A Bíblia toda e para todos

A editora Quetzal vai começar a publicar em Setembro uma nova tradução da Bíblia. É feita a partir do grego por Frederico Lourenço e sairá em seis volumes, até 2019. Está a ser apresentada como a mais completa jamais feita em português.

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Frederico Lourenço, aqui fotografado em 2014, sempre teve a intenção de traduzir a Bíblia Miguel Manso

Francisco José Viegas tem uma “relação muito especial” com a Bíblia, mas desde que começou a ler os quatro evangelhos na nova tradução de Frederico Lourenço que a Quetzal faz chegar às livrarias a 23 de Setembro essa “relação muito especial” transformou-se numa “aventura maravilhosa”. A leitura não confirmou apenas que são fundamentais para a cultura ocidental – fez com que descobrisse neles a “invenção do romance moderno”. “Ler esta Bíblia é uma aventura poética, uma aventura da história”, que muito se deve à coragem de Frederico Lourenço, “alguém que transformou um sopro num relâmpago”.

Viegas, editor da Quetzal, falava esta quarta-feira de manhã na Cinemateca, em Lisboa, numa conferência de imprensa em que apresentou esta ambiciosa edição que divide a Bíblia em seis volumes – dois dedicados ao Novo Testamento, quatro ao Antigo – como a mais completa alguma vez publicada em português. Isto porque, explicaria depois o tradutor, é feita a partir da Bíblia grega, que no Antigo Testamento tem 53 livros, ao contrário da hebraica, que tem apenas 24, e da católica, com 46.

Até aqui, as traduções disponíveis em português não incluíam todos os livros do Antigo Testamento. Esta passará a fazê-lo, o que significa que terá, ao todo, 80 livros e uma organização bem diferente da das traduções tradicionais, que segue a matriz latina e que começa no Livro do Génesis e termina no do Apocalipse. Uma organização que não é, de todo, cronológica (o Génesis não foi o primeiro a ser escrito). “A forma completa do Antigo Testamento nunca tinha sido editada”, diz Lourenço. À tradução do actual cânone católico juntar-se-ão sete livros: o 3.º e o 4.º dos Macabeus, Salmos de Salomão, Odes, o Livro de Susana, o de Bel e o Dragão e a Epístola de Jeremias.

Depois de ler o primeiro volume, o que junta os evangelhos de João, Lucas, Mateus e Marcos, Francisco José Viegas garante que esta nova edição é verdadeiramente uma “experiência múltipla”, em que a poesia, a história, a contemplação, a magia e o puro amor das palavras se encontram. E o tradutor, claro, “é o alquimista deste milagre”, um “milagre” que só não é “alquimia pura”, porque dá muito trabalho. “O Frederico Lourenço obrigou-me a ler a Bíblia de outra maneira, com novos sentidos, novas palavras.”

Texto que não se entende

Frederico Lourenço, escritor, poeta e especialista em cultura helenística que já traduziu para português obras tão fundamentais como a Odisseia e a Ilíada, comprou a sua primeira edição do Novo Testamento em grego há mais de 30 anos, quando estava prestes a entrar no primeiro ano de Estudos Clássicos, quando era ainda um católico praticante “bem dentro da Igreja”. Hoje essa ligação perdeu-se – Lourenço continua a acreditar em Deus, mas já não é um católico praticante –, embora nunca tenha chegado para questionar a importância da Bíblia. “Descobrir mais tarde o Antigo Testamento em grego foi revelador, porque a versão grega mantém toda a qualidade poética que o texto tem”, diz.

Na tradução que está a fazer dos 80 livros da Bíblia cruza a grega com a hebraica para mostrar que há complementaridades e diferenças. As dezenas e dezenas de notas que cada um dos seis volume da Quetzal trará juntam-se às introduções para ajudar o leitor a compreender o texto e o seu contexto, falam da origem de determinadas palavras e alertam para esta ou aquela interpretação que, ao longo da história, deu origem a debate e até a outros escritos.

Frederico Lourenço quis com esta abordagem pôr à disposição uma edição para todos: “Falta uma versão da Bíblia para crentes e não-crentes”, disse ao jornalistas, uma versão não-apologética daquele que é “talvez o livro mais importante de toda a tradição ocidental”. Para o tradutor, a Bíblia não devia ser um exclusivo das faculdades de Teologia, mas presença obrigatória em todos os cursos de Humanidades. “Esta edição tem uma intencionalidade linguístico-histórica, não teológica. (…) As notas tentam explicar a materialidade do texto, que muitas vezes não se entende.”

É precisamente porque o texto por vezes não se entende – e porque quer ser fiel ao que foi escrito, de acordo com a versão grega – que Lourenço optou por usar muito os parêntesis rectos ao longo do texto, assinalando as palavras que estarão subentendidas. “Às vezes o grego não nos permite atribuir um sentido exacto a determinada frase… Os parêntesis permitem-me dizer ao leitor o que foi realmente escrito e o que foi acrescentado para tornar o texto inteligível.”

O que se lê hoje nas igrejas pode ser bem diferente do que foi escrito na versão grega – para quem conhece as traduções disponíveis, vai sentir diferenças, por exemplo, no Pai Nosso e no Sermão da Montanha, de Mateus, garante Lourenço – porque houve um esforço de simplificação para que o livro chegasse mais facilmente às pessoas. “Há cartas de Paulo que parecem escritas por Marcel Proust, com frases que duram três páginas” e que depois na liturgia são resumidas a uma linha, exemplifica. “O que quis nesta edição foi dar alguns elementos para que as pessoas possam ter ideia do debate crítico que rodeia a Bíblia”, isto sem comprometer qualquer outro propósito: “O valor espiritual dos textos está lá sempre.” E é provavelmente por causa desse valor que Lourenço defende a sua intemporalidade – “tem 2000 anos, mas é um livro hoje e é um livro amanhã”.

Tal como aconteceu com a Ilíada e a Odisseia, Frederico Lourenço, 53 anos, esteve à espera do momento certo para se entregar a esta tradução. E é mesmo de entrega que se fala, já que abdicou de tudo o que estava a fazer profissionalmente – à excepção das aulas que dá na Universidade de Coimbra – para se poder dedicar ao projecto, algo que sempre quis fazer. “Senti que tinha mesmo de fazer isto”, disse ao PÚBLICO. “E agora sinto o mesmo que senti quando estava a trabalhar na Ilíada e na Odisseia – pânico de morrer antes de acabar.”

Passar dos dois poemas de Homero para a Bíblia confrontou-o com “dois gregos diferentes”, embora muitas palavras se repitam. A Bíblia, assegura, é muito mais difícil de traduzir porque nela a diversidade da linguagem é muito maior. É, no entanto, “muito bonito ver a continuidade da língua grega, perceber que às vezes se fala da vida de Jesus com as mesmas palavras com que se fala de Ulisses e de Penélope”.

Pegar na Bíblia era também um sonho antigo de Francisco José Viegas, que diz que publicá-la, numa altura em que “editar é cada vez mais difícil”, é “correr um risco” que dá muito prazer. Em grande parte devido ao tradutor em quem confiou: “Se a Bíblia é fogo, o nome de Frederico Lourenço vai ficar gravado no fogo.”

O preço de capa deste primeiro volume, cuja tiragem não foi divulgada, será de 19,90 euros. O segundo volume  sairá em Março de 2017 e a Quetzal conta ter o último dos seis volumes nas livrarias no começo de 2019. No Brasil, a editora Companhia das Letras começará a publicar esta tradução da Bíblia em Maio de 2017. 

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