Pôr termo de vez à incúria

Não basta gesticular e apregoar que é preciso transparência e energia no combate à corrupção e, depois, ficar tudo na mesma.

A detenção, no âmbito da designada “Operação Cavaleiro”, do diretor do Museu da Presidência da República prendeu-se com o facto de estarem em causa indícios da prática de crimes de tráfico de influências, peculato e participação económica em negócio, crimes conhecidos, na gíria, por “crimes de colarinho branco”.

Tais crimes são geralmente cometidos por ilustres cidadãos acima de qualquer suspeita, cidadãos esses que se encontram, por norma, dentro ou muito próximos de instituições suscetíveis de despertar ou de alimentar a sua avidez, permitindo-se fazer negócios ou usar da sua nefasta influência para obterem favores e dinheiro, tudo no maior dos desrespeitos e no total desprezo pela administração pública, ou seja, por todos nós.

Um breve perfil mostra-nos que esses indivíduos costumam ser em geral displicentes e inábeis no desempenho dos seus cargos e, quando bem observados à lupa, adoram mostrar que são muito lidos e cultos, e na presença do chefe ou de quem neles manda, transformam-se, como que por encanto, em dóceis funcionários atentos, veneradores e obrigados nas coisas mais fúteis e inimagináveis. Esta mistura de erudição barata com salamaleques servis nunca deu bons resultados, sobretudo para o património público.

Para além disso, há ainda as rivalidades entre instituições, o que não é nada despiciendo. O cargo de diretor do Museu da Presidência da República nasceu e medrou no ambiente de desconfiança e ciúme que sempre existiu entre membros do governo e membros da presidência. Essa desconfiança gerou um Museu da Presidência autónomo da rede portuguesa de museus, com uma política museológica independente em que tudo é diferente. A título de exemplo serve a desafetação de um objeto de arte do Museu da Presidência, a qual depende apenas da vontade do seu diretor/coordenador e da autorização do Chefe da Casa Civil. Em qualquer outro museu, a regra é muito mais apertada, pois depende do ministro da Cultura, depois de ouvido o Conselho de Museus (órgão que superintende a atividade dos ditos). Isto, claro, pressupõe património móvel inventariado e não por inventariar, que é muito, o qual se encontra em terra de ninguém e que, portanto, se encontra à mão de semear!

Gerir um museu (ou uma biblioteca) é gerir acervos que representam a história de um país, o que, desde logo, implica zelar pela legitimidade da propriedade desses mesmos acervos e pela sua perenidade.

Todos aqueles que, de forma direta ou indireta, trabalham em museus encontram-se naturalmente vinculados pelo cumprimento das normas do Código Deontológico para Museus, regras de conduta criadas com o objetivo de melhorar as práticas profissionais. Assim, os funcionários “não devem aceitar presentes, favores, empréstimos ou outros benefícios pessoais que possam ser oferecidos devido às funções que desempenham”. Se, ocasionalmente, ocorrer a doação e o recebimento de presentes por cortesia profissional, tal deverá ser feito sempre em nome da instituição envolvida, não sendo nenhum funcionário autorizado a adquirir objetos provenientes de alienação de um acervo do museu nem a utilizar objetos da coleção para qualquer forma de uso pessoal, mesmo que temporariamente. Igual interdição abrange, está bem de ver, os familiares ou pessoas próximas dos funcionários dos museus.

A mudança não passa apenas pelo cuidado na escolha das pessoas. Mudança é estabelecer um modelo para a transparência da vida pública, onde todos os titulares de cargos políticos ou equiparados (parlamentares nacionais e europeus, membros do governo, dos órgãos consultivos constitucionais, das autoridades administrativas, câmaras municipais, titulares de cargos por nomeação governativa ou municipal, gestores públicos, etc.) deverão entregar uma declaração de bens e de interesses na hora da sua nomeação ou contratação. Preconizo, por conseguinte, um inventário completo do património ao nível da esfera privada. A descrição terá de ser minuciosa, indicando a data, o preço de compra e o valor atual das propriedades, valores mobiliários (ações, obrigações, fundos de investimento), seguros de vida, contas bancárias e outros meios de riqueza, tais como automóveis, barcos, objetos de arte etc., etc.

Esse inventário completo deverá ser público, de fácil acesso a quem o quiser consultar, e estar disponível na página da Procuradoria-Geral da República. Aquele que se “esquecer” de declarar uma parte do património, omitir bens existentes no exterior ou tenha indicado valores falsos de aquisição ou de valorização, sujeitar-se-ia a uma multa e, acessoriamente, à proibição do exercício de funções públicas. Modelos do que acabo de referir não faltam por aí, pelo que, desde já, me permito sugerir uma consulta recreativa às respectivas páginas dos governos da Alemanha e da França, com relevância, neste país, para o que nos ensinam os casos Cahuzac, Morelle, Thévenoud, Benguigui, enfim, tudo gente que vai dos negócios à cultura…

Não basta gesticular e apregoar que é preciso transparência e energia no combate à corrupção e, depois, ficar tudo na mesma. O que se passou no Museu da Presidência da República não é mais do que a confirmação da incúria que há muito grassa pelas nossas instituições públicas e a que é preciso pôr termo urgentemente e de vez.

Advogado, sócio-partner da Dantas Rodrigues & Associados

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