O Benim pediu a França que lhe devolva os seus tesouros: a descolonização vai continuar?
Uma associação conseguiu pôr o Benim a requerer oficialmente a devolução dos bens culturais pilhados durante a colonização. Como é que a França mantém na sua posse objectos tão preciosos para outro país?, interroga-se o presidente do CRAN. Está optimista quanto à resposta francesa.
Louis-Georges Tin, presidente do Conselho Representativo das Associações Negras em França (CRAN) desde finais de 2011, tem feito pressão para o retorno das obras de arte do Benim que estão em França. E acabou de conseguir que o governo do Benim pedisse oficialmente ao estado francês a devolução dos tesouros pilhados durante a colonização, feito inédito na história das antigas colónias da África subsariana, segundo diz Tin. “O ministro da Cultura e do Turismo está em negociações com as autoridades francesas e a Unesco para a devolução destes bens culturais”, anunciou o porta-voz da presidência daquele país depois da decisão tomada em conselho de ministros no dia 27 de Julho.
Desde Dezembro de 2013 que o CRAN inclui esta reivindicação na campanha que está a fazer pela reparação dos crimes ligados à escravatura e à colonização, batalha à qual se aliaram a ENAR (European Network Against Racism) e a ERC (European Reparation Commission). “São em geral bens que, durante a colonização, foram roubados, pilhados ou em todo caso adquiridos em condições discutíveis”, explica Louis-George Tin.
Concentrado no Musée du Quai Branly, em Paris, o património do Benim que está no centro do pedido de restituição dirigido à França é estimado pelo presidente do CRAN em mais de cinco mil objectos. “A restituição é um processo longo, que não acontece num dia”, avisa. O site do museu, que tem várias colecções, informa que estão disponíveis mais de 700 mil objectos e iconografia. Contactado pelo PÚBLICO, o museu encaminhou o pedido de reacção para o Ministério da Cultura francês, que por sua vez disse, através do gabinete de imprensa, ser cedo para comentar. A campanha quer alargar-se a outros países. Em alguns, como Angola, já estão a ser feitos esforços.
Porque é importante o Benim pedir a França a devolução de peças – e que peças são essas?
Muita gente acha que a maioria do património africano está fora de África – muito foi roubado e está em museus na Bélgica, no Reino Unido, etc., e isto é inaceitável, o património não lhes pertence. Por isso algumas organizações decidiram lançar esta campanha. A maioria das peças que o Benim solicita está num museu em Paris, o Quai Branly, e entre as coisas mais bonitas há os tronos dos reis do Benim, as estátuas de reis antigos e muitos outros objectos que foram roubados quando as tropas francesas entraram no país em 1892. Alguns dos objectos têm um valor espiritual e são muito importantes para o Benim, mas não para a França – como é que a França mantém na sua posse objectos que são tão preciosos para o outro país? Isto é uma forma de crueldade.
Têm o apoio da UNESCO?
Estamos a trabalhar com o grupo africano dos embaixadores da UNESCO. Desde que lançámos esta campanha estamos em contacto com o governo francês e com o governo do Benim, ao qual dissemos que tinha que fazer o pedido a França; os governos não percebiam o quão importante isto era, mas o presidente do Benim, Patrice Talon, finalmente percebeu que o era, não apenas por razões simbólicas, mas também por razões económicas. Há uma necessidade de construir a economia do país à volta do turismo e se se quiser fazer isso são precisos museus e ofertas culturais – e património para expor.
Estão a fazer campanha apenas para o Benim ou também para outros países que foram colonizados por França?
Deveria ser uma campanha para todos os países que foram colonizados por países ocidentais. Portugal, Reino Unido, Alemanha, Espanha, etc. terão de lidar com esta questão, que não se reduz a França ou ao Benim. De qualquer forma, é preciso começar por algum lado. A história de Benim e dos objectos roubados é famosa [o Reino do Daomé, situado no Sudoeste do actual Benim, com capital em Abomey, foi um importante estado africano entre 1600 e 1894], e por isso começámos por aqui: é um exemplo. E incentivamos outros países africanos e antigas colónias a fazerem exactamente o mesmo, exigindo aos países ocidentais que façam o que a França deverá fazer daqui a pouco tempo: devolver as peças. Estou muito optimista. Não é possível pensar o contrário: todos estes objectos foram roubados e dizer não ao pedido do Benim de restituição seria revoltante e chocante. Haveria uma crise diplomática muito pesada. A França perderia o estatuto, a imagem que quer promover nas Nações Unidas.
A questão hoje não é se a França deve fazer reparações, ou quando e como, porque na verdade já está a pagar. Hoje África não precisa de comprar bens a França; há muitos parceiros que podem lidar com a China, o Reino Unido, a Turquia, o Brasil, etc. E em muitos países africanos em que houve colonização francesa há preferência por comprar a todos os países, menos à França. O país está a perder terreno por causa do seu passado. Seria melhor acabar com estes ressentimentos, dizendo: ‘OK, fizemos coisas más, vamos ver como podemos compensar e tentar construir outra relação’. Se não o fizer, a França vai perder cada vez mais: amigos, parceiros. É isto que tento explicar ao governo francês. Reparar custa dinheiro; não reparar ainda custa mais.
Com que outros países têm conversado?
Temos discutido com países como Angola, Senegal, Gabão. Percebemos que era mais eficaz fazer campanha num país específico e torná-la bem-sucedida, e só depois levá-la a outros países.
Há várias críticas a esta ideia de restituição. O curador Simon Njami [que foi director dos Encontros de Fotografia de Bamako, no Mali, conselheiro artístico da colecção Sindika Dokolo, júri do World Press Photo, etc.] disse numa entrevista que era contra. Uma das razões mais apontadas é que se não fosse no Ocidente essa arte não seria mostrada nem conservada. Como responde?
Não acho que isso justifique o roubo. E acho inapropriado justificar o roubo, seja de que forma for. Este património é dos países africanos e é da sua responsabilidade – é uma herança que lhes pertence. Imagine que eu, por achar que estou em melhores condições do que você para cuidar do seu património, argumento em defesa de um roubo: é uma atitude neocolonial. Do mesmo modo, quando se diz que os objectos estarão mais bem preservados na Europa do que em África é o equivalente a um ladrão justificar que roubou o carro mas não o pode devolver ao proprietário porque a porta da sua garagem não é suficientemente forte.
Se os países africanos querem a restituição, têm de ter em conta a preservação, mas isto não é um argumento contra a restituição – é apenas um aviso aos africanos para que levem a sério o seu património. Foi isso que fizemos: estivemos em contacto com um milionário e tentámos convencê-lo a investir o dinheiro necessário para renovar o Museu d’Abomey, de modo a todos os bens serem restituídos – por isso não há argumentos contra, a não ser a própria injustiça. De resto, o processo de restituição leva anos, e é importante começar antes de se construir um museu.
Em Angola, Sindika Dokolo, genro do presidente José Eduardo dos Santos que está há 37 anos no poder, está a fazer campanha pelo retorno de arte angolana. Não deveria ser o Estado angolano a fazer a campanha?
Há sempre argumentos políticos, a questão é se ele está a fazer a coisa certa – e sim, está. O importante é que os objectos africanos regressem a África e que os africanos possam ver o seu património. Seria melhor ser o governo a liderar, mas acho muito positivo que alguém esteja a fazê-lo. Estamos muito contentes, e é um exemplo para outros países africanos.
Que bons exemplos de restituição existiram no passado?
Não há muitos bons exemplos, para ser honesto. O que vemos é que os casos em que houve restituição foram aqueles em que os estados eram fortes: a China e o Japão, por exemplo, conseguiram. Quanto mais fraco é um estado, menos probabilidades existem de obter a restituição. Mas os países africanos que foram percebidos como fracos no passado estão a crescer e há também a diáspora, na qual eu me incluo, que tem mais poder: somos livres, independentes e podemos exigir muitas coisas que os governos não se atrevem a pedir.