Onde estão afinal os profissionais de Saúde a mais no SNS?

Obrigatório seria que os responsáveis políticos fizessem um esforço para entender o que está a acontecer na Saúde.

Como dirigente da Ordem dos Médicos confesso que ainda não tive oportunidade de constatar um único hospital ou centro de saúde em que possa afirmar que existem médicos ou enfermeiros em excesso, já para não falar de assistentes técnicos, operacionais e administrativos.

Por outro lado, são também em número significativo as queixas que vão sendo conhecidas, dando conta da falta ou da qualidade de equipamentos, dispositivos ou materiais clínicos que, em muitos casos, têm o seu prazo de validade ou funcionalidade ultrapassados.

Numa análise rápida dos dados publicados pela Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS) verifica-se que trabalham no Serviço Nacional de Saúde (SNS) cerca de 27 mil médicos, dos quais perto de 9000 são internos em formação e, por isso, com limitações em termos de autonomia para o exercício da profissão, e com exigência acrescida de acompanhamento formativo por parte dos especialistas. Isto significa que, apesar da média nacional de 4.3 médicos por mil habitantes (OCDE), na verdade o SNS tem apenas cerca de 2.6 médicos por mil habitantes, incluindo os internos em formação. Número que nos colocaria na cauda do ranking da OCDE. Ou seja, temos médicos a mais em Portugal mas faltam médicos no serviço público de Saúde.

E os casos de falta de médicos especialistas no SNS são conhecidos. E não é de agora. Basta pensar, por exemplo, no Algarve, na Madeira, ou em Vila Real. Ou em especialidades como anestesiologia, ortopedia, radiologia, medicina interna ou medicina geral e familiar. De resto, são conhecidos múltiplos casos de cirurgias adiadas ou reprogramadas por falta de médicos, falta de camas ou falta de condições que assegurem um pós-operatório adequado. O que, associado a uma pressão sem limites para garantir números e serviços básicos como o serviço de urgência, contribui para criar um fluxo anormal de médicos para os grandes centros hospitalares e para o sector privado. Muitos médicos não conseguem suportar as exigências excessivas das administrações, que não respeitam a sua dignidade e os seus direitos. Os descansos compensatórios com prejuízo de horário ou o número exagerado de horas consecutivas de trabalho ou o número excessivo de horas extraordinárias, são apenas alguns exemplos de incumprimentos e imposições do poder tutelar.

Se um dia os médicos tomassem a decisão de apenas cumprir a legislação e os seus deveres como funcionários públicos, o SNS entraria em colapso. E esse dia ainda não aconteceu, porque a ética e deontologia da nossa profissão nos ensinam a colocar os doentes em primeiro lugar. Mesmo correndo o perigo de diminuir a segurança e aumentar o risco. E assumir as respectivas consequências. Uma causa maior, que tem mantido a fachada de um SNS que neste momento está doente e necessita com urgência de ser tratado. E o tempo continua a correr. As pessoas estão cada vez mais insatisfeitas e menos motivadas. E muitas, como têm revelado vários estudos e nomeadamente sobre burnout, sofrem as consequências directas de uma incongruência política que não conhece barreiras nem respeita as pessoas. A falta de organização e planeamento, tantas vezes lembrada, continua a ser a regra. A depressão, a exaustão, o desinteresse, a fuga do sector público para o sector privado, a emigração, a reforma antecipada, continuam a prevalecer.

A insuficiência de capital humano no SNS e, em muitos casos, as deficientes condições de trabalho são uma realidade incontornável. Uma realidade que limita a qualidade dos cuidados de saúde e condiciona a formação pós-graduada. E afecta a relação médico-doente.

Foi por isso com alguma preocupação e surpresa que tive conhecimento através da comunicação social que o recém-criado Grupo de Acompanhamento dos Hospitais vai monitorizar as unidades do SNS e identificar aquelas que têm médicos e enfermeiros a mais, além de outros profissionais de Saúde, de modo a potenciar a sua mobilização para outras unidades de saúde. O mesmo relativamente aos equipamentos.

Se no entender da ACSS existem unidades hospitalares com profissionais de saúde a mais é necessário identificá-los e com carácter de urgência. Existem? Não esquecendo que a prioridade é identificar, solucionar e, no entretanto, assumir a total responsabilidade pelo funcionamento das unidades hospitalares que têm profissionais de saúde a menos. Já estamos cansados das lamentações de quem tem o poder de decisão e pouco ou nada faz. Começa a ser o momento de os responsáveis políticos assumirem os erros em saúde nas unidades hospitalares com insuficiências conhecidas.

A mobilidade parcial dos profissionais de Saúde até poderia ser uma solução parcial transitória em algumas situações pontuais. Mas tal só seria possível se os médicos e os enfermeiros não estivessem a trabalhar em sobrecarga profissional, emocional e afectiva. Todos os estudos universitários sobre as pessoas e condições de trabalho no SNS, realizados nos últimos anos, apontam no mesmo sentido. Um sentido negativo, com consequências nefastas para os profissionais e para os doentes, e cada vez mais evidentes.

Obrigatório seria que os responsáveis políticos fizessem um esforço para entender o que está a acontecer na Saúde. O que leva milhares de médicos e enfermeiros a emigrarem? O que leva outros tantos a optarem pela reforma antecipada? O que leva muitos mais a optarem apenas por trabalhar no sector privado? E então encontrar soluções que estimulem os profissionais de saúde necessários a optarem pelo sector público. Sem devaneios. Com coragem e competência. Assumir de uma vez por todas aquilo que já sabemos. E resolver os problemas, em vez de os empurrar para a frente. E não deixar o tempo passar. A começar pelas zonas mais carenciadas.

Relativamente aos equipamentos, a história é semelhante e merece uma análise detalhada posterior. Caso a caso. A começar pelos “grandes” equipamentos. E pelos milhares de exames auxiliares de diagnóstico realizados, por necessidade, para o sector público fora do SNS. E, tal como no capital humano, fica por agora a questão, onde estão afinal os equipamentos de Saúde a mais no SNS?

Presidente do Conselho Regional do Norte da Ordem dos Médicos

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