Juremos devoção às canções nuas de S. Pedro
Pedro Pode não sabe muito bem se os Doismileoito ainda existem. Mas enquanto a sua anterior banda não se decide pela vida ou pela morte, temos as belíssimas canções caseiras de S. Pedro a servir-nos de consolo.
O estúdio de Pedro Pode foi quase todo comprado no OLX. Gravador de oito pistas Fostex, pré-amplificadores, tudo é velho, barato e viveu várias vidas antes de aterrar nas suas mãos. E isto tem tanto de forma poupada de Pedro ter montado o estúdio onde regista as suas criações sob a designação S. Pedro, quanto de busca por uma referência de som que está no passado. Quando se vê diante de algum músico que gaba a inventividade e o som específico de discos dos Beatles, Neil Young ou outros que tais, pergunta-se por que raio não lhes seguem as pistas e se deixam, afinal, inebriar por todos os artifícios proporcionados pelos grandes estúdios de hoje. É certo que Beatles ou Beach Boys, bandas a que Pedro presta vassalagem sem hesitação, se transformaram em exímios exploradores das possibilidades de estúdio, mas é do som alcançado nos discos desta gente que o músico anda atrás. E, para isso, informa-se sobre como foi gravada a mítica bateria de Harvest, de Neil Young, por exemplo, tentando chegar ao mesmo resultado.
“Estou a tentar ser um bocadinho fiel a isso – se gosto de uma sonoridade vou tentar recriá-la”, explica ao Ípsilon. “Às vezes passo tardes a pensar como é que saco o som de baixo de determinada música, então vou experimentando e gravando músicas ao mesmo tempo.” E desse processo, de busca e descoberta com um aparente propósito quase laboratorial de recriação de determinado som, acabam por nascer algumas das canções de S. Pedro. A sua imensa graciosidade, no entanto, depende apenas da forma como nos soam – independentemente do mapa de referências usado para chegar lá. A exploração do “estúdio OLX” como um instrumento, à semelhança daquilo que faziam Lennon, McCartney ou Brian Wilson, é sempre uma ferramenta para correr atrás da miragem da canção pop perfeita.
Os Beatles, confessa Pedro, foram uma descoberta tardia, mas cujo efeito na sua vida não é disfarçável. S. Pedro é música feita hoje, com os ouvidos lá atrás, construída sobre a frustração de não partilhar o mesmo tempo histórico que essa gente milagreira. “Passei a sentir-me mal por não viver num planeta em que existe uma banda como os Beatles, que podiam estar no estúdio neste momento a gravar alguma coisa e eu estaria ansioso por saber o que eles iam fazer”, confessa. “Deve ter sido uma emoção enorme viver na Terra nessa altura. Nos dias de hoje não sinto isso com muitas bandas – se é que sinto com alguma.” A excepção serão talvez os Unknown Mortal Orchestra (UMO) de Ruban Nielson. Até porque os UMO se aproximam formalmente daquilo que são os S. Pedro: a banda de um tipo que se fecha no estúdio, toca e grava todos os instrumentos, inventa um mundo pessoal e só quando chega a altura de o remontar em palco angaria a ajuda de outros músicos.
Não será bem a mesma dinâmica que antes vigorava nos Doismileoito. Mas já no trio/quarteto que lançou dois álbuns pela EMI portuguesa eram as composições de Pedro Pode que puxavam a carroça. “Nunca houve uma liderança nem nada disso naquela banda”, garante, apesar de as autorias serem quase sempre suas. “Sempre foi uma coisa muito harmoniosa e eles davam muito deles, só que às vezes eu tinha facilidade de tocar outros instrumentos em casa e ia gravando, gravando e depois podia ser um bocadinho nazi.” Querendo com isto dizer que quando os outros Doismileoito faziam sugestões de alterações nem sempre lhes concedia esse espaço. Em parte, argumenta, porque se para eles as canções eram novas, nalguns casos já as ouvia com uma forma específica há um ano. Seria quase como querer participar na concepção de uma criança quando ela já tinha os primeiros dentes e aprendia a andar. “Às vezes um gajo tem de ser um pouco impositivo, porque se é toda a gente a decidir não se decide nada.”
Pedro Pode não tem a certeza se os Doismileoito terminaram. Após a gravação do segundo álbum, Pés Frios (2011), ficaram sem editora, sem agenciamento e pensaram que tinha chegado finalmente o seu momento. Iam fazer tudo sozinhos, criar num ambiente de renovada liberdade e fazer, talvez, o melhor álbum de sempre. “Só que não foi bem assim”, reconhece o vocalista e guitarrista do grupo. “Fomo-nos bastante abaixo porque não tínhamos a pressão da editora.” Gravaram na sala de ensaios “uns quatro discos” que poderiam ter sido lançados como o terceiro tomo da discografia do colectivo, mas a verdade é que nunca se decidiram pelo rumo a seguir. E aquilo que ficou foi, portanto, uma indefinição: não sabem se ainda voltarão e arriscarão esse terceiro disco, não sabem se aquilo que lhes falta ainda é um concerto de despedida em que possam oficializar o fim.
Canções caseiras
O Fim é precisamente o nome de baptismo do primeiro álbum de S. Pedro, projecto para onde Pedro canalizou alguns temas que chegaram a integrar a pré-produção de uma hipótese de disco dos Doismileoito e outros que foram rejeitados pela banda por não se enquadrarem no seu perfil “mais enérgico”. Esse perfil, que de início não escondia uma certa filiação nos Ornatos Violeta, poderá ter resultado de um equívoco. Pedro defende que a banda nunca foi assim tão adepta de rock. “Só que sentimos que se tocávamos no meio de duas bandas que tocavam muito alto, nós não podíamos tocar baixinho, tínhamos de tocar rock também”, comenta. “Destoávamos muito no meio de Capitão Fausto e Os Pontos Negros, por exemplo. E fomos acabando por tocar rock, porque as músicas quando surgiam eram sempre muito calminhas e muito brandas. Depois é que tinham de levar aquele peso quando iam para palco e havia que pôr as pessoas a dançar.”
Quando os Doismileoito enveredavam por temas mais tranquilos, recorda, era costumeiro ouvir alguém do público não domar a impaciência e gritar-lhes “toquen mas é rock”. Com S. Pedro uma interpelação do género está destinada ao fracasso. Pedro quis simplificar a sua música, preocupou-se em “não aborrecer as pessoas” – as canções não se estendem por mais de três minutos –, assentou numa matriz pop e apercebeu-se ao ver concertos de gente como o brasileiro Rodrigo Amarante que lhe agradava essa imagem “em que o rapaz está com uma viola e a entrega dele faz com que não seja preciso muito mais”. “Obviamente não tenho aquele peso nem aquela intenção, mas gosto dessa nudez.”
A nudez de S. Pedro equivale a uma exposição pela sinceridade e por uma gravação, que se prolongou durante ano e meio, com contornos lo-fi. O Fim faz-se de canções com as melodias vocais à frente de tudo, alcandoradas sobre guitarras discretas, trompetes de travo mexicano, violoncelos com balanço, coros que tresandam a Verão, tudo espalhado sobre aquilo a que Pedro chama “música de sofá – em que uma pessoa está com a viola e vai cantando baixinho”. Talvez até já nem seja muito esse o formato que mais lhe agrade – tentou ainda dar a volta às canções de O Fim, manter-lhes as progressões de acordes, mas percebeu que andava a mascará-las até não serem reconhecíveis, traindo-lhes o espírito original. Mantém-se assim a fragilidade belíssima de CBDV, 3 minutos, Que azar, Amores de Inverno ou Será, numa cadeia de temas que parece uma fila de bibelots quebrável ao menor estremecimento.
Cada canção de S. Pedro é uma pequena preciosidade pop descarnada, seguindo uma lógica caseira que conhecemos, por exemplo, do Foge Foge Bandido de Manel Cruz. Só que enquanto o ex-vocalista dos Ornatos Violeta tanto gravava canções feitas como esqueletos inacabados e ideias que nunca chegaram a ser mais do que isso, S. Pedro é uma oficina de curtos temas pensados e executados para se cumprir plenamente num tempo de vida de dois ou três minutos de quem canta, logo a abrir, sobre “o bis encore que torna feia a canção”. É de frugalidade que se trata. S. Pedro resume tudo ao mais essencial, numa ligeireza que pode cronicar em modo tropical a namorada em fuga que deixou o cão para trás, numa sucessão de azares cantados com a frescura da autoironia, ou a doce e melancólica história de Quim, cujo sonho de aviação se materializou nos voos diligentes para o balcão de reclamações de um supermercado – que é, ao mesmo tempo, um lembrete pessoal para o homicídio artístico que pode ser perpetrado por um trabalho das 9 às 5.
“Seja quem for / o que faço é que fica / isso sim vai dizer quem sou” canta mais à frente, em Modas. E Pedro Pode, vulgo S. Pedro, diz com este disco, uma vez mais, que é um dos mais inspirados escritores de canções desta terra. Que a atenção que fugiu aos Doismileoito lhe caia agora toda em cima.