.
O Reino Unido é justamente visto como um líder mundial do “enforcement”, pelo menos enquanto esse quadro não for alterado. Enquanto a saída não estiver consumada, o Reino Unido tem também um papel relevante no trabalho da Europol. No actual contexto, o país deverá participar ainda na revisão da Directiva do “enforcement” e no trabalho da comissão sobre a luta contra a violação de direitos à escala comercial. Equacionados estes aspectos e ponderados estes argumentos, exige-se que a negociação seja feita com firmeza e clareza para que não subsistam dúvidas e ambiguidades. Todos sabemos quem saiu e por que razão quis sair e não é o arrastado e doloroso coro dos lamentos que transforma a realidade.
Sabem de ciência certa Londres e Bruxelas que não é agora à mesa de almoços e jantares de amigos nervosos e inquietos que este assunto se resolve, sobretudo porque há outros que, não estando resolvidos, exigem medidas adequadas e soluções concretas. Por exemplo a Dinamarca, que aderiu com combatividade e empenho à petição protesto europeu (já com sete mil assinaturas) contra a utilização abusiva de conteúdos protegidos na Internet com muitas dezenas de milhares de autores prejudicados, atingindo as 1421 assinaturas recolhidas já se encontra em segundo lugar no continente europeu, sendo também de realçar o contributo dado pelos autores e artistas portugueses, muitos deles mobilizados pela SPA.
O que irá passar-se na Europa nos próximos meses será um reflexo e um barómetro de um processo de mudança que afectará as nossas vidas e que terá no direito de autor umas das expressões vivas da vontade de Bruxelas e da sua capacidade, ou ausência dela, de unir e mobilizar quem estiver em condições de contribuir para que este não seja um continente e um tempo perdidos em relação a desejos, promessas e projectos que quiseram fazer história em nome de um ideal comum de paz e de progresso.
Escritor, jornalista e presidente da Sociedade Portuguesa de Autores