Olímpico, o corpo como medida de todas as coisas

Quando pensamos nas heranças que vamos gerindo no nosso horizonte simbólico, uma das que ocupa um lugar de destaque é, naturalmente, o movimento olímpico.

Na Grécia Antiga, o topo do monte Olímpo era o espaço mitológico que acolhia a geração dos chamados deuses olímpicos. Era uma geração centrada em Zeus, gerida por um grupo de irmãos que dividiram a soberania do mundo (Poseidon ficara com o domínio sobre os mares, Hades sobre o mundo dos mortos, e Zeus com os ares e a própria Terra).

Mas Olimpo era também o local onde tinham lugar os mais importantes festivais em honra do deus, mais propriamente, em Olímpia.

Quando pensamos nas heranças que vamos gerindo no nosso horizonte simbólico, uma das que ocupa um lugar de destaque é, naturalmente, o movimento olímpico.

Bastante diferentes do que eram na sua versão antiga, esses mesmos muito diferentes entre si ao longo do milénio que duraram, os Jogos Olímpicos não deixam de ser uma das maiores, senão a maior, das continuidades da humanidade.

Em muito diferem os actuais dos antigos jogos. Na Antiguidade, os atletas vencedores eram, de facto, heróis. Na Antiguidade, os jogos implicavam uma trégua sagrada que, imagine-se, era respeitada. Por fim, na Antiguidade, não se competia por prémio algum, senão a honra (pelo menos durante os séculos iniciais).

Porque se competia em Olímpia? Porque se faziam tréguas efectivas antes de cada jogo? De facto, em Agosto, de quatro em quatro anos, saiam os arautos de Elide, a cidade-estado junto de Olímpia, em direcção a toda a helade. Proclamavam as tréguas sagradas e convocavam para os jogos.

A chave de compreensão deste fenómeno reside no facto de os participantes não concorrerem simplesmente entre si. Nos jogos em honra das divindades, estas também participavam: nenhum atleta ganhava se os deuses o não quisessem. Não é que os deuses fizessem com que os mais fracos ganhassem, mas quem ganhava era, sem sombra de dúvida, um herói no mais estrito sentido da palavra, era tocado pelos deuses.

Ora, quando se concebia que num evento estariam, no fundo, também os deuses a participar, porque os jogos eram em sua honra, eles lá estariam presentes para receber as suas homenagens. Nada, ninguém poderia faltar a essa chamada. Era mais importante do que faltar à guerra, virar costas aos inimigos, e ir a Olímpia aos jogos, tal como aconteceu nas guerras contra os Persas, e vir a ter os favores de Zeus em lutas futuras, do que perder esses favores divinos, passando para o lado dos incumpridores dos deveres para com os deuses.

Ir aos jogos era como que um dever para com o equilíbrio cósmico. Os deuses estavam à espera dos jogos. Todos queriam ver quem era o mais próximo dos deuses, o vencedor.

Esse, o que vencia, era tocado pelos deuses, era próximo dos deuses, era sacer, era victor. Nas suas cidades eram recebidos como heróis, em triunfo, em apoteose.

E eram recebidos em triunfo não simplesmente porque venceram, mas porque, vencendo dessa forma, nesse local, nesses jogos, traziam para a sua cidade, para os que estavam próximos de si, toda essa capacidade de superação. Em várias cidades os vencedores dos jogos eram obrigados a rituais religiosos que potenciavam essa proximidade com o divino a toda a comunidade.

Mas a potenciação era também em sentido contrário. É famosa a participação de Nero numa das edições do jogos: mesmo caindo várias vezes e não tendo chegado ao fim da prova, foi declarado vencedor da corrida de quadrigas.*

Não se sabe ao certo quando começaram os jogos junto ao monte Olimpo. Pelas suas memórias, os gregos fizeram remontar esse início ao ano de 776 a.C., data a que fixaram um calendário pan-helénico.

Possivelmente, os jogos, tal como centenas de outros que tinham lugar ao longo dos anos, em muitas outras cidades, remontam a alguns séculos antes, eventualmente ao século XI a.C.

Ilíada e a Odisseia mostram-nos algumas situações que podem ser imagem de modelos de festival de que os Jogos Olímpicos nasceram. Primeiro, no canto I, depois de o deus Apolo ter sido apaziguado, jovens tocam, declamam e dançam – será esta como que a matriz que se encontra nos Jogos Pítios, em Delfos, em honra desse deus? Depois, mais tarde na narrativa, após a morte do jovem amigo de Aquiles, Pátroclo, jogam-se desportos de competição em sua honra – estes são a matriz dos Jogos Olímpicos.

Esta matriz encerra um profundo significado religioso e estruturante da sociedade. Os jogos podem ser fúnebres, ou de acolhimento a um forasteiro, o máximo ponto da devida hospitalidade. Mais que de esforço físico em busca da superação e do transcendente, o dito transcendente que temos não é apenas o ir mais longe com as capacidades do corpo, mas sim o ir mais longe no Ser e na sua relação com dimensões que em nada se esgotam no corpóreo.

Na Odisseia, encontramos uma situação muito interessante – não pela descrição, em si, dos jogos, mas pelos valores que lhe são associados (Canto VIII, vv 100-173):

 

Agora saímos lá para fora para celebrarmos os jogos

Atléticos, para que o estrangeiro conte depois aos amigos,

Quando chegar a casa, como nós somos excelentes

No pugilato, na luta, nos saltos e nas corridas”.

[…]

“Agora vem tu também, ó pai estrangeiro, experimentar

Qualquer contenda atlética, se porventura sabes alguma.

Para mim tens aspecto de atleta. Na vida não há maior glória

Para o homem do que os feitos alcançados peplos pés e pelos braços.

Experimenta pois qualquer coisa, e afasta as dores do espírito!”

[…]

Mas afinal é verdade que nem a todos os homens os deuses

Concederam os dons da beleza, compreensão e eloquência.

Pois ao homem que é inferior no aspecto físico,

Beleza dão os deuses às suas palavras, de forma que outros

O contemplam com prazer, porque fala sem hesitação,

Com doçura e pudor; e assim é preeminente entre o povo

Reunido, e na cidade todos o fitam como se fosse um deus.

(Seguimos a tradução de Frederico Lourenço, Lisboa, Cotovia, 2003.)

 

Aqui, pela boca de Ulisses, vemos a tensão existente entre o belo e bom, a capacidade física e a capacidade intelectual. Ulisses, nos versos seguintes, afirmará a sua capacidade física, mas antes, com esta afirmação que aqui se transcreve, afirma a intelectual, aquela que na vida da cidade mais importa.

polis deveria viver numa tremenda encruzilhada de valores e significados nos séculos VIII e VII quando nascem os Jogos em Olímpia e quando escrevem Homero e Hesíodo. Uma das encruzilhadas residia exactamente no corpo e em tudo o que dele advinha, especialmente a noção de herói. De resto, esta tensão teria nascido da revolução militar que se operara na passagem para a Idade do Ferro, em que o guerreiro isolado da Idade do Bronze é posto de parte em face da eficácia do trabalho de equipa do “cidadão-soldado”, do hoplita, da nascente cidade-estado.

Mas esta questão da heroicidade que, inevitavelmente nos deixa perante a pergunta: "o que fazer com o corpo bem dotado?", leva-nos para um patamar importantíssimo de História das Mentalidades, um núcleo de pensamento que nos faz enveredar pelo pensamento teológico.

Não muito depois destes autores, no final do século VI, Xenófanes questiona a natureza dos deuses, partindo exactamente da centralidade do corpo humano. Para este filósofo pré-socrático, os deuses nunca poderão ter forma humana como normalmente se representa. A sua transcendência reside, exactamente nisso mesmo, em não ser, de certeza, como os homens. Alguns dos seus fragmentos são bastante elucidativos:

Fr. 15
Mas se os bois, os cavalos e os leões tivessem mãos
ou se fossem capazes como os homens de pintar obras com as mãos,
os cavalos como os cavalos, os bois como os bois
pintariam o aspecto dos deuses, e fariam o corpo deles
tal qual cada um deles o tem.

Fr. 34
E ninguém portanto conhece ou conhecerá jamais
a verdade sobre os deuses e todas as coisas de que falo; (...)

Fr. 23
Um deus, o maior entre os deuses e os homens,
que em nada se assemelha aos mortais, nem no corpo nem na mente.

 

O corpo, era até aqui, de forma inquestionável, “a medida de todas as coisas” como diria um século depois Protágoras. Contudo, na sua relação com o divino, o corpo ganhava novas formas de diálogo na sociedade.

Naturalmente, tem todo o sentido o campo de questões em torno da forma como os gregos viviam e acreditavam em tudo o que as narrativas mitológicas lhes transmitiam. No célebre título de Paul Veyne, "Acreditavam os gregos nos seus mitos?", encerramos um universo tremendo de problemáticas que podemos fazer migrar para o que aqui nos centra: os jogos.

De facto, em que acreditavam os gregos quando iam aos jogos? Que eles tinham sido fundados por Héracles? Lembravam-se das “ascensões” de Dionísio e de Apolo ao Olimpo, como quem revive um texto sagrado?

Sim, é de religião que devemos falar ao tratar dos jogos na Antiguidade. Mas é, acima de tudo, de integração no cosmos, de forma de ver o Mundo e o Homem. É uma Antropologia o que temos na longa afirmação dos jogos na Grécia. Uma visão do Homem que assenta na sua própria superação. Na afirmação de valores de competição através da busca dos limites.

Milenar, imagem de toda uma civilização, foi necessário um édito religioso para por termo aos Jogos em honra de Zeus Olímpico. De facto, em 394 Diocleciano decretava o fim dos jogos. Seriam retomados mil e quinhentos anos depois, em Atenas.

Nada de mais humano, nem nada de mais divino.

Director da área de Ciência das Religiões da Universidade Lusófona

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