Depois do fim do mundo, com Conan, o Rapaz do Futuro
Em 1983, a RTP exibia a primeira série realizada pelo mestre da animação japonesa, Hayao Miyazaki, narrativa pós-apocalíptica em que a salvação do mundo está nas mãos de três crianças.
Eram manhãs de sábado estranhas, aquelas de 1983. O mundo, como o conhecêramos, tinha acabado, e nós, crianças a rondar os oito, dez, 12 anos, éramos expostos, de forma crua, aos efeitos da capacidade destruidora do homem, mas também às possibilidades de redenção colocadas nas mãos de um miúdo da nossa idade – detentor de uma força e de uma inteligência que nenhum de nós possuía – e da sua amiga que comunicava com os pássaros, tornados, naquele planeta pós-apocalíptico e tecnologicamente debilitado, num meio para levar a mensagem a grandes distâncias.
Ele, Conan, e ela, Lana, tornaram-se heróis para uma vida. Qualquer criança que tenha visto estas criações do japonês Hayao Miyazaki fixou, para sempre, os seus nomes. E qualquer adulto que tenha tido a oportunidade de ver ou rever os 26 episódios de Conan, O Rapaz do Futuro, seminal série do fundador de uma das melhores oficinas de animação do mundo, os Estúdios Ghibli, percebeu que este não é um daqueles produtos televisivos de que gostámos por não haver mais nada para ver nesses anos sem televisão por cabo, em que a oferta de programação infantil se cingia a algumas horas semanais nos dois canais da RTP. Não, aquilo era, de facto, muito bom.
Em plena Guerra Fria, com os adultos suspensos pelo receio de um terceiro conflito mundial, Miyazaki inspirou-se – de forma genial para uma série infantil de 1978 – na insípida novela de ficção científica The Incredible Tide, de 1970, na qual Alexander Key descrevia o mundo, ou o que sobrava dele após um devastador conflito entre o Leste e o Oeste que mexera com o campo magnético terrestre, levando ao afundamento dos continentes após intensos ataques aéreos por bombardeiros futuristas. Conan, Lana e o inseparável bom selvagem, e glutão, Jimsy (crianças nascidas já após o apocalipse de Julho de 2008) eram, com outros humanos, os sobreviventes, espalhados por algumas ilhotas, únicos espaços habitáveis numa Terra irreconhecível.
Conan chegou a Portugal cinco anos depois de ter sido exibido no Japão e em muitos outros países. Com este atraso, restavam-nos 25 anos para esse momento definidor (ainda por cima lembrado a cada episódio, em voz off, num prólogo de uma dureza extrema) em que seríamos chamados a escolher entre o bem e o mal. Sim, com os homens, o bem e o mal sobreviveriam. E enquanto uns tentavam reconstruir, simplesmente, as suas vidas, retomando o contacto possível com a natureza em recuperação, outros, os da New Order (que tinha tanto de novo como de velho), procuravam, numa cidade simbolicamente chamada Indústria, capturar o avô de Lana, o único cientista capaz de retomar a produção de energia solar, que, mais do que constituir um bem essencial para a salvação da humanidade, permitia alimentar as máquinas voadoras usadas no conflito, e, com isso, perpetuar o seu poder.
Em 2008 o mundo não acabou. Pelo contrário, em Julho, data marcada para aquele apocalipse, nasceu a minha primeira filha, com quem mais tarde, tinha ela uns seis anos, revi, em três dias, aqueles 26 episódios que 30 anos antes me obrigavam a ansiosas esperas semanais. Vi-a chorar quando Conan perde o avô, às mãos de Indústria, logo no segundo episódio. E percebi quão pouco condescendente Miyazaki era – e tem sido – com o público infantil para o qual trabalha, como se percebe em toda a sua filmografia posterior. A Viagem de Chihiro, de 2001, Óscar para melhor animação em Hollywood e Urso de Ouro no Festival de Cinema de Berlim no ano seguinte, ou outros títulos disponíveis no videoclube dos operadores por cabo, são bons exemplos de um trabalho que não esconde do seu público a complexidade do mundo. E no entanto, como se viu naquela série de 1978, as façanhas quase sobre-humanas do rapaz, a amizade incondicional daquelas personagens e o empenho que colocam na salvação do planeta prendiam, como prendem, as crianças. Tanto quanto os contos de fada da Disney.
Em Conan, o Rapaz do Futuro, não há príncipes nem princesas, em vez de castelos há velhos amontados de ferro retorcido, mas não deixa de haver esperança num final feliz. E os ogres somos nós mesmos, humanos destinados a catar plástico, para o voltar a transformar em combustível, ou a perceber, como acontecera naqueles anos 70 das primeiras grandes conferências internacionais sobre o ambiente e dos choques petrolíferos, a finitude dos recursos. A importância da ecologia, e da nossa ligação ancestral à natureza, para a salvação do planeta é uma lição que Hayao Miyazaki (muito influenciado, culturalmente, pelo xintoísmo) e vários dos realizadores dos Estúdios Ghibli não se têm cansado de apregoar, em filmes de animação tão singelos como O Meu Vizinho Totoro ou em obras mais intensas como Nausicaa do Vale do Vento, O Castelo Andante, Contos de Terramar (este do filho, Goro Miyazaki) ou Pom Poko, entre outros.
Em 1978, Miyazaki e a equipa com que criou em Miro shonan Conan, produzida durante a sua passagem pela empresa Nippon Animation, não eram nada inexperientes. Isao Takahata, outro dos futuros pilares dos Estúdios Ghibli, realizara já Heidi (com cenários desenhados pelo mestre) e o inesquecível Marco – Dos Apeninos aos Andes. Mas foi com Conan e Lana – cujos traços reaparecem no primeiro filme do seu próprio estúdio, o belíssimo O Castelo no Céu, de 1986 – que se condensaram no estirador muitas das fixações futuras de um criador que nos deu alguns dos mais belos filmes produzidos desde então, e cuja carreira, disse-nos, terminou em 2015.
Se não se arrepender e voltar atrás – como já aconteceu antes –, Miyazaki fechou o livro com Nas Asas do Vento, uma obra polémica sobre o japonês Jiro Horikoshi, que na Segunda Guerra Mundial criou o mítico caça Mitsubishi Zero. Aí retomava outra das paixões que vinha explorando desde 1978: as máquinas voadoras, que nos seus filmes surgem com uma aura destrutiva só ultrapassável pelo poder redentor do amor. Esse que, em Conan, o Rapaz do Futuro, já nos tinha salvado para o final feliz que todas as crianças, e o planeta, merecem.
Esta série é publicada à segunda e à terça-feira. Na próxima semana: Marés Vivas