O crente e o não-crente para quem "Jesus sabe bem"

O escritor Frederico Lourenço, fascinado pelo texto bíblico, tem dificuldade em aceitá-lo como texto sagrado. Levámo-lo ao encontro de um religioso conhecido pela sua heterodoxia. Há um aspecto em que Frei Domingues e Frederico Lourenço estão de acordo: Jesus “sabe sempre bem".

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Sabe bem entrar na pequena sala do Convento de São Domingos, onde havemos de ficar a conversar longamente. O anfitrião, Frei Bento Domingues, deixou previamente ligado um aquecedor que nos reconforta, depois da ventania do Alto dos Moinhos. Antes disso, foi cicerone pelos espaços do convento, onde vivem cerca de três dezenas de religiosos. Em cima da mesa, entre papelada diversa, está um exemplar de O Livro Aberto — Leituras da Bíblia (edição Cotovia), a publicação mais recente de Frederico Lourenço. Aos 52 anos, o escritor define-se como um ex-católico, à procura de uma conciliação entre o pensamento racional e a figura de Jesus. A doutrina da Igreja acerca da homossexualidade não é alheia, evidentemente, a esse corte com a prática religiosa, sendo Frederico Lourenço um gay assumido. Mas há outras dúvidas e inquietações de que dá testemunho no livro que serve de pretexto a este encontro. Frei Bento já o tinha lido quando lhe liguei desafiando-o para a conversa com o escritor. Entre concordâncias e discordâncias, salta à vista o mesmo entusiasmo pelo texto bíblico de dois leitores da Bíblia separados pela questão da fé.

Ao lerem a Bíblia, lêem ambos o mesmo livro ou a fé, que um tem e o outro não, altera substancialmente a leitura?
Frederico Lourenço — A fé pode alterar, naturalmente, o olhar sobre o livro. Se tivermos fé, e sobretudo se estivermos a ler o livro de acordo com a crença e a prática de uma qualquer modalidade do cristianismo — pode ser católica, luterana, protestante —, estamos condicionados para ver um sentido que, se não tivermos fé, não somos obrigados a ver.

Frei Bento Domingues — O que é importante, antes de mais, é o facto de a Bíblia ser a biblioteca de um povo: de épocas muito diferentes, com géneros literários e problemáticas também muito diferentes.

Na verdade são duas bibliotecas: o Antigo Testamento e o Novo Testamento.
F.B.D. — Sim. Os cristãos depois integraram-na, fazendo a sua interpretação a partir de Jesus. Releram o Antigo Testamento em função desse acontecimento. Por isso é que muitas vezes aquilo é artificial. Depois do acontecimento lêem para trás. Não é que antes já previssem Jesus, depois do acontecimento é que já vêem lá tudo.

F.L. — Pessoas como o Frei Bento já estudam estes assuntos há muitos anos. Dar-se-ão conta de que muitas das coisas que pergunto no meu livro são perguntas feitas já desde o século XVIII. Até desde antes disso. São interrogações que vale sempre a pena voltar a colocar porque estamos agora numa altura em que, sobretudo noutras vertentes do cristianismo que não o catolicismo, se está a derivar para uma crença fundamentalista, voltando a interpretar à letra tudo o que está na Bíblia, como se fosse a palavra infalível de Deus.

Esta questão da literalidade na leitura é relevante.
F.B.D. — É importante, sim. A exegese histórico-crítica da Bíblia começou em grande parte no mundo protestante. Foi levantada por um padre francês mas abafada, e depois reapareceu a partir dos séculos XVIII, XIX. Recordo-me que o meu professor de Antigo Testamento, em Salamanca, nos dizia sempre: “Quando virem números na Bíblia, tirem sempre dois zeros. Pode-se provar que nem sequer havia naquela povoação tanta gente.” Era uma leitura extremamente crítica e que tinha dois efeitos: vacinava uns contra todos esses fundamentalismos, mas encrespava outros: “Então e a nossa teologia, todos os argumentos que temos?” Dizia ele assim: “Já ensinei toda a vossa filosofia a um papagaio; vós repetis mas isso nada tem a ver com o que se passa na Bíblia.” Quanto ao Frederico, há uma tarefa lindíssima a que poderia dedicar-se: seria a tradução da Bíblia dos Setenta, que foi escrita em grego.

F.L. — Ando a pensar nisso. Já recebi vários incentivos.

F.B.D. — Ainda bem. Aquilo que aparece no seu livro são coisas já muito debatidas, embora sejam conhecidas sobretudo pelos especialistas. Quanto ao resto das pessoas, ainda ouvem as leituras da Bíblia num clima, não digo de fé ou não fé, mas mais piedoso ou menos piedoso. Quando as pessoas falam de fé incluem nisso certas crendices e uma atitude interior em que encontram, na adesão ao mistério do mundo, ao mistério da vida, ao mistério de Deus, aquilo a que chamam “sagrado”. Descobrem aí uma expansão da vida.

F.L. — São dois os problemas que identifico na leitura da Bíblia, os meus dois grandes problemas como leitor da Bíblia. Um deles é que discordo racionalmente da exegese que se faz, sobretudo do Antigo Testamento, por cristãos e católicos. Em particular, a ideia de que o que temos de fazer é aprender a ler a Bíblia, conseguindo ver no texto o que não está lá. A minha tese é que nenhum dos autores dos 70 livros que compõem aquilo a que chamamos a Bíblia, nenhum, escreveu com o intuito de que nós lêssemos nas palavras deles outra coisa que não as palavras que foram escritas.

Poderá é haver chaves de leitura que hoje é preciso conhecer.
F.L. — Sim, todas as chaves são possíveis. E haverá um milhão de chaves. Mas a minha leitura leva-me à crença de que isso é assim mesmo nos livros proféticos. Dou o exemplo de Ezequiel, que é lido de forma totalmente alegórica, metafórica. Ele escreveu tudo o que escreveu para ser lido exactamente com o sentido que as palavras têm.

F.B.D. — Uma coisa é ler o texto, outra coisa é a hermenêutica do texto, que tem sempre muitos pressupostos filosóficos, literários. A grande dificuldade que sempre tive é com o insuportável da violência na Bíblia. Um Deus que manda matar, que se mate ele, não o aturo! E as pessoas diziam: “Mas isso está revelado.” Revelado por quem? O Francolino Gonçalves, um confrade meu, que está na Escola Bíblica de Jerusalém há 45 anos, foi fazer uma análise dos diferentes javeísmos que havia na Bíblia, as diferentes formas de dizer Deus. São muitos, mas ele distingue dois tipos. Um, o sapiencial: “Criou o Céu e a Terra.” Aqui a palavra “criou” não tem o sentido de Darwin, nem o nosso sentido metafísico: é a organização do caos. Os textos tipicamente sapienciais são universalistas. E depois, a partir da saída do Egipto, há os textos patrióticos, que põem na boca de Deus aquilo que lhes interessa a eles. Deus tem de dar porrada nos nossos inimigos. Tem de estar do nosso lado. Somos capazes de pôr Deus ao serviço dos nossos crimes. Aquilo que consideramos supremo, rebaixamo-lo a instrumento das nossas políticas, das nossas intenções.

Isso é válido também para um livro como o Livro de Job?
F.B.D. — O Livro de Job é um livro da sabedoria.

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F.L. — Penso que o Deus que está implícito no Livro de Job não é muito melhor do que este que acabou de ser referido, o daqueles livros históricos mais sanguinários. Como leitor do Livro de Job, não fico muito enaltecido com a imagem de Deus que transparece nele.

F.B.D. — O Livro de Job tem várias políticas internas. Tem vários autores. Tomás de Aquino, ao ler esse livro, perguntou: “Mas pode-se discutir com Deus?” Pode, se se tem razão. E Job tinha razão, podia discutir com Deus.

Pode ler-se a Bíblia apenas em termos estritamente literários?
F.L. — A Bíblia interessa-me, claro, enquanto texto literário. Como leitor. Mas não é essa a vertente que mais me interessa, sendo alguém que tenta reflectir um pouco sobre o texto bíblico. Não nego de forma alguma a força e a qualidade literária da Bíblia. São textos magníficos, todos eles. Uns mais do que outros, claro. Mas a minha abordagem à Bíblia não é essa. A minha abordagem tem mais a ver com a tentativa de conciliar racionalmente as dúvidas que ela me levanta, como alguém que se interessa profundamente pela religião, pelo cristianismo e pelo texto bíblico, desde sempre. Tento equacionar em que consistem as dúvidas que me impedem de me afirmar como cristão, ou crente, a cem por cento. Outro problema é o da lente transfiguradora através da qual a vida de Jesus é narrada nos quatro evangelhos. Sempre como prova de que as profecias estavam a ser cumpridas em tudo o que Jesus fez e não fez. Quando começamos a olhar mais aprofundadamente para essa relação — entre aquilo que foi a vida de Jesus e aquilo que os evangelistas narram —, somos constantemente levados a perguntar: este facto que está aqui a ser narrado é ou não verdadeiro? Há, constantemente, um véu entre aquilo que verdadeiramente aconteceu, que eu gostaria de saber o que foi, e a minha leitura. Esse véu é a interposição do texto do Antigo Testamento, que está a criar constantemente uma barreira entre a vida de Jesus e nós, que estamos a tentar compreender o que foi a vida de Jesus. Isso impede-nos de saber o que realmente se passou.

É por isso que o seu evangelho preferido é o de João, por sentir que é o que está mais próximo dos factos?
F.L. — João também tem esse problema. É um texto magnífico.

F.B.D. — Em relação a João, as últimas investigações são muito engraçadas: são três “Joões”. O texto passou por três fases e hoje, como se faz análise histórico-crítica, é como na Arqueologia: uma camada, depois outra…

F.L. — Tenho problemas com isso. Tinham de ser três “Joões” muito bem combinados entre si. Justamente por ser tão estilisticamente unitário.

F.B.D. — Há um aspecto importante: Jesus não escreveu nada. Então, o que temos? Sei que as outras pessoas não vão por aí mas isso não me interessa, o nosso primeiro direito é o de pensar livremente. Os textos são muito posteriores ao que aconteceu. O que me impressiona é que — apesar de enfoques distintos nas diferentes comunidades, porque surgiram grupos muito diferentes em sítios muito diferentes — todos me falam de alguém que me sabe sempre bem.

F.L. — Ah, sim.

F.B.D. — Depois, uma coisa a que ninguém liga nada e que é a minha iluminação. No Evangelho de Lucas há uma passagem, no capítulo dez, que me faz rir sempre que a leio. Apresenta as coisas com os 12 apóstolos. Também é um número simbólico como nas 12 tribos de Israel. Mas ele achou que só com 12 não iam muito longe. Então inventa um envio de discípulos, uns 70. Quando voltam, a situação que narra é como a dos adolescentes quando vão para um campo de férias. Ao voltarem a casa, contam tudo aos pais; contam, contam, contam. Também eles vieram ter com Jesus e disseram-lhe: “Foi fantástico!” Contaram-lhe tudo o que tinha acontecido. E Jesus: “De facto correu mesmo bem, sim senhor.” Depois diz isto, que é o coração da minha fé, aquilo que me ilumina interiormente: “Mas cuidado, alegrai-vos sobretudo porque os vossos nomes estão inscritos nos Céus.” A palavra “céus” era um substituto de Javé, de Adonai, um substituto de Deus. “Alegrai-vos porque a vossa vida está inscrita no coração de Deus.” E depois, acrescenta o texto: “E ele naquele momento comoveu-se com o que disse.” Comoveu-se! Séculos e séculos andaram a querer ouvir isto e não ouviram, a querer ver isto e não viram. Costumo dizer que se Deus é amor e se não nos ama vai para o desemprego.

F.L. — Acho isso muito bonito. Acho lindo. Mas pessoalmente não consigo senti-lo de uma forma racional. Consigo sentir que eu, pessoalmente, Frederico Maria, sou amado por Deus. Isso consigo. E até me interrogo porquê. Mas olhando de forma completamente fria e objectiva para o mundo à nossa volta, não vejo de modo algum o Deus do amor. Acho que ele foi mesmo para o desemprego. Não está a amar as pessoas.

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F.B.D. — O Frederico está como aquele rabino que, quando lhe disseram que veio o Messias, foi à janela e concluiu que não havia prova nenhuma de que ele tivesse chegado. É de facto o mundo que temos. Mas quando se coloca o problema da racionalidade, devo dizer que ainda não percebi bem o que é a razão. O Immanuel Kant diz algo que me ajuda: a nossa razão tem a capacidade de levantar problemas que não sabe resolver. É da própria natureza da nossa razão levantar permanentemente problemas.

F.L. — A grande vantagem da filosofia em relação à teologia e à catequese é que a filosofia nos ensina a pensar criticamente. Penso que isso é uma grande dádiva que já vem desde os gregos. Acho que devemos pensar criticamente. Deus, existindo ou não, mesmo que exista não quer que abdiquemos da capacidade de pensar criticamente e que deixemos de aplicar o pensamento crítico a tudo o que nos ocorre na vida. Temos de exercer o pensamento crítico, que é necessariamente diferente de pessoa para pessoa, não pode ser sempre coincidente. Esse é o grande problema de uma religião como a religião católica: querer conciliar biliões de seres humanos, levando-os a pensar mais ou menos a mesma coisa, a ter um pensamento que vai sempre desaguar numa conclusão já pré-determinada. Esse é o meu problema em relação à abordagem teológica, à Bíblia no geral. Estou a falar mais no Novo Testamento, e concretamente nos evangelhos, que é aquilo que mais me interessa. A discussão está viciada à partida porque a conclusão já está pré-determinada. A conclusão tem de ser consentânea com a doutrina católica.

F.B.D. — Há aí um problema importante. Creio que, na Igreja Católica, se não tivesse havido o Concílio Vaticano II, estaríamos como estão agora muitos muçulmanos em relação ao Corão. Também se interpretava tudo como um ditado divino. Na Igreja Católica, durante muito tempo, também se fazia dos textos do Antigo Testamento uma emanação divina. Isso punha-me sempre o problema: o que fizeram ali os escritores, porque é que aquilo não saiu tudo certo? No Vaticano II, quando o Papa João XXIII diz que estava a fazer a barba e se lembrou de convocar um concílio, havia na Igreja muitas tendências, muitos grupos, mas havia um Santo Ofício que vigiava, que condenava. E antes tinha havido a Inquisição, que queimava. O que se passou no Vaticano II foi que, desde o primeiro momento, se começou a discutir um documento que só foi aprovado um dia antes da conclusão do Concílio. Era o documento sobre a liberdade religiosa, sobre a liberdade de consciência. Aquilo que o Frederico diz, é verdade: há um catálogo de dogmas, se és católico tens de acreditar, isto está definido. Rio-me sempre disso. Quem é que soube que aquilo é que era a verdade? Foi por catálogo. Escrevi, em 1956, numa revista de estudantes católicos, por aí, que se deviam fechar todas as faculdades de Teologia, acabar com todas as leituras da Bíblia, e ter uma central telefónica (naquela altura, ainda só havia telefones). Os telefonemas eram atendidos em Roma e perguntava-se: “Como é isto?” E de lá respondiam [risos]. Era uma poupança. As pessoas escusavam de se preocupar, era só ligar. Isto é uma imagem do absurdo das posições absolutistas. Foi essa a luta de todo o século XX. Uma luta muito difícil mas que culminou nisto da liberdade religiosa.

O Frederico sente esta abertura ou ainda vê zonas de dogma?
F.L. — Com todo o apreço, o que acho muitas vezes das pessoas da Igreja Católica, dos teólogos, mesmo aqueles que têm fama de progressistas, é que essa atitude alegadamente progressista o é muito pouco. Tenho andado a ler, por curiosidade, alguns escritos daquele teólogo muito controverso, o enfant terrible da teologia, Hans Küng, e estou muito desiludido com essa leitura. Ele não é nada revolucionário naquilo que escreve. É completamente acomodatício em relação a praticamente tudo o que esperaríamos de um homem tão anatematizado.

F.B.D. — Tem razão nisso. Mas a questão que o Frederico põe só pode ser resolvida por cada um. Não há ninguém que possa pensar por nós, nem nós podemos servir-nos da autoridade deste ou daquele teólogo. Há pessoas com quem concordo mais, outras com quem concordo menos, e outras com quem não concordo nada. Tenho de estabelecer o meu itinerário.

Nalguns casos, esse itinerário faz com que as pessoas acabem por perceber que o seu caminho não coincide com o mapa da Igreja Católica.
F.B.D. — Muitas pessoas dizem: “Tens todo o direito de pensar isto ou aquilo mas, se achas isso, devias abandonar a Igreja.” Abandonar o quê? A Igreja de quem é? É tão minha como dos outros. O problema é quando me perguntam: “O que é que fazes pela Igreja?” Eu sou da Igreja. Agora, se me dizem que há um regime militar que diz o que se deve querer e o que se deve fazer, digo a quem pensa assim que cumpra isso, eu não. No seu livro, Frederico, há coisas admiráveis a este respeito. Em tudo o que se diz nos textos do Novo Testamento da arte de ser de Jesus, das formas mais desencontradas, encontro a alegria da vida. Porque ele não quis morrer. Depois puseram lá que ele quis morrer. Não. Ele quis não trair, que é completamente diferente. Ele não quis a cruz, puseram-lha às costas. Ele podia pôr-se a andar.

F.L. — Mas ele quis a cruz, quis esse desfecho.

F.B.D. — Não, não.

F.L. — “Para que se cumpra o que estava escrito.”

F.B.D. — Mas isso é o que há bocado estivemos a dizer: foi uma forma de harmonizar, dizendo que estava tudo previsto.

É o tal véu de palavras em que não se sabe o que é facto e o que é construção posterior.

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F.B.D. — Há coisas muito engraçadas. Quando o vão acusar de trabalhar ao sábado, por exemplo. O sábado estava proibido, era o dia mais santificado. Até imaginaram que o próprio Deus parou para não trabalhar ao sábado. Há uma narrativa sacerdotal da criação que põe Deus a descansar ao sétimo dia. Era uma forma de justificar aquela instituição — aliás, admirável — que  mostra que o ser humano não é só para trabalhar, também é para descansar. Só que, ao fazer do dia de descanso uma obrigação, transformaram-no num colete de forças. Não se podia fazer nada. Isso ainda acontece entre os fundamentalistas judaicos. Ora, Jesus diz: “Não é o ser humano para o sábado, é o sábado para o ser humano. Não é o homem para o sacrifício, os sacrifícios é que são para os seres humanos.” Creio, é a minha interpretação muito subjectiva, que Jesus não queria a cruz, nunca a quis. Ele até foi acusado foi de estar com os copos.

F.L. — Porque não jejuam, nem ele nem os discípulos. Ele responde: “Enquanto o noivo está cá, porque é que hão-de jejuar?”

F.B.D. — No Evangelho de Lucas dizem mesmo que ele é um beberrão e um glutão. Que não faz nada como João Baptista, que era um homem austero. Jesus está sempre à mesa com aqueles que são vistos como pecadores e marginais. Ele queria abrir um novo caminho, um caminho de liberdade, um caminho de felicidade para as pessoas. Por isso é que lhe chamavam evangélico; era um caminho de alegria, a boa nova. Ora, correu tudo mal. O que me parece é que ele, pelo testemunho que temos, na própria cruz transformou o seu Deus — “Senhor, porque me abandonaste?” — no Deus das vítimas.

F.L. — Ele só diz isso em dois evangelhos, nos outros dois não diz. Em João diz só: “Está cumprido.” Só diz isso em Mateus e em Marcos.

F.B.D. — Não, não diz, digo eu. Mas diz outra coisa: “Pai, perdoai-lhes porque não sabem o que estão a fazer.”

F.L. — Isso só diz em Lucas.

F.B.D. — Só.

F.L. — E numa frase considerada inautêntica nas edições críticas. Os manuscritos mais antigos não têm isso. Ficamos com este problema. Queremos tanto que ele tenha dito essa frase.

F.B.D. — A minha resposta é esta, se não disse, devia ter dito [risos]. E as pessoas podem dizer que eu também estou a querer criar um evangelho, mas pelo que dizem os outros também tenho esse direito. Por aquilo que todos os outros textos bíblicos dizem, também posso fazer a minha configuração de Jesus.

Essa configuração não corre o risco de se tornar uma forma de religião à la carte?
F.B.D. — Não, é o contrário. À la carte é o que encontram sempre para resolver problemas particulares. Esse é o único problema do mundo. Os seres humanos são todos seres humanos.

F.L. — Eu estou numa fase em que ando à procura de uma atitude objectiva em relação à religião, de um modo geral, e, em particular, em relação à figura de Jesus Cristo. O que me interessa é tentar conciliar — enfim, sei que é a quadratura do círculo mas ainda não desisti, e não vou desistir tão depressa — o pensamento crítico, racional, objectivo (aplicando a toda esta questão as mesmas armas e as mesmas estratégias que aplicaríamos a qualquer problema filosófico), de modo a tentar uma compatibilização entre o pensamento racional e a relação com Jesus. Sem ter de invocar mil coisas misteriosas, e mil coisas que a mente humana não entende nem consegue alcançar. Pode ser que um dia me dê completamente por derrotado e aí tenho de optar: ou a fé cega ou o ateísmo. Mas ainda não estou nesse momento porque ainda não me dei por derrotado nessa tentativa de conciliar o pensamento racional com a vontade de me aproximar de Jesus. Fui crente, católico, durante muitos anos. Depois fui mais ou menos católico durante muitos anos. Depois passei a ser mais ou menos ex-católico, e agora estou numa fase em que duvido, de facto, por uma questão de coerência interior, que alguma vez volte a ser católico praticante. Não por nenhuma aversão à Igreja Católica.

Como é que se quebrou essa relação?
F.L. — Há muitas razões, muitas coisas que me dão a sensação de que aquilo que podemos saber de objectivo sobre Jesus, que no fundo são as informações que nos vêm do Novo Testamento, são coisas, muitas vezes incompatíveis com aquilo em que o cristianismo se transformou. Logo desde os primeiros séculos.

Houve uma perversão da mensagem original.
F.L. — Uma das coisas que Jesus diz é: “Vereis aqui quem são os meus discípulos pelo amor que têm uns pelos outros.” Isso é uma coisa que antes de Constantino já se via, os ódios de morte entre essas grandes figuras da Igreja: São Jerónimo odiava Santo Ambrósio... É todo um catálogo de discordâncias, de ódios, de rivalidades, de invejas.

E posteriormente de crimes.
F.L. — Quando a versão ortodoxa católica teve o apoio político, conseguiu, de facto, esmagar muitas heresias. Há aquela coisa muito típica do Concílio de Niceia, quando queimam os escritos do herético Máximo. No final do século V já estavam a queimar os escritos e os heréticos. Já não eram só os livros, era também quem os lia.

F.B.D. — Os perseguidos passaram a perseguidores.

F.L. — Isso é uma história que não é compatível com o Jesus que eu encontro, mesmo com esse véu que me impede de ver a pessoa real. Ainda assim consigo vislumbrá-la. Como diz o Frei Bento, e estou inteiramente de acordo: apesar de tudo, lendo os evangelhos, tudo o que se lê sobre Jesus sabe bem. Tudo tem um cunho extremamente convincente. Apesar de haver todas estas interrogações que se levantam. O mais problemático, para mim, é entender a vida deste homem e tudo o que aconteceu à volta dele como uma manta de retalhos de citações do Antigo Testamento.

F.B.D. — Isso não me causa problema nenhum.

 F.L. — Não? Ajude-me.

F.B.D. — Coisas que causam ao Frederico muita espécie, a mim dão-me muito riso. Está-se mesmo a ver que aquilo foi arranjado para calhar bem. Aquilo são querelas de família. O judaísmo do tempo de Jesus tinha muitas tendências e muitos grupos organizados. Meier tem um estudo em quatro volumes para dizer que Jesus era um judeu marginal. É demasiado esforço para uma coisa que parecia evidente. Mas para mim é o contrário: os fulanos eram formados no judaísmo, eram formados na sinagoga ou no templo com os mestres que havia. O que eles sabiam eram precisamente essas narrativas. Os autores — independentemente das dúvidas sobre quem escreveu o quê — estão entre judeus e têm de provar aos outros judeus que aquilo não é uma loucura, que até já estava previsto. É uma estratégia de texto. As pessoas podem dizer: “É uma aldrabice.”

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É uma forma de legitimação?
F.B.D. — É uma forma de argumentação. São estratégias de texto, estratégias de pensamento. Se há um modelo de vida no Ocidente, é a arte de viver de Jesus. Fazendo uma espécie de apanhado de tudo o que foi escrito no Novo Testamento, parece-me que Jesus se sai bem no exame. Aquilo que Jesus é é para todos os tempos e lugares. Jesus, não sei, tem um quê de especial, um quê não sei quê. Cheira-me que por aqui passa Deus, passa o ser humano e passa a vida e passa a alegria.

F.L. — Com essas palavras concordo inteiramente.

F.B.D. — Agora, a questão que põe, a questão da razão, considero-a muito verosímil. Porquê? Nós somos seres racionais, sim, mas somos muito mais do que isso. Somos muito mais do que o que se pode apurar pela razão. Somos sentimentos, somos tanta coisa.

F.L. — Há bocadinho, o Carlos falou no perigo da religião à la carte, e lembrei-me daquela versão dos evangelhos feita pelo terceiro Presidente dos Estados Unidos, Thomas Jefferson, que pegou numa tesoura e numa navalha e cortou tudo o que eram milagres, tudo o que era contrário à razão. Deixou só o que podia ser racionalmente compreensível. Ainda é muita coisa. Chamou àquilo a Filosofia de Jesus Cristo. Mesmo reduzindo os evangelhos a essa expressão mínima, ainda vemos aquilo que o Frei Bento estava a dizer: há qualquer coisa de extraordinário em Jesus. Há ali qualquer coisa.

F.B.D. — O Eduardo Lourenço diz que gostaria de estar sobre o ombro de Jesus enquanto ele escrevia na areia, quando estavam a incriminar a mulher adúltera. Jesus levanta-se e diz: “Quem não tem pecados que atire a primeira pedra.” Há qualquer coisa na arte de ser de Jesus. Agora, o Papa fala de misericórdia. Ter o coração junto da miséria dos outros é mais importante do que saber como é que havemos de os culpar.

F.L. — Este exemplo que o Frei Bento acabou de citar também é um caso difícil, numa visão racional do Novo Testamento. Este episódio da mulher adúltera, que está no evangelho de João, só está lá, e não deve ter feito parte dele originalmente. É a única parte do evangelho de João que destoa estilisticamente. Os manuscritos mais antigos não têm esse episódio da mulher adúltera, embora depois tenha passado a ser considerado canónico pela Igreja Católica. Mas ao longo de toda a história da Igreja houve sempre muitos problemas em aceitar aquilo. Por isso, muitos manuscritos gregos, do século X, omitem totalmente esse episódio. Pura e simplesmente, não existiu. É inconveniente.

F.B.D. — Os escritores têm uma coisa boa; diz um: isto aqui ficava bem; depois vem outro: isto aqui fica mal, por causa das convicções. Agora, há uma coisa que lhe quero dizer: o seu pai [o poeta e filósofo M.S. Lourenço] escreveu um livro pelo qual tenho uma devoção especial, Os Degraus do Parnaso. Um dia antes de ele morrer, disse-lhe isso ao telefone. No momento em que ele escreveu pela segunda vez aquele livro, aquelas crónicas, disse que procurou um efeito estético, quis que aquilo fosse uma obra de arte. Eu creio que os evangelhos não tiveram esse intuito: de escrever uma obra de arte. Tiveram o intuito de escrever sobre alguém que é uma obra de arte.

F.L. — Concordo inteiramente.

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