Inconstitucionalidades da Resolução n. 8/2011 (AO90)

Mesmo que a RCM n.º 8/2011 tivesse sido um regulamento executivo ou dependente, teria de ter sido precedida duma lei prévia (em sentido formal), não de um Tratado internacional.

Resolução do Conselho de Ministros n.º 8/2011 (= RCM) mandou “aplicar” o “Acordo Ortográfico” de 1990 (= AO90) a quase toda a Administração Pública (directa, indirecta e autónoma), às publicações no Diário da República, antecipando o final do “prazo de transição” em 4 anos e 9 meses; bem como ao e a todo o sistema de ensino (público, particular e cooperativo).

A RCM aludida tem a natureza jurídica de um regulamento administrativo, uma vez que dos números 1, 2, 3, 4 e 6 da RCM resultam normas gerais e abstractas, dotadas de operatividade imediata, visando produzir efeitos externos [1].

No entanto, tal regulamento padece de inconstitucionalidades e ilegalidades totais [2] evidentes, que geram o desvalor da nulidade, o que se passa a demonstrar (não abordaremos neste artigo de síntese as inconstitucionalidades parciais, de cada uma das normas da RCM).

1. Inconstitucionalidade Total Formal e Orgânica, decorrente de Preterição de Indicação da Correcta Lei Habilitante

Não se afigura possível que um regulamento, como a RCM n.º 8/2011 tenha como fonte habilitante um Tratado internacional (designadamente, o AO90).

Nesse sentido depõe claramente o princípio da precedência de lei perante os regulamentos, plasmado no segmento constante do art. 112.º, n.º 7, 1.ª parte, da CRP: “os regulamentos devem indicar expressamente as leis que visam regulamentar”.

Assim, mesmo que a RCM n.º 8/2011 tivesse sido um regulamento executivo ou dependente, teria de ter sido precedida duma lei prévia (em sentido formal), não de um Tratado internacional.

Por outro lado, refira-se que, mesmo o sector minoritário da doutrina, que admitia poder um regulamento ter como base habilitante um Tratado internacional, sempre exceptuava, com ressalva expressa, os casos em que houvesse reserva de competência legislativa da Assembleia da República.

2. Inconstitucionalidade Total Orgânica e Formal, decorrente de a RCM n.º 8/2011 não citar nem se basear em nenhuma Lei Habilitante Prévia, que tenha fixado a Competência Objectiva e Subjectiva para a respectiva Emissão

Ainda que se entendesse o contrário, nem o Tratado do AO90, nem o 2.º Protocolo Modificativo, nem tão-pouco o Decreto Presidencial de ratificação n.º 52/2008 definiram a “competência objectiva” (a matéria) e “subjectiva” (órgão competente) para a emissão de um regulamento independente, conforme expressamente exigido pelo art. 112.º, n.º 7, 2.ª parte, da Constituição da República Portuguesa (= CRP).

O art. 136.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo (= CPA) de 2015 preceitua que “A emissão de regulamentos depende sempre de lei habilitante” (já neste sentido, o art. 29.º, n.º 1, do CPA de 1991).

Noutra linha de raciocínio, a RCM n.º 8/2011 nunca poderia ter sido um regulamento independente, uma vez que tal diploma não pode ter directamente como base habilitante o art. 199.º, al. g), da Constituição. Consequentemente, esta pretensa norma habilitante foi ali invocada sem qualquer fundamento.

3. Inconstitucionalidade Total por Violação do Princípio da Precedência de Lei

Um regulamento independente não pode ter como base habilitante uma norma da Constituição, tendo de ser precedido por lei em sentido formal que regule primariamente a matéria (assim já era entendido nos trabalhos preparatórios da Revisão Constitucional de 1982, no então art. 115.º da CRP; na doutrina dominante).

Se dúvidas houvesse, o art. 199.º, que é invocado como base habilitante da RCM, é dedicado à “Competência administrativa” (sic) do Governo.

Recentemente, também o art. 136.º, n.º 2, 2.ª parte, do CPA de 2015 veio afastar, praticamente por completo, a tese minoritária, segundo a qual certos regulamentos administrativos independentes poderiam ser fundados na al. g) do art. 199.º da CRP, estabelecendo que, no caso de regulamentos independentes, devem ser indicadas “as leis que definem a competência subjectiva e objectiva para a sua emissão”.

De resto, a doutrina tem expressamente advertido que, sempre que a Constituição consagra, para certas matérias, uma reserva de lei – e, ademais, reserva de competência da AR -, o art. 199.º, al. g), da CRP, não pode nunca aplicar-se directamente.

4. Inconstitucionalidade Total Formal devido a não assumir a forma de Decreto Regulamentar

Nos termos do art. 112.º, n.º 6, 2.ª parte, da CRP, os regulamentos independentes têm obrigatoriamente de ser aprovados por “decreto regulamentar”, devido a várias razões garantísticas de regime, pelo que a RCM n.º 8/2011 se encontra inquinada de inconstitucionalidade formal.

5. Inconstitucionalidade e Ilegalidade Total por Violação do Princípio da Participação dos Interessados na Gestão Efectiva da Administração Pública

A RCM impôs deveres e sujeições (cf. art. 117.º, n.º 1, do CPA de 1991), através deste normativo regulamentar injuntivo e restritivo de direitos legalmente protegidos. Fê-lo sem ouvir os cidadãos, assim violando o direito destes de participação dos cidadãos nos assuntos públicos do país, previsto no art. 48.º, n.º 1, e reforçado pelo art. 267.º, n.os 1 e 5, da CRP; bem como as regras da fase de participação dos interessados, reguladas nos arts. 117.º ou 118.º do CPA de 1991, que deveriam ter sido cumpridas, assegurando-se a audiência dos interessados ou, em alternativa, uma consulta pública.

6. Ilegalidade Total por Preterição de Formalidade Essencial, por Falta de Consulta da Academia das Ciências de Lisboa

Finalmente, regista-se ilegalidade total da RCM n.º 8/2011, geradora de vício de forma, uma vez que foi aprovada sem consulta, prévia e obrigatória, da Academia das Ciências de Lisboa pelo Governo, em violação do art. 5.º dos Estatutos da Academia das Ciências de Lisboa, aprovados pelo Decreto-Lei n.º 5/78, de 12 de Janeiro, a que o Estado Português se auto-vinculara.

7. A nulidade é o desvalor típico associado aos vícios das normas regulamentares.

8. Espera-se que os tribunais sejam céleres na apreciação de acções judiciais intentadas, de modo a evitar a continuação da prática de factos consumados gravemente inconstitucionais.

Nota - Adira ao Grupo do Facebook Cidadãos contra o “Acordo Ortográfico” de 1990

(https://www.facebook.com/groups/acordoortograficocidadaoscontraao90/)

 

[1] Cfr. a norma definitória posterior, constante do art. 135.º do Código do Procedimento Administrativo, que se presta a críticas, pois confunde o acto jurídico-público com as normas que são extraídas dos preceitos naquele incluídos.

[2] A inconstitucionalidade total do acto jurídico-público (ou diploma) – neste caso, as quatro inconstitucionalidades totais invocadas – afecta-o em toda a sua extensão (neste sentido, Carlos Blanco de Morais, Justiça Constitucional, Tomo I, Garantia da Constituição e controlo da constitucionalidade, I, 2.ª ed., Coimbra, 2006, pg. 160; cf. Idem, Direito Constitucional. Sumários desenvolvidos, 2.ª ed., AAFDL, Lisboa, 2012, pg. 70).

Isto significa que “toda a vigência do acto” é atingida (neste preciso sentido, PAULO OTERO, Direito Constitucional Português, volume II, Almedina, Coimbra, 2010, 20.2.1.a), IV, pg. 435; também JORGE BACELAR GOUVEIA, Manual de Direito Constitucional, Introdução, Parte Geral, Parte Especial, volume II, 4.ª ed., Almedina, Coimbra, 2013, n.º 246.IV, pg. 128).

Deste modo, o desvalor jurídico associado à inconstitucionalidade necessariamente total é o da nulidade total (ainda que “sui generis” ou atípica, uma vez que não corresponde à configuração da nulidade do art. 286.º do Código Civil, como forma de invalidade que não produz efeitos), determinando a completa destruição do acto sujeito a fiscalização (cf. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Almedina, Coimbra, 2003, pg. 959).

 

ACTUALIZAÇÃO: Por lapso de edição, a que os autores são alheios, não tinha sido colocada online a versão integral do texto, com notas. Aqui fica, a 1/8/2016

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