O elefante no corredor

A história real do psicólogo que viu a banalidade do mal no interior de cada um de nós, filmada com sagacidade por um veterano do indie americano: Experimenter.

Foto
Um dos melhores actores americanos contemporâneos, Peter Sarsgaard

Às tantas, em Experimenter, aparece um elefante no meio dos corredores de Yale, a seguir o psicólogo experimental Stanley Milgram enquanto este se dirige ao espectador a explicar o que está a fazer e porquê. O elefante é evidentemente simbólico, mas é também significativo; representa o “buraco negro” no centro da sociedade moderna para o qual Milgram olhou no início da década de 1960, e também o modo como o resultado desse olhar se enraizou na cultura popular. Ao ponto de mesmo aqueles que nada seguem das ciências sociais já terem ouvido falar das experiências de “obediência à autoridade” que o psicólogo realizou em Yale (sobre as quais Peter Gabriel chegou a escrever uma canção – We do what we’re told, que encerra o seu campeão de vendas So).

Um “professor” castiga um “aluno” com um choque eléctrico que vai aumentando de intensidade com cada resposta errada até atingir 450 volts; o protocolo experimental pretendia ver até onde o “professor” estaria disposto a ir, mais de metade das cobaias levaram a experiência até ao fim. Na leitura que Michael Almereyda faz da vida de Milgram em Experimenter, a experiência corresponde a esse “elefante”, ao tornar visível a capacidade do ser humano racionalizar a mais terrível das acções, inspirada directamente pelos questionamentos morais do Holocausto e pela noção da “banalidade do mal” que Hannah Arendt cristalizara. Mas a experiência é também um “albatroz” à volta do seu pescoço; porque todo o percurso profissional de Milgram, que se prolongou por mais 20 anos após a experiência de Yale, nunca conseguiu sair da sombra desse momento, e das dúvidas lançadas sobre os seus métodos, acusados por uns de pouco éticos mas que o cientista defendeu como a única maneira de “perfurar” o verniz.

É por abraçar abertamente o artificialismo e a manipulação que Almereyda, um dos poucos independentes americanos revelados na década de 1990 a ter escapado à assimilação do género por Hollywood, ganha Experimenter. O cineasta vira a seu favor a evidência do baixo orçamento e a rodagem quase só em interiores (recorrendo pontualmente a projecções), ao filmar tudo com uma precisão clínica, um artificialismo deliberado, distanciado, estilizado, como se estivéssemos dentro da experiência de Milgram. O psicólogo, interpretado com uma entrega igualmente precisa e atenta por um dos melhores actores americanos contemporâneos, Peter Sarsgaard, usava a ilusão das aparências como chave para abrir a porta do humano; Almereyda faz exactamente o mesmo, numa linhagem onde podemos reconhecer pontos comuns com a Conversa Acabada de João Botelho ou o Europa de Lars von Trier. Uma das melhores surpresas deste verão parco em grandes filmes.

Sugerir correcção
Comentar