Solar Impulse 2: “Provámos que o impossível é possível”
Conversa com Bertrand Piccard e André Borschberg, os pilotos que deram a volta ao mundo em 503 dias num avião que teve o sol como combustível. Essa aventura acabou no final de Julho e o próximo desafio já está marcado, para terra firme.
Os especialistas de aviação disseram-lhes que aquele avião, do tamanho de um Boeing 747 e com o peso de um carro, era “demasiado grande, demasiado leve e impossível de controlar num voo”. Agora, Bertrand Piccard e André Borschberg riem-se deles. Durante mais de um ano, os dois pilotos fizeram uma volta ao mundo inédita num avião movido a energia solar passando por quatro continentes. Somaram 43.041 horas de voo. A aventura tinha uma causa: promover o uso das energias renováveis com vista a um futuro limpo. Mas também quis servir de inspiração para quem sonha alto. O Solar Impulse 2 acabou esta aventura no final de Julho quando o avião aterrou na capital dos Emirados Árabes Unidos, em Abu Dhabi, de onde partiu em Março de 2015. E agora? O PÚBLICO falou com os dois pilotos sobre o que se passou no ar e o que querem fazer agora em terra firme.
“Estou aliviado, aliviado, feliz e um pouco nostálgico”, começa por referir Bertrand Piccard, o piloto suíço que cumpriu algumas das mais longas etapas da atribulada viagem do Solar Impulse 2 que acabou há cerca de 15 dias.
Quem acompanhou esta aventura já sabe que Bertrand Piccard é um bem-humorado aventureiro com uma determinação inquestionável. Nas várias entrevistas que deu e nas conversas que tinha com a equipa em terra enquanto atravessava países e oceanos, que foram transmitidas em directo no site do projecto Solar Impulse (onde todas as etapas e imagens da viagem podiam ser seguidas ao segundo), o piloto estava sempre bem-disposto sem sinais de cansaço. Enquanto sobrevoava o Atlântico, por exemplo, contava: “ As pessoas pensam que não se vê nada, mas vejo as ondas, os animais, as baleias, a luz, os reflexos. É muito bonito.” Nunca se aborreceu, confirma agora ao PÚBLICO. Pelo menos, nunca no ar, a voar. Os piores momentos deste ambicioso voo, confessa numa conversa ao telefone, foram “em terra, no chão, ou porque estávamos à espera do bom tempo, ou a resolver problemas técnicos ou a tratar de papéis e burocracias para autorizações de voo”.
“A última hora de voo”
E os melhores? “Um momento muito bom foi quando estava a voar sobre o Pacífico e pude falar por telefone satélite com Ban Ki-moon [secretário-geral das Nações Unidas]. Era o Dia da Terra, havia uma Assembleia Geral das Nações Unidas… foi um ponto alto para mim porque foi para isso que iniciei este projecto: para dar uma voz às tecnologias limpas. Fiquei muito contente. Outro grande momento foi quando sobrevoei a Ponte Golden Gate, em São Francisco (EUA); e também quando atravessei o Atlântico – foi a primeira vez que alguém conseguiu fazer isso num avião solar – ou a chegada a Abu Dhabi.”
Depois de uma pausa de segundos, Bertrand Piccard conclui que o melhor momento foi mesmo “a última hora de voo” quando cruzou a mesma linha da meta que André Borschberg tinha passado há mais de um ano. “Cruzei aquela linha e pensei: conseguimos! E depois ainda tive de esperar cerca de uma hora e meia para que o vento acalmasse e conseguisse aterrar. Foi fantástico. Tinha conseguido e ainda estava a viver aquela aventura. Aproveitei aquela hora de uma forma tremenda. Falei com toda a equipa, agradeci-lhes… Foi fantástico.”
André Borschberg não hesita: “De longe, o melhor momento para mim foi conseguir atravessar o Oceano Pacífico, que era o principal objectivo que tínhamos para demonstrar que é possível voar muitos dias e muitas noites, quase para sempre, com um avião movido pelo sol.” Depois de dois meses à espera da perfeita “janela de oportunidade” nas condições meteorológicas, foram quase 120 horas de voo para percorrer 8200 quilómetros, chegar ao Havai, e bater o recorde mundial do voo solitário mais longo de sempre. “Foi verdadeiramente o momento da verdade e que vou lembrar para o resto da minha vida”, diz André Borschberg.
No caso de Bertrand Piccard, a ambição pode ter também uma explicação genética. “Na minha família há várias grandes invenções”, confirma o médico de formação que faz parte de uma família com uma longa tradição de exploradores e cientistas. O seu avô, Auguste Piccard, inventou na década de 1940 o batíscafo, primeiro submersível do mundo, que em 1960 seria utilizado no primeiro mergulho ao local mais fundo dos oceanos, a Fossa das Marianas – a bordo ia o pai de Bertrand, o oceanógrafo Jacques Piccard, além do tenente norte-americano Don Walsh.
O avião Solar Impulse só tem lugar para uma pessoa, um piloto. Durante mais de um ano, Bertrand Piccard e André Borschberg foram alternando nos comandos do aparelho cumprindo diferentes etapas. Foram os primeiros no mundo a fazer a travessia de oceanos e mares num avião movido a energia solar.
Passaram dias e noites no pequeno habitáculo deste avião com a largura de um boeing 747 e que pesava 1,5 toneladas. Voaram a uma velocidade média de 50 quilómetros por hora, com baterias carregadas pela energia solar captada por 17 mil células fotovoltaicas instaladas nas suas asas. Durante o dia, o avião acumulava a energia do sol que lhe permitia voar à noite. Nunca usou um pingo de combustível. Bertrand Piccard disse uma vez que o Solar Impulse era “como uma pequena casa”. Os bancos eram reclináveis para que permitir as necessárias sestas de 20 minutos, nunca mais do que isso; por baixo dos bancos havia uma sanita, e a bordo foi também instalado equipamento para aquecer a comida, lavar os dentes e toalhetes húmidos para a higiene possível.
A bordo, Bertrand Piccard nunca se esqueceu da principal coordenada de todas as rotas e que repetia em todas as entrevistas e conversas: “Um futuro limpo.” Mas, concretamente, o que conseguiram nesse plano? “Conseguimos mostrar às pessoas que as tecnologias limpas podem atingir objectivos incríveis. Durante muito tempo, as tecnologias limpas eram apenas uma anedota, um pequeno nicho, para ecologistas. O que quis mostrar e que acho que as pessoas estão a começar a perceber é que estas tecnologias limpas são a solução para o futuro deste mundo.”
Bertrand Piccard faz o que diz. Fez com o projecto Solar Impulse e também faz em casa, com pequenos gestos como a opção por lâmpadas eficientes ou a colocação de painéis solares. É isso que recomenda a toda a gente: se a maioria das pessoas não pode entrar em altos voos como o que fez, pode, seguramente, fazer essas escolhas “limpas e inteligentes”. E assim, acredita o piloto, com muitos pequenos gestos se fará a mudança. Mas o piloto sabe que só isso não chega. E, por isso, já tem um plano para continuar a missão do Solar Impulse 2. Desta vez, em terra firme. “Quero criar um comité internacional para as energias limpas, já temos alguns apoios de empresas que também apoiaram o Solar Impulse. O objectivo é criar uma voz mundial que nos leve na direcção desse futuro.”
Já André Borschberg quando pensa no futuro pensa em novos voos. O engenheiro suíço já está, por exemplo, a preparar um dos próximos desafios que será conseguir que um avião igual ao que usaram agora seja colocado no ar sem nenhum piloto a bordo. “A ideia é que consiga chegar mais longe e consiga fazer o que um satélite faz. Julgo que dentro de três anos faremos isto”, diz.
Apesar de apoiar a causa que diz ser “a mensagem de Bertrand”, André Borschberg coloca este objectivo “mais prático” das energias limpas em segundo plano. “Para mim a questão mais importante é que temos de reduzir o consumo e o desperdício de energia. Sabia que uma grande percentagem do combustível que coloca no carro não é usada para a propulsão mas perde-se em calor, a aquecer o motor? Um desperdício. Temos de encontrar formas para resolver isto e temos as tecnologias para o fazer.”
Mas, como disse antes, se o piloto coloca estas questões ambientais em segundo plano, o que está em primeiro? “A inspiração.” O principal efeito que André Borschberg se congratula de ter provocado não está tanto no campo da defesa de tecnologias limpas ou do ambiente mas nas pessoas: “Gosto de pensar que este projecto inspira as pessoas que sonham em fazer algo e que as leve a tentar realizar esse projecto, que as faça acreditar que há sempre uma maneira e uma solução, que é só uma questão de mentalidade, mesmo que muita gente lhes diga que é impossível. Como nos disseram a nós. E nós provámos que o impossível é possível.”
Bertrand Piccard usa exactamente a mesma frase. Nisso estão totalmente de acordo. E noutras coisas também. Os dois lembram que o Solar Impulse não foi um ano e meio de trabalho. Foram quase 15 anos de muito esforço a trabalhar em equipa. “Ainda estou a aperceber-me realmente de tudo o que conseguimos fazer”, diz André Borschberg, que tem dedicado estes primeiros dias de regresso a casa a uma tarefa igualmente emocionante: matar saudades das duas netas. A saudade de casa, da família e dos amigos foi, diz o piloto, uma das partes difíceis da viagem.
“Há sempre medo”
Mas como é fácil de prever houve muitas outras no dia-a-dia. “Tivemos problemas técnicos. Alguns muito complicados mas que foi sempre possível resolver. Às vezes pensávamos que não íamos conseguir, mas depois encontrávamos uma forma de superar os problemas, uma solução. E isso também é muito gratificante. Aprendemos que os momentos difíceis são momentos muito interessantes, criam uma nova situação em que podemos encontrar novas formas de pensar, novas oportunidades. Aprendemos que os problemas são, sobretudo, novas oportunidades”, conta André Borschberg.
Alguma vez teve medo? “Há sempre medo. Quando estamos lá em cima, apesar do apoio da equipa em terra, estamos sempre de facto sozinhos. Temos decisões a tomar. Lembro-me, por exemplo, que quando estava a sobrevoar o Pacífico a equipa dos engenheiros disse-me que era melhor voltar para trás e interromper o voo. Decidi continuar. Sabia que conseguia lidar com as dificuldades que estava a ter com o sistema e que podia aproveitar as boas condições meteorológicas que finalmente tinha à minha frente.”
Para Bertrand Piccard também não foi fácil: “Ainda tenho de digerir tudo isto. Foi uma aventura muito difícil, muito mais difícil do que esperávamos, mais longa. Houve alturas em que pensámos que não íamos conseguir. E, por isso, estou mesmo muito aliviado por termos tido sucesso. É uma grande felicidade para toda a equipa.” E, eis que surge de novo a nostalgia: “Quando se vive com uma equipa durante 15 anos e, juntos, tentamos, esperamos e sonhamos… no fim há uma certa tristeza também porque chegou ao fim.”
A verdade é que ainda não chegou ao fim. Os dois pilotos suíços vão continuar a trabalhar juntos, no chão com o tal comité internacional, que Bertrand Piccard destacava, ou no ar com o Solar Impulse a voar sem pilotos a bordo, que André Borschberg projecta para dentro de pouco tempo. Além dos seus projectos, olham à volta e vêem hoje mais gente a acreditar nas mesmas soluções que eles sempre defenderam. Aplaudem, por exemplo, a NASA e a Airbus que anunciaram recentemente um investimento na construção de aviões eléctricos. Aliás, Bertrand Piccard lembra que a agência espacial norte-americana foi uma das entidades que duvidou do projecto Solar Impulse 2. “Há uns anos riram-se de nós e agora vão por este caminho”, diz o piloto. E é ele quem ri agora.
Além do sol, as críticas e as vozes de todos os que duvidaram deste projecto funcionaram como combustível. “Isto é o resultado de muito trabalho”, diz Bertrand Piccard, que conclui: “Se tenho um sonho, uma visão, e toda a gente me diz ‘isso é fácil’, isso significa que não estou a sonhar alto o suficiente. No fim, quando o conseguimos fazer, toda a gente muda de ideias e já diz que afinal é fácil de fazer. É um grande paradoxo. Essa é a vida dos pioneiros.”