Bem-vindos ao lado negro: The Night Of e Stranger Things, séries para um Verão melhor
Um crime, um jovem muçulmano e a engrenagem judicial dos EUA em 2014. Uma história de miúdos e paranormal, à moda de Spielberg e Stephen King, em 1983. Séries atípicas no ar em Julho de 2016.
Se você gostou de Making a Murderer, Serial e O Caso O.J Simpson, então vai gostar disto. E se você gostou de Os Goonies, Stand by Me — Conta Comigo, de John Carpenter e Stephen King e dos anos 1980 em geral (sobretudo na versão Spielberg), então vai gostar desta. Esta é uma espécie de recomendação de Verão para The Night Of e Stranger Things, duas séries cujo negrume parece não condizer com o sol escaldante, mas que vem bem a propósito da forma como se consome hoje a “televisão”.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Se você gostou de Making a Murderer, Serial e O Caso O.J Simpson, então vai gostar disto. E se você gostou de Os Goonies, Stand by Me — Conta Comigo, de John Carpenter e Stephen King e dos anos 1980 em geral (sobretudo na versão Spielberg), então vai gostar desta. Esta é uma espécie de recomendação de Verão para The Night Of e Stranger Things, duas séries cujo negrume parece não condizer com o sol escaldante, mas que vem bem a propósito da forma como se consome hoje a “televisão”.
Não vemos necessariamente as séries num televisor e as datas são menos restritivas — The Night Of e Stranger Things já se estrearam, mas estão bem a tempo de ser apanhadas; depois, são elas que nos apanham. São dois títulos bem diferentes, mas que têm em comum a atracção pela noite e o facto de se terem estreado em Julho (tanto nos EUA de origem quanto em Portugal).
Também partilham o facto de terem à cabeça estrelas do indie vintage americano, se John Turturro e Winona Ryder nos permitirem chamar-lhes assim, e serem povoadas por verdadeiras personagens ao longo dos seus oito episódios (a primeira temporada de Stranger Things está toda disponível e The Night Of vai para o quarto episódio no canal TV Séries na segunda às 22h45, mas as repetições semanais permitem apanhar o barco).
Estas séries de Verão surgem num século em que alguns dos melhores produtos dramáticos vieram a tempo da praia – pense-se em Mad Men, na última temporada de Os Sopranos ou no debute de True Detective. E são também exemplares de títulos que dificilmente chegam sem um quadro de referências. Num Pinterest da ficção, num mood board onde as podemos encaixar, Stranger Things pilha com mestria a nostalgia pelos anos 1980 que invade a televisão e o cinema (é pensar em The Americans ou Caça-Fantasmas) e The Night Of saqueia a sala do tesouro das histórias de crime.
Diga Demogorgon
Stranger Things é o ovni da estação, o trabalho de paixão dos irmãos (gémeos) Duffer, que nasceram em 1984, mas se alimentaram com a melhor dieta daquela década já na sua adolescência — videojogos, filmes de Spielberg e Carpenter (E.T., Encontros Imediatos de Terceiro Grau, Tubarão, Halloween, Veio do Outro Mundo), aventuras com os amigos na sua pequena cidade, livros de Stephen King como A Coisa... “Quando somos miúdos, não vemos um filme uma vez. Vemo-lo dez, 20 vezes. Foram os filmes com que crescemos. Tornou-se uma parte de nós”, explica Matt Duffer ao site Vulture, da revista New York. E os filmes que adoraram “têm uma qualidade intemporal”, constata.
Fizeram o seu primeiro filme na quarta classe e escreveram alguns episódios da série Wayward Pines. Agora, trazem Winona Ryder e Matthew Modine para um mundo de miúdos despachados e adultos quebrados em que algo — um monstro, uma criatura, um mundo? — lhes rouba um amigo e uma agência governamental tenta encobrir o sucedido. O elenco chegou antes do guião, como disseram os Duffer à revista Empire, para uma história em que havia tipos simples a preencher, assumidamente uma espécie de grande tributo e revisitação de lugares onde foram felizes, mas com sabor original. Entre os actores há a revelação de Millie Bobby Brown, a britânica de 12 anos que não reconheceu um objecto estranho no local de filmagens. Era afinal um gira-discos, provavelmente onde tocava uma música óbvia dos Clash.
O ambiente da série é uma colecção de detalhes, dos telefones de disco aos interiores escuros e os cabelos infelizes. Os miúdos andam de bicicleta, jogam Dungeons and Dragons e temem o seu monstro Demogorgon, têm pais ausentes ou amorfos. Os seus irmãos mais velhos têm posters de A Coisa e vivem Tom Cruise como uma novidade. A trip nostálgica é a porta de entrada para Stranger Things, filmada em película e com grão scanado de filme dos anos 1980. O genérico vem das capas dos livros de King e dos créditos de Richard Greenberg em Super-Homem, Alien ou Goonies; a música é de Kyle Dixon & Michael Stein. Depois, é mergulhar na tensão dos adultos e na aventura prodigiosa dos miúdos.
Os irmãos Duffer regojizam-se por poder contar a história do rapazinho desaparecido a partir dos pontos de vista de pais, irmãos e amigos. A riqueza da complementaridade dessas cenas está espelhada palavras do escritor Karl Ove Knausgård quando descreve, em A Minha Luta: 1 A Morte do Pai, o diferimento das emoções para um momento que partilhou com o seu pai quando tinha oito anos. Era tudo uma questão de perspectiva. E distância. “[Os dias de miúdo] estavam repletos de significado, cada passo conduzindo a uma nova oportunidade, e cada oportunidade preenchendo-me de uma maneira que agora me é difícil compreender.” Já “o significado dos seus dias não estava tão concentrado em acontecimentos individuais, mas espalhado sobre áreas tão extensas que não era possível compreendê-las senão como conceitos abstractos. ‘Família’ era um deles”, escreve. E ao ser adulto, “compreender o mundo exige que se mantenha uma certa distância dele”, postula o escritor norueguês. E paga-se o preço. Stranger Things quer ser isso, a confusão desencantada dos crescidos quebrada pela fé de Winona Ryder e a liberdade de ser criança em 1983. Com sustos e sem telemóveis.
A noite do crime
Para quem tem cadastro neste mundo do crime, The Night Of é quase impossível de ver sem o filtro de Making a Murderer ou Serial — uma série documental Netflix e um famoso podcast, respectivamente, ambos focados em casos reais de polícia e sua sequência judicial duvidosa, dois fenómenos que transpiraram para um possível novo julgamento ou petições endereçadas à Casa Branca.<_o3a_p>
Na longa viagem da cultura popular no mundo do crime e da justiça, The Night Of é um passageiro de primeira classe. Viagem tensa, atempada e com tempo. Criada por Steve Zaillian, o guionista de Lista de Schindler e pelo romancista Richard Price, autor de guiões para The Wire, é uma das séries mais positivamente recebidas pela crítica e pelos espectadores em 2016. Price e Zaillian tratam The Night Of como uma série de autor, sempre presentes na escrita e realização — só o quarto episódio foi entregue a James Marsh (Homem no Arame e A Teoria de Tudo). <_o3a_p>
The Night Of tem como base a série da BBC Criminal Justice e numa curta temporada — é formalmente uma mini-série — dedica-se a um caso de justiça. Riz Ahmed é Naz (no seu currículo estão A Caminho de Guantánamo, Jason Bourne e o futuro Rogue One: A Star Wars Story), 22 anos tímidos que decidem “flirtar com a sua própria destruição” numa noite que seria de festa e se torna noutro tipo de festa, sensual e intoxicada, e é o início de um pesadelo. Ele é muçulmano e paquistanês, por ser filho de um taxista de Nova Iorque, e isso abre toda outra camada de significado e história naquele 2014 ficcional e no 2016 actual.<_o3a_p>
A série era um projecto da HBO com James Gandolfini, o rosto da sua obra maior, Os Sopranos, e o primeiro episódio já estava filmado. Com a sua morte em 2013 chegaram a ponderar Robert deNiro como seu substituto mas John Turturro, amigo de Gandolfini, acabou por se tornar no advogado John Stone — o co-protagonista. A contragosto, como disse ao New York Times, pela proximidade que tinha com Gandolfini. “Era amigo dele. Fui ao casamento dele. Fui ao funeral dele.”
<_o3a_p>
Grande parte desse episódio sobreviveu até chegar à estreia dia 10 (também em Portugal) e as partes com Gandolfini como Stone foram refeitas e o papel ligeiramente aumentado. O que ficou igual é o sistema policial e judicial maquinal, burocrático e desgastado, mas habitado por algumas personagens esforçadas. Filmado ao longo de dez meses e montado ao longo de um ano, The Night Of é um caso de tempo. Para conhecer as personagens (e não só Naz ou Stone), para respirar o ar da prisão onde o sistema faz desembocar o seu fluxo de suspeitos, para ver como a comunidade sofre as réplicas do caso de Naz.
Até The Night Of há décadas de lastro de Law & Order ou do velhinho O Fugitivo. E momentos recentes como o de American Crime Story, uma série que nasceu com o Caso O.J. Simpson (na Fox) e que continuará com outros casos — a próxima temporada é sobre o furacão Katrina — e, no mercado televisivo português, o lançamento em Junho no operador Nos do Crime + Investigation, “o único canal dedicado a histórias de crimes reais” (quando na ficção já há o canal Fox Crime, por exemplo). Num mundo em que a histórica colecção Vampiro e seus policiais foi agora ressuscitada, a presença do tema é tal na cultura que se inaugura hoje um espaço lúdico no Kidzania, o Meo Investigação Criminal, o primeiro na Europa a juntar este mundo onde as crianças podem ter experiências “profissionais” como as das séries mais populares.
De volta à nova série, ela é sobretudo “intrepidamente autêntica”, como diz Ahmed, tanto nos grandes temas como “o sistema criminal” ou “a islamofobia”, explica à Variety, quanto “nos espaços negros” que os guiões deixam por preencher, completa na Rolling Stone. “Espaço negativo onde as pessoas possam projectar” o que quiserem.