É o padre mais velho de Lisboa e pelas suas memórias vai a história de uma cidade

Bernardo Xavier Félix nasceu numa pequena freguesia no distrito de Viseu mas cedo rumou à capital. Hoje, com 92 anos, celebra ainda as missas no Cais do Sodré, onde é testemunha das imensas transformações de um bairro onde a noite passou a ter mais vida que o dia.

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O padre Xavier nasceu numa pequena freguesia do distrito de Viseu mas cedo rumou a Lisboa Nuno Ferreira Santos

Na estação da Cruz Quebrada, o relógio marca as 7h44 e o comboio passa em direcção ao Cais do Sodré, em Lisboa. Todos os dias, à mesma hora, o padre Bernardo Xavier Félix apanha transporte para às 8h30 celebrar a primeira missa do dia. É assim já há 38 anos, desde que chegou à igreja de São Paulo, no Cais do Sodré. Mas tudo começou há 92 anos em Ferreirim de Sernancelhe, no distrito de Viseu, terra natal de Xavier Félix. Quase um século de histórias para contar, a maioria de Lisboa, a cidade que tanto viu transformar-se

Nasceu no seio de uma família cristã, onde já existiam sacerdotes. “Aos seis anos, já ensinava aos meus colegas o Pai Nosso e a Avé Maria”, conta. Com essa tenra idade, é crismado. Tão cedo? “Na altura, os bispos só iam às aldeias muito esporadicamente”, recorda, e tinha de se aproveitar muito bem essas visitas. A partir daí, o caminho estava traçado e aos 13 anos chegou ao seminário de Resende, em Lamego. Três anos depois, pediu transferência para Almada e depois para os Olivais, em Lisboa, para ficar mais perto da sua mãe. “A minha mãe ficou viúva muito cedo, o meu pai teve uma tuberculose e morreu quando eu tinha quatro anos”, relembra.

A chegada à grande cidade não o assustou: “A gente adapta-se a tudo”. Assim que terminou o seminário teve a sua primeira experiência como padre em Alfama, embora esta fosse ainda só uma tarefa de férias. “Era uma paróquia muito familiar. Não tinha avalanches de estrangeiros como agora. Havia muita gente, mas na altura era o normal das paróquias. Depois fui para São Pedro da Cadeira.” Nesta freguesia rural de Torres Vedras mantiveram-se as “avalanches” nas missas, mas a vida já era mais dura. Deslocava-se entre as paróquias de burro e muitas vezes em jejum. Chegou a contestar as condições a que estava votado no Badaladas, o jornal da região. “Depois lá me favoreceram. Foram surgindo umas estradas, depois veio a lambreta, até ter carro.”

Foi nesta altura que fundou o grupo de escuteiros de Torres Vedras e conheceu D. Manuel Clemente, que dava os seus primeiros passos na Igreja. Ainda se lembra das sessões de cinema alimentadas com as bobines que ia buscar a Lisboa, entre as quais o êxito da época: Ben Hur. Em 1970, é transferido para Algés, onde vive uns tempos tumultuosos mas intensos: A revolução de Abril. Era impossível não se envolver: “Falava com todos, até me chegaram a chamar 'o camarada', e em Algés moravam muitos dos militares que estavam em Miraflores, com os quais sempre convivi”. Mas houve momentos tensos, em que teve de apelar à diplomacia, promovendo o díálogo entre as diferentes partes, como a tentativa de ocupação da igreja. O bom senso prevaleceu e Xavier Félix continuou o seu percurso nestes tempos do PREC, sendo o primeiro padre a trabalhar com o grupo Shalom (Movimento de Encontros de Jovens) que tinha surgido em Angola e chegou depois a Portugal.

Em 1978, muda de novo de paróquia e chega a São Paulo, no Cais do Sodré. Relembra a igreja cheia desses anos mas, a certa altura, tudo mudou. Deu-se a debandada, tanto das missas como do bairro.

Um passeio pelo passado

Depois da missa das 8h30, o padre Bernardo Xavier Félix fica pelo Cais do Sodré. Come qualquer coisa e dá sempre um passeio, sozinho ou acompanhado pelos voluntários da igreja. “Às vezes nem o conseguimos apanhar”, brinca Augusto Fernandes, um dos acólitos, também conhecido por Doutor das Flores por ser o responsável pelos arranjos nos altares. Augusto conheceu o padre quando era marçano numa mercearia na Travessa da Ribeira Nova. “Sou do tempo em que aqui havia um movimento extraordinário”, relembra, destacando a igreja tinha de ficar de portas abertas para que todos conseguissem ouvir o sermão.

Enquanto palmilham as ruas, padre e acólito desfiam memórias. Lembram o rebuliço no patacão, o local onde se estacionavam os cavalos e carroças, mesmo em frente ao Mercado da Ribeira. “As ruas conservam-se as mesmas. O movimento é que mudou”, diz o padre a Augusto. “Aqui era o centro do comércio”, reforça. Explica que com a entrada de Portugal na Comunidade Económica Europeia (CEE), com as suas regras de higiene, tudo mudou. “O abate dos animais era clandestino, mas mesmo assim eram colocados à venda no mercado da Ribeira”, diz, referindo que quando a lota se deslocou para o Mercado Abastecedor da Região de Lisboa (MARL) rezou a missa de despedida. 

Na Rua da Ribeira Nova, mesmo em frente, recorda o comércio especializado: retroseiros, sapateiros, cordoeiros ou casas que só vendiam gelo ou carvão. Augusto Fernandes também não esquece o que cada porta já foi e salienta que as que resistiram ao tempo também elas se tiveram de se adaptar. A antiga abastecedora de atum da Ribeira Nova é uma das resistentes. Contudo, teve de se transformar numa mercearia.

Nenhum deles esquece que a zona era dominada por tabernas de galegos. Augusto acumula histórias dos seus vizinhos do Cais do Sodré: “Os galegos gostavam de ter a casa suja. Quando chegavam de manhã, metiam serradura e papéis no chão. Assim transmitiam a noção que tinham muita freguesia.” Agora, os estrangeiros são outros – franceses, árabes, chineses –, e estão a chegar em força, comprando casas e lojas.

É ao virar o “maior quarteirão de Lisboa”, como faz questão de referir Augusto, que se avista a mercearia dos Coutinho, onde, há muitos anos, padre e acólito trocaram as primeiras palavras. A travessa da Ribeira Nova traz muitas recordações a Augusto. Foi no barbeiro que ali existia, agora um edifício devoluto, que aos 14 anos fez pela primeira vez a barba.

No fim da travessa, antes de se chegar ao largo de S. Paulo, há a gelataria Davvero, em tempos uma das maiores empresas de Portugal ligadas ao vestuário de trabalho, a Rodrigues&Rodrigues, contam. É a olhar para a praça, agora ocupado por esplanadas, que o padre e Augusto recordam as despedidas para a pesca do bacalhau. As famílias dos pescadores vinham da Póvoa do Varzim, Figueira da Foz e Nazaré e ficavam pelo Cais do Sodré durante duas semanas em Abril. “Vinham dizer adeus e acabavam por se abastecer e ficar nas pensões. Até as nazarenas das sete saias compravam aqui alfinetes", diz Augusto.

Daqui já se espreita a rua cor-de-rosa. O padre explica que as multidões do Bairro Alto passaram para o Cais. “De vez em quando chego aqui às 9h ou 10h e ainda há grupos com garrafas na mão. Isto tornou-se o centro da balbúrdia”, afirma o padre. Mas a intensidade da noite por aqui não é nova e Augusto ainda se lembra quando a armada americana invadia os bares e cabarés nas passagens por Lisboa a caminho do Vietname.

Do outro lado do largo, na Rua de São Paulo, o Minipreço ocupa o que era um dos maiores armazéns da zona, a Real Companhia Vinícola. Ao lado ficava a escola primária, onde o padre dava catequese. Entre pastelarias que mudaram de dono, uma loja de electrónica que foi um café, ou a farmácia que vendia produtos Oratol, Augusto recorda ainda os vãos de escada também dedicados ao comércio, como a casa de cafés moídos já encerrada.

Tudo mudou, e tanto. Mas isso é normal, faz parte da vida. O que já preocupa é a “debandada das pessoas”, diz o padre. A freguesia da Misericórdia, que abrange as antigas freguesias da Encarnação, Santa Catarina, Mercês e São Paulo, tinha, nos censos de 1971, 27.630 habitantes. Em 2011 contabilizava 13.041. Um movimento que o padre percebe, pois as casas não tinham condições e as rendas eram demasiado baixas para que os senhorios conseguissem reabilitar os pisos. Até as casas de banho eram partilhadas. “Depois do 25 de Abril, as pessoas começaram a mudar-se para casas com mais condições na periferia, saíram daqui e a vida abrandou. Isto ficou reduzido aos velhos.” Na Igreja de São Paulo já nem se dá catequese. “Antes baptizava todos os domingos, agora não faço um baptizado.”

O milagre da maior obra depois do terramoto de 1755

Miguel Santos, na casa dos 40 anos, chega a ser o mais novo em muitas missas. Conheceu o padre Xavier aos 16 anos, a propósito da restauro da Igreja das Chagas. Para Miguel, a fuga da população do bairro é culpa da pressão imobiliária para que sejam feitos hotéis e da derrota dos moradores face ao primado dos bares. “Isto é muito engraçado para quem vem de fora. Vai às casas gourmet, bebe uns copos e come uns petiscos. Para quem mora cá é terrível. As noites são infernais, não se consegue dormir, o ambiente é péssimo”, explica Miguel, esclarecendo que “os habitantes são as vítimas que não se podem queixar, porque são pequenos em relação aos grandes poderes económicos”.

Mesmo assim, para Miguel, o padre Xavier consegue ser uma “força agregadora” no bairro .“Os que vêm cantar no coro são todos de fora. Pelas paróquias onde tem passado e vivido é como se o padre tivesse uma rede com que vai apanhando as pessoas.” Para o acólito, o dinamismo do padre pode ver-se nas obras que vai deixando. A última foi a recuperação do tecto da igreja, um óleo sobre tela com 414 metros quadrados.

Durante “dois anos muito intensos”, as missas foram celebradas entre andaimes. Miguel considera que esta foi a maior obra da igreja desde a sua recuperação após o terramoto de 1755. O “milagre” foi também o custo da obra. Se, no início, a proposta das empresas contactadas se cifrava em milhões, no final a obra ficou em 199 mil euros. “Gastámos o mínimo do dinheiro com os melhores produtos vindos de Itália ou de Barcelona.” O padre destaca o trabalho do restaurador Nelson Albuquerque e da equipa que conseguiu devolver à igreja uma tela que é hoje visitada por turistas de toda a parte do mundo.

Depois da missa das 18h30, o padre apanha boleia até à Cruz Quebrada com Miguel, que vive no mesmo prédio. Miguel nem quer pensar quando o padre não conseguir rezaras missas. “A paróquia provavelmente não terá capacidade de ter aqui um sacerdote.  É um problema em todo o centro de Lisboa”, diz, explicando que há uma densidade muito grande de igrejas e não há sacerdotes para todas as paróquias. “Acaba por haver igrejas que ficam parcialmente fechadas, só abrem de manhã, ou só à tarde ou só ao fim de semana, acabando por celebrar só determinadas missas durante a semana.”

Depois de muitas conversas com os velhos conhecidos do bairro, os tempos mortos são ocupados a escrever sonetos. O padre Xavier já publicou Um Fogo tão forte que nos espanta, que contou com a presença de José Tolentino de Mendonça, o padre e escritor, na apresentação em Julho de 2015. “Os sonetos ajudam-me, pois estão cheios de esperança. Foi em oração que descobri a maneira de os escrever”. Outras das suas inspirações são Camões, Florbela Espanca e Bocage, embora este último seja “demasiado boémio”, ao estilo da rua cor-de-rosa. “Eu até tenho sonetos sobre isso, mas ainda não estão publicados”, planeia o padre mais velho em actividade em Lisboa e quem sabe do país.

Texto editado por Ana Fernandes

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