O jornalismo, as touradas e a "liberdade cultural"
Além da parte económica, conseguida à custa da tortura animal, não se vislumbra nas touradas um simples resquício de um valor cultural aceitável, digno desse nome.
“Pelo bom jornalismo e pela liberdade cultural”: este é o título de um artigo do Dr. Luis Capucha, publicado no PÚBLICO, na sua edição de 01.08.16, onde põe em causa um Editorial do mesmo jornal que emitia a sua posição relativamente à rejeição da Assembleia da República de uma série de projectos de Lei do PAN sobre os animais e os efeitos da tauromaquia.
Luís Capucha critica referido Editorial quando afirma: “quando um pouco por toda a parte tendências de comportamento e movimentos cívicos evidenciam uma crescente sensibilização aos direitos dos animais, a Assembleia da República mostra quanto está distante dessas preocupações e desses avanços civilizacionais”.
Além da proibição de menores de assistir a touradas, o Partido Pessoas-Animais-Natureza (PAN) também pretendia acabar com a transmissão de espectáculos tauromáquicos na RTP. Recorde-se que o PAN, no desejo de proibição de menores a assistir a touradas, apoia-se em pareceres e posições de entidades ligadas às crianças e aos jovens, como, por exemplo, a Comissão Nacional de Protecção de Crianças e Jovens em Risco. Pretendia ainda ver proibida a utilização do dinheiro público para financiamento, directo ou indirecto, de actividades tauromáquicas.
Já aqui, em artigo do PÚBLICO, de 29.08.15 (com resposta do Dr. Luís Capucha) me debrucei sobre o entendimento cristão sobre as touradas, considerando-as susceptíveis de estimular os maus instintos, sendo que o Papa Pio V chegou mesmo, pela constituição “De Salute”, de 1.11.1557, a lançar a excomunhão sobre os intervenientes e assistentes.
Mas, para além desse entendimento cristão, o mesmo aconteceu no plano civil. Com efeito, no tempo de D. Maria I, deixara de se matar o touro na arena. E, em 19 de Setembro de 1836, Passos Manuel, no reinado de D. Maria II, publicou um decreto a proibir as corridas de touros em todo o reino, considerando que “eram um divertimento bárbaro e impróprio de nações civilizadas e bem assim, que semelhantes espectáculos serviam unicamente para habituar os homens ao crime e à ferocidade”.
Os princípios filosóficos dos autores modernos caminham na mesma direcção. A título de exemplo, recorde-se que Peter Singer, aliás na esteira de outros filósofos, afirmam que “a dor e o sofrimento são maus e devem ser evitados ou minimizados, independentemente da raça, sexo ou espécie do ser que os sofram”, reprovando tudo o que signifique menos humanidade no trato dos animais. (cf. Ética Prática, pág. 81 – Gradiva). Vale a pena ler, com muita atenção, este livro, onde o autor pergunta (e responde) se teremos o direito de fazer sofrer os animais só para satisfazer o nosso prazer”. Este é um dos pontos de reflexão fundamental que Peter Singer apresenta para todos os que se preocupam com os grandes problemas éticos do nosso tempo. E quando se fala em os maus tratos aos animais, logo vem à mente as touradas.
Como muito bem se diz no referido Editorial: “tendências de comportamento e movimentos cívicos evidenciam uma crescente sensibilização aos direitos dos animais”. Mas, como se vê, esses movimentos vão de encontra a um pensamento cristão e a uma tendência já esboçada no tempo das rainhas D. Maria I e II.
O Parlamento Europeu tem sido sensível a estes ensinamentos ao aprovar uma proposta a impedir a utilização de fundos europeus para financiar touradas. Trata-se de uma excelente medida, que, por ir ao encontro da vontade de uma larga maioria dos cidadãos europeus e portugueses, deve merecer uma atenção muito especial do governo e das autarquias, já que é inaceitável que fundos europeus sejam utilizados para financiar, directa ou indirectamente, uma actividade que explora o sofrimento animal para entretenimento.
Do exposto, é de concluir que o Editorial, criticado pelo Dr. Luís Capucha, vai na linha de um mundo livre de crueldade e violência gratuita contra animais indefesos, por maldade ou apenas para divertir. Afinal que tipo de cultura pretende o Dr. Luis Capucha quando se refere aos “valores inscritos na cultura tauromáquica e que integram a sua identidade cultural”? É que, para além da parte económica, conseguida à custa da tortura animal, não se vislumbra um simples resquício de um valor cultural aceitável, digno desse nome. Afinal o que pretende o Dr. Luis Capucha, ao criticar a linha editorial do PÚBLICO?
Juiz desembargador jubilado