A tubarinha

Que tal um tubarão feroz invadir um filmezinho de surf & bikinis? Estávamos lá quase em Águas Perigosas, se o filme não se levasse tão a sério.

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Um veículo para uma das estrelas femininas da Hollywood actual

Que tal um tubarão grande e feroz invadir um daqueles filmezinhos de surf & bikinis que foram quase um subgénero nos anos 60, mais pelos bikinis do que pelo surf? Estávamos lá quase em Águas Perigosas, se o filme não se levasse tão a sério e tivesse um mínimo daquela queda para a perversidade que a sua pretensa inspiração nas séries B ou Z devia comportar – e nem estamos a imaginar um Herschel Gordon Lewis e o que ele faria com a possibilidade de pôr um tubarão a devorar Blake Lively, lenta e metodicamente, membro a membro.

Mas esse tipo de coisas não se faz à vista de toda a gente, e o filme de Jaume Collet-Serra não é um exercício de sadismo para plateias de drive-in, é um veículo para uma das estrelas femininas mais em voga na Hollywood actual. Aliás, pese a competência do suspense praticado por Collet-Serra, é difícil ao espectador imaginar que alguma coisa de verdadeiramente horrível venha a suceder ao corpo de Lively – sente-se uma “rede” em volta dela, uma espécie de “campo magnético” protector, o star system. E se ontem era só Hitchcock, hoje é só Tarantino a ser capaz de fugir ao mandamento “não desmembrarás a tua estrela”.

A premissa é tão boa quanto costumam ser as ideias simples. Lively é uma surfista que num fim de tarde, sozinha na praia, é atacada por um tubarão e se refugia num pequeno rochedo a escassas dezenas de metros do areal. O tubarão anda por ali, a rondar numa omnipresença/omniausência quase sempre invisível, a maré vai encher dentro de algumas horas submergindo o rochedo (“vamos precisar de um rochedo maior”, não diz ela mas podia dizer), a questão é sobreviver, primeiro, chegar à praia, depois. A premissa, como uma contração do Tubarão de Spielberg e do Castaway de Robert Zemeckis, não é traída – narrativamente, o filme não é mais do que isso, e certos pormenores cuja função é trazerem um pouco de cor narrativa (para além da cor propriamente dita, uma “trilogia” para-kieslowskiana feita do vermelho do sangue, do azul do mar e do branco brilhante da pele de Lively), como a gaivota tornada sidekick muda da heroína, têm uma certa graça. Mas depois, para filme fundado numa premissa tão “minimal”, há demasiada poluição – o contexto familiar (o pai), o arremedo psicanalítico (a mãe), e o ecrã sempre a multiplicar-se noutros ecrãs (do telemóvel, do relógio), como se o filme tivesse que compensar a sua exiguidade narrativa com um excesso de informação e com a convocação de personagens inúteis só para atenuar a solidão de Lively. Pior, a dimensão física da provação da personagem é diminuída por uma découpage que privilegia os planos curtos e a tensão construída na montagem mais do que no tempo real e no movimento em duração. Águas Perigosas resiste como exercício relativamente curioso, mas demasiado cauteloso e muito mais previsível do que podia e devia ser.

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